quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Museus cervejeiros: As cervejas do museu da Cantillon


Na última matéria deste blog, falamos um pouco sobre a visita ao extraordinário Museu Bruxelense da Gueuze, que se localiza no interior da fábrica da cervejaria Cantillon. O museu nos dá a oportunidade tanto de conhecer os métodos tradicionais de produção de lambics (quase abandonados ao longo do século XX pela maioria das cervejarias) quanto de provar, em um ambiente alegre e autêntico, algumas das verdadeiras obras-primas criadas pela Cantillon, servidas direto dos barris ou de garrafas ainda sem rótulos. Pode-se dizer inclusive que a degustação é imprescindível para entendermos toda a proposta do museu. A “excentricidade” das instalações (se comparadas às assépticas fábricas de ales e lagers) é o reflexo perfeito da forte personalidade das cervejas. Não à toa, o tíquete inclui duas porções para degustar, à escolha do visitante – uma à entrada, outra ao final.

Quando fiz a visita, cinco rótulos eram oferecidos aos visitantes do museu: Cantillon Lambic (uma lambic pura e jovem, com um ano de maturação), Cantillon Gueuze 100% Lambic Bio (uma gueuze tradicional, sem adoçantes), Cantillon Faro (uma versão adoçada da gueuze), Cantillon Kriek 100% Lambic Bio (com adição de cerejas) e Cantillon Rosé de Gambrinus (com adição de framboesas). Três lambics sem frutas, e duas com frutas, portanto. Apenas uma dela, a Faro, é adoçada. Todas elas são produzidas integralmente a partir de cervejas de fermentação espontânea, sem adição ou blendagem com ales.

As lambics sem frutas

A sugestão é que se comece a visita com a lambic jovem (pura, servida de uma jarra de cerâmica) para depois provar a gueuze e entender a diferença entre os dois estilos. Enquanto a lambic jovem provém de um único barril e tem apenas um ano de maturação, a gueuze é o resultado de uma mistura de lambics de diferentes barris, com diferentes estágios de maturação.

Fonte:
http://beervana.blogspot.com.br/2011/11/cantillon.html

Estilo: lambic – unblended
Teor alcoólico: 5%
Aparência: cor alaranjada profunda, com certa turbidez. Não forma absolutamente nenhuma espuma, apenas algumas bolhas indicando a viscosidade do líquido.
Aromas: mostra equilíbrio entre características doces de malte e de maturação e os traços de fermentação espontânea. O malte ainda é evidente: uma certa doçura de mel e xarope se mistura a uma sensação doce lembrando plástico, indicando oxidação. Em contraste, elementos da fermentação espontânea já se mostram claramente com notas animais, de couro, uma sensação acética sólida e o aroma terroso característico do terroir da Cantillon.
Paladar: doce, amargo e ácido apresentam-se em equilíbrio. A sensação de doçura é bem mais intensa que na gueuze, enquanto a acidez se destaca no começo e depois vai se atenuando. A surpresa fica por conta de um amargor tânico destacado, que se desenvolve no final. Terá resultado de um barril em especial?
Sensação na boca: única, diferente de qualquer outra bebida que eu já tenha provado. O corpo é leve, mas sua textura é lisa e um tanto oleosa, e ela tem uma forte, mas elegante sensação adstringente de taninos.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A lambic simples, sem blend, da Cantillon é servida diretamente de jarros da cerâmica, à temperatura ambiente e sem nenhuma carbonatação. Sua rusticidade reflete o ambiente genuinamente despojado, mas um tanto sacralizado, da cervejaria. A doçura residual é perceptível, bem mais que em uma gueuze, com os evidentes taninos dos lúpulos e da madeira criando um equilíbrio diferente com uma acidez ainda suave. A absoluta falta de carbonatação, aliada à forte adstringência tânica, cria uma sensação muito curiosa, diferente de qualquer outra cerveja que eu já tenha tomado.

Fonte:
http://www.flickr.com/photos/brostad

Estilo: lambic – gueuze
Teor alcoólico: 5.0%
Aparência: coloração amarela queimada, com alta turbidez e um ótimo creme abundante e persistente, deixando marcas.
Aromas: maduros, com traços animais, terrosos e frutados das leveduras selvagens que se misturam a um elegante perfil de envelhecimento. Animal, terroso e amêndoas cruas predominam, com sensações secundárias de mofo, madeira seca (dos barris?), pêras verdes (dando um inusitado frescor frutado) e notas de mel ou xarope. O aroma de malte quase desapareceu, mas ainda há algo lembrando aveia, bem seco, indicando o trigo.
Paladar: decididamente seco e ácido, mas não de forma agressiva. Amargor e doçura também se fazem presentes em segundo plano, equilibrando-se mutuamente. Saliva a boca.
Sensação na boca: como deve ser uma boa gueuze – corpo bem seco e leve, com uma perceptível adstringência de taninos equilibrada com a acidez e o amargor. A maturação mais longa arredonda-lhe os taninos e seca-lhe o corpo, se compararmos com a lambic pura, tornando-a mais elegante.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A gueuze da Cantillon é feita a partir de um blend de lambics com 1, 2 e 3 anos de maturação em barris de carvalho. Possui paladar seco e adstringente na medida, com acidez marcante, salivando a boca. Grande amplitude aromática, em que as notas animais, terrosas e frutadas da cepa nativa de leveduras selvagens se mesclam admiravelmente a um perfil de maturidade elegante e bem integrado. Servida na própria cervejaria, mostrou-se ainda mais envolvente após a visita. Marcante sem exageros. Elegante, precisa, impecável.


A comparação entre a lambic jovem e a gueuze é muito instrutiva e mostra o trabalho que o produtor de lambics precisa fazer para aprimorar seu produto. A diferença mais marcante é a doçura residual, muito mais elevada na lambic pura. Isso é normal, pois as leveduras selvagens demoram alguns anos para consumir todos os açúcares da cerveja. Além da doçura, a versão jovem mostra taninos mais amargos, atenuando a percepção da acidez. Por não ser carbonatada, a jovem ainda tem uma sensação radicalmente diferente na boca. Já a gueuze mostra acidez mais limpa e consistente, doçura já bem mais suave (apenas o suficiente para equilibrar a acidez) e os taninos amaciados pelo tempo e pelo blend. Além disso, a amplitude aromática da gueuze é mais impressionante, sobretudo no perfil de fermentação espontânea e de oxidação. A lambic jovem é uma experiência única e imperdível, mostrando acidez mais equilibrada e fácil de “encarar” para quem não está acostumado ao estilo, enquanto a gueuze, mais desafiadora ao paladar, mostra toda a elegância de uma lambic bem maturada.

As lambics com frutas

A degustação ao final da visita ainda me permitiu comparar as características trazidas à cerveja pelas duas frutas mais frequentemente usadas como aditivos na produção de lambics: cerejas (na Cantillon Kriek 100% Lambic Bio) e framboesas (na Cantillon Rosé de Gambrinus). A Cantillon não emprega suco nem aromatizante de frutas, usando apenas frutas frescas. Ambos os rótulos são fabricados a partir de blends de lambics de diferentes idades, misturadas a uma quantidade de fruta equivalente a 200 g por litro do produto final. Normalmente, adicionam-se 300 g da fruta a cada litro de uma lambic de um ano e meio de idade, adicionando-se depois mais lambic jovem para ocasionar a refermentação na garrafa.

Fonte: calgarybeerdrinkers.wordpress.com

Estilo: fruit lambic (cereja)
Teor alcoólico: 5.0%
Aparência: coloração vermelha-rosada intensa e profunda, totalmente opaca, com creme rosado de curta duração.
Aromas: bebida bem jovem e fresca, os aromas da fruta mostram-se bastante vívidos, com cerejas frescas e frutas vermelhas, mas sem aquela sensação de bala de cereja de outros rótulos adoçados. Notas de amêndoas cruas e marzipã, com sensação mineral, também são intensas e quebram a doçura da fruta com elegância. Animal e madeira denunciam a fermentação espontânea, mas de forma mais discreta que nas lambics sem frutas. Por fim, seu toque mais característico ficou por conta de um vívido sabor de canela ao final do gole – talvez uma mistura do sabor da fruta com aquele terroso típico das Cantillon. Excelente, surpreendente.
Paladar: ela começa intensamente ácida, implacável, e depois fecha o gole com um equilíbrio perfeito entre a acidez residual, uma doçura de especiarias e um amargor tânico gentil. Mais um ponto para ela.
Sensação na boca: o corpo é leve e a textura é crocante, seca, com adstringência de taninos clara mas não agressiva.

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A kriek “regular” da Cantillon é feita com adição de cerejas azedas inteiras a uma lambic de um ano e meio de idade, misturando-se depois um terço de lambic jovem para potencializar a fermentação secundária. Frutas, maturação e especiarias se complementam em perfeito equilíbrio, com os aromas de fermentação espontânea mais discretos. Tem paladar com personalidade, bem ácido no início, conduzindo a um final equilibrado entre acidez, amargor de taninos e doçura. Impecável, é difícil achar defeitos nela. Para mim, foi o ponto alto das degustações da visita – e devo dizer que, até hoje, nenhuma fruit lambic me encantou mais que ela.

Fonte: sheltonbrothers.info

Estilo: fruit lambic (framboesa)
Teor alcoólico: 5.0%
Aparência: sedutora coloração vermelha escura, com nuances arroxeadas, mais intensa que a kriek. Tem alguma transparência e um creme de pouca duração.
Aromas: as características da fruta (aromas de framboesa, de frutas vermelhas e até de cereja, embora ela não leve cerejas na composição), presentes mas não predominantes,  convivem com traços rústicos da fermentação espontânea (terroso marcante, animal, apimentado, vinagre e mostarda). Um certo aroma amendoado complementa o quadro. Bem mais rústica que a kriek, com as características de lambic já se sobressaindo às da fruta.
Paladar: a acidez predomina do início ao fim, com uma suave doçura de fruta, lembrando geleia, que chega ao final para lhe dar equilíbrio. Há pouco amargor.
Sensação na boca: tem corpo leve, com textura crocante e terrosa. Apesar de razoavelmente seca, tem poucos taninos se comparada à Kriek, o que a torna um pouco mais ingênua e fácil de beber, contrastando bem com a rusticidade do aroma. Para uma lambic tradicional, não adoçada, tem paladar acessível e amigável.

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A Rosé de Gambrinus é uma cerveja excepcional por ser, ao mesmo tempo, uma lambic rústica, tradicional e sem concessões, mas também fácil de beber e acessível (para o padrão da Cantillon, pelo menos). Tem intensas características de fermentação espontânea (acético, lático, animal, terroso), mas não mostra taninos tão firmes e consistentes quanto a Kriek, o que lhe dá uma sensação mais leve na boca.


Uma vez que ambas são feitas a partir dos mesmíssimos procedimentos (blends com idades equivalentes e a mesma quantidade de frutas), as grandes diferenças entre essas duas cervejas evidenciam bem a personalidade de cada fruta. O paladar da framboesa (acidez, doçura) parece mais intenso, enquanto as cerejas têm mais taninos, resultando em uma cerveja mais seca, tânica e estruturada. Também as cerejas parecem criar uma interessante harmonia com os tons terrosos das leveduras, resultando em uma deliciosa sensação de especiarias. O resultado é que a Rosé de Gambrinus parece mais alegre e fácil de beber, enquanto a Kriek parece mais elegante e sóbria.

Infelizmente, eu tinha horário para pegar um trem e não tive tempo para provar todos os rótulos. Ficou faltando a Faro, uma lambic sem frutas adoçada com caramelo e açúcar cândi. Como é o estilo que menos me agrada entre os 5 oferecidos, teve de ficar para uma próxima. Não importa – está aí um belo motivo para voltar à fábrica da Cantillon numa outra oportunidade!

sábado, 3 de novembro de 2012

Museus cervejeiros: o Museu Bruxelense da Gueuze

Fachada da Cantillon, com a porta do 
museu no canto esquerdo.
Fonte: acervo pessoal

A cidade de Bruxelas é destino quase obrigatório de todo turista cervejeiro por conta de ser a capital e maior cidade da Bélgica, espécie de nirvana para muitos apreciadores do nobre fermentado de cevada – entre os quais, admito, eu me incluo. A escola cervejeira belga produz uma miríade de estilos cervejeiros (a própria palavra “estilo” parece fora de lugar diante de tanta diversidade), desde as cervejas trapistas produzidas no silêncio reverente das abadias até as saisons mais rústicas e camponesas. Todos eles podem ser encontrados em Bruxelas, para o deleite do cervoturista sedento.

Mas o que nem todo visitante sabe é que existe uma família de cervejas exclusiva da região do vale do rio Senne, onde está encravada a cidade de Bruxelas. Trata-se das lambics, as apaixonantes cervejas de fermentação espontânea da escola belga. Para alguns iniciados ao mundo das cervejas especiais, a palavra “lambic” parece designar qualquer cerveja com fermentação espontânea, sem adição de leveduras. No entanto, o termo Lembeek também corresponde ao nome de um pequeno afluente do rio Senne e de uma vila na região de Bruxelas, sendo uma denominação de origem protegida. Isso significa que apenas as cervejas de fermentação espontânea produzidas naquela região podem reivindicar legitimamente a denominação “lambics”, o que as torna talvez as cervejas mais tradicionais da cosmopolita Bruxelas.

E não é que a cidade tem um museu inteiramente dedicado a elas? Trata-se do MuseuBruxelense da Gueuze (Musée Bruxellois de la Gueuze), que nada mais é do que a denominação da instituição museológica mantida por um dos mais tradicionais produtores de lambics: a cervejaria Cantillon. Um museu criado e mantido pela Cantillon, então? Se você está pensando em um salão com vitrines, equipamentos antigos e fora de uso e legendas explicativas, está enganado. O Museu Bruxelense da Gueuze nada mais é do que a própria fábrica da Cantillon.

Nova Museologia, ecomuseus e museus comunitários

Mas desde quando uma fábrica pode ser um museu? Museu não é lugar de guardar coisas antigas? Na verdade, o Museu Bruxelense da Gueuze pode ser considerado um exemplo daquilo que, em Museologia, chamamos muitas vezes de “ecomuseu”. Mas que diabos é isso? Será que é um museu ecológico, uma espécie de viveiro com plantas e bichinhos e espécies em risco de extinção? Não é nada disso. Vejamos.

Os ecomuseus fizeram parte de um grande movimento de renovação na Museologia mundial ocorrido entre os anos 1960 e 1970. A contundente crítica dos intelectuais da época às instituições e modos de pensar tradicionais não poderia deixar de tomar como alvo os museus, considerados então espaços elitistas de celebração da história oficial dos “grandes homens” – um modo mais pomposo de dizer que muitos museus não passavam de lugares conservadores ocupados de babar ovo para os “poderosos” de antanho. Onde estavam o povo comum e a vida das pessoas de verdade?

Os ecomuseus começaram a chegar também 
ao Brasil no século XXI. Acima, a renda de bilros 
de Florianópolis no Museu do 
Folclore de São José dos Campos.
Fonte: http://www.ovale.com.br
A Nova Museologia das décadas de 1960 e 1970 desenvolveu-se em torno de uma seção da UNESCO chamada ICOFOM (Comitê Internacional para a Museologia) e propôs novos tipos de museus que, ao invés de celebrar antepassados ilustres em vitrines empoeiradas, conseguisse representar as tradições seculares e a cultura viva do povo comum. O termo “ecomuseu” acabou se tornando uma espécie de denominação genérica para indicar esses novos experimentos museológicos. Apesar de sua variedade, tinham alguns princípios comuns: em primeiro lugar, compartilhavam a ideia de que a cultura de um povo era algo vivido no dia a dia, e não algo que pudesse ser imobilizado em uma vitrine. Hábitos, celebrações, formas de trabalho, alimentação e lazer – nada disso cabe em prateleiras. Em segundo lugar, todos entendiam que essa cultura não podia ser tirada do seu ambiente natural e cultural (daí o nome ecomuseu): era preciso levar as pessoas para conhecê-la nos locais efetivamente ocupados pelas comunidades. Em vez de prédios pomposos, os ecomuseus se instalaram em aldeias, centros comunitários, onde quer que as tradições culturais continuem sendo vivenciadas cotidianamente pelas pessoas. Patrimônio imaterial e comunidade residente, tais eram as linhas de força do projeto neomuseológico.

O resgate de uma tradição bruxelense

A cervejaria Cantillon foi fundada em 1900, mas o Museu Bruxelense da Gueuze só foi aberto ao público no ano de 1978. Seu objetivo é salvaguardar uma das tradições populares mais enraizadas na região da Bélgica: a produção e o consumo de lambics segundo técnicas seculares. Ao longo dos anos 1960, a produção tradicional de lambics vinha sendo seriamente ameaçada pela concentração de capitais na indústria cervejeira, que tirava de cena as cervejarias familiares em prol de grandes conglomerados industriais com procedimentos padronizados de produção, que estavam adaptando as particularíssimas lambics ao gosto de consumidores globalizados. Como resultado, as lambics que não desapareceram estavam se convertendo gradualmente em versões atenuadas e adoçadas do estilo (como as que, ainda hoje, dominam o mercado belga).

A Belle-Vue, da AB-InBev, é emblemática do 
processo de adaptação industrial das gueuzes.
Fonte: belgianbeershrimper.wordpress.com
Esse processo ocorreu de forma mais ou menos intensa com todos os estilos cervejeiros no século XX. Mas no caso das heterodoxas lambics, havia agravantes. Ora, a maioria esmagadora das cervejas consumidas em todo o mundo é produzida pela adição de alguma espécie de levedura ao mosto (um preparado líquido à base de água, grãos e lúpulo), seguindo-se uma fermentação realizada por essas leveduras para a produção de álcool. As lambics não recebem adição deliberada de leveduras. Em vez disso, o mosto é deixado fermentar naturalmente pela ação de bactérias e leveduras presentes na atmosfera. Em bom português, a lambic é uma cerveja que o produtor “deixa estragar”, e daí seu gosto desafiadoramente azedo. Para paladares acostumados a produtos pasteurizados e ao rígido controle sanitário da era industrial, as lambics são um tapa na cara. E, como são fermentadas espontaneamente, o produtor precisa abdicar desapegadamente de uma parte importante do controle sobre o processo, o que parece insano diante dos padrões de padronização da produção industrial.

As lambics bruxelenses dependiam de um delicado entrelaçamento de fatores: uma sensibilidade gastronômica pré-industrial, um hábito popular típico de uma região, um grau limitado de concentração de capitais e uma estrutura familiar tradicional comandando a produção. Tudo isso estava ameaçado de extinção na segunda metade do século XX. A Nova Museologia se apresentou então como recurso promissor para preservar um produto regional, unindo em torno dele seus produtores e seus consumidores. Daí nasceu o Museu Bruxelense da Gueuze, com o objetivo de resgatar e difundir uma tradição regional e, ao mesmo tempo, mantê-la viva. Para isso, nada melhor do que um ecomuseu.

A visita ao museu

O nome “Museu Bruxelense da Gueuze” faz referência ostensiva a um dos subestilos de cerveja dentro da família das lambics. As gueuzes são cervejas produzidas a partir do blend de lambics puras de diferentes estágios de maturação (cervejas de um, dois e três anos de idade, no caso da Cantillon), que são envasadas para ocasionar uma segunda fermentação na garrafa. Contudo, a Cantillon produz outros estilos de lambics, que também estão igualmente representados em seu museu, pelo que ele poderia, tranquilamente, ser chamado de Museu Bruxelense da Lambic.

O simpático bar e espaço de degustação 
à entrada do museu.
Fonte: acervo pessoal
O museu não está no centro turístico de Bruxelas, mas chega-se a ele com facilidade depois de uma caminhada de dez minutos a partir da estação central de trens (Gare du Midi). O primeiro choque para o visitante começa na entrada. O museu está instalado no mesmo prédio da fábrica da Cantillon, sendo que não existe uma entrada específica para visitantes, e as portas da cervejaria ficam fechadas durante boa parte do dia. Isso significa que, quando finalmente encontramos o endereço, podemos ter a impressão de que o museu está fechado e que perdemos a viagem. Basta, contudo, abrir a pesada porta para ser recebido no interior (exceto, é claro, se for domingo, dia em que a cervejaria não abre mesmo).

Para o amante de lambics, esse primeiro momento é uma espécie de epifania. Assim que entramos no interior escuro do prédio, os aromas animais e de couro das leveduras selvagens saturam deliciosamente nossas narinas. Parece que estamos dentro de um copo de lambic. À entrada, paga-se uma taxa de 6 euros pela visita. Na verdade, o preço do ingresso é quase simbólico, uma vez que inclui duas degustações incluídas e um livreto explicativo, essencial para se aproveitar a visita. À entrada, normalmente se dá ao recém-chegado uma pequena porção da lambic jovem da cervejaria, servida de um jarro de cerâmica à temperatura ambiente (como nas telas de Bruegel que já comentamos aqui). Ao final da visita, uma pequena porção da gueuze exemplifica na prática a diferença entre os estilos.

É possível sentar-se e apreciar a degustação inicial em um pequeno bar montado à entrada da cervejaria, com antigos barris de madeira servindo como mesas. Em pouco tempo, um dos funcionários da cervejaria apresenta-se para conduzir a visitação para pequenos grupos, em francês e em inglês. Minha visita foi conduzida por Louis-Phillipe, cujo entusiasmo pelas lambics que produzia era evidente em sua fala. Há uma pequena explicação sobre as lambics na cozinha de brassagem da cervejaria, em meio ao equipamento da Cantillon, e o visitante é deixado à vontade para percorrer as instalações por conta própria, sozinho ou em pequenos grupos. Eu aproveitei a oportunidade para também bater um papo com o produtor e presenteá-lo com uma cerveja brasileira. Sabendo que a madeira é um dos elementos essenciais da produção de lambics, resolvi dar-lhe uma cerveja que representasse uma de nossas madeiras típicas, pelo que escolhi a ótima 3 Lobos Bravo Imperial Porter, maturada em barris de umburana.

Lambics a perder de vista descansando 
nos barris da Cantillon!
Fonte: acervo pessoal
Podem-se visitar todas as instalações da cervejaria, incluindo o equipamento de brassagem, as câmaras de fermentação aberta e de maturação em barris de carvalho, a linha de envase e a cave onde se faz a refermentação e a maturação em garrafa. Três coisas me causaram uma forte impressão durante a visita. Em primeiro lugar, ver quão pequena é a fábrica. A Cantillon é uma referência na produção de lambics. Suas cervejas são desejadas e elogiadas mundialmente pelos apreciadores. Apesar disso tudo, a fábrica parece espantosamente pequena, mesmo para os padrões microcervejeiros. Produção em pequena escala, à qual se somam os longos tempos de maturação necessários para uma boa lambic. As cervejas da Cantillon demoram pelo menos 2 anos e meio para ficarem prontas, o que obviamente compromete boa parte do espaço livre. No interior da câmara de maturação, uma placa de madeira estampa um lema que não poderia ser mais apropriado: “Le temps ne respecte pas ce qui se fait sans lui.” Ou seja: “o tempo não respeita aquilo que é feito sem ele.” Na verdade, é a falta de espaço para maturar a cerveja durante todo esse tempo o que impede o aumento na produção da Cantillon.

Esta geringonça mirabolante é a tina de mostura 
do século XIX, ainda em uso na Cantillon.
Fonte: acervo pessoal
O segundo fator que impressiona na visita é ver a antiguidade do equipamento. Segundo nos explicou Louis-Phillipe, quase todo o maquinário em uso ainda hoje é original da época de abertura da fábrica (a única exceção parece ser a linha de envase). Isso significa que a Cantillon produz suas maravilhosas cervejas usando máquinas do século XIX! Tudo o que se vê lá dentro é um verdadeiro patrimônio histórico plenamente funcional – exatamente o que se espera de um ecomuseu. Por fim, o fator talvez mais chocante da cervejaria são as suas condições sanitárias. Nas produtoras de ales e lagers, acostumamo-nos a ver sempre condições sanitárias quase comparáveis às de um hospital, tamanha a preocupação com possíveis contaminações. Ocorre que “contaminações” são a alma de qualquer lambic, pois a fermentação espontânea depende intimamente dos microorganismos que habitam a cervejaria. Apesar de os equipamentos serem sanitizados regularmente, o prédio em si não parece ser higienizado jamais: a cada canto, em cada buraco e viga do madeiramento, deparamo-nos com exuberantes teias de aranha a nos lembrar por que as lambics são chamadas de cervejas “selvagens”.

Grossas teias de aranha se espalham por todos os cantos, 
brechas e frestas do edifício. E a gente ainda 
bebe as cervejas com prazer mesmo assim!
Fonte: acervo pessoal
A antiguidade do maquinário, a paixão dos funcionários, a reverência ao tempo, o verdadeiro ecossistema que existe dentro do prédio com seus fungos, insetos e bactérias convivendo com os homens, tudo isso dá à fábrica da Cantillon um ar ao mesmo tempo genuinamente despojado (nada ali parece montado com propósitos puramente estéticos) e também extremamente sacralizado. Ao observar a rústica câmara de resfriamento no forro da fábrica, no ponto mais alto do edifício, onde o mosto recebe do ar as leveduras selvagens, não pude evitar sentimento semelhante ao de estar em frente a um altar. No lugar onde um verdadeiro milagre acontece a cada nova brassagem. Um milagre reiterado desde um longínquo passado pré-industrial, e cuidadosamente preservado até hoje apesar de sua vulnerabilidade.

Cultura tradicional e preservação

Ao final da visita, serve-se mais uma taça, desta vez da gueuze. Se, no início, bebemos a lambic jovem – crua, não lapidada –, ao apreciar a gueuze, aprendemos a reverenciar a importância de toda aquela estrutura produtiva e respeitar o que se faz tendo o tempo como aliado. Perdoem-me os católicos pela heresia, mas, para quem é apaixonado pelas lambics, é quase como comungar o mistério do sangue de Cristo na eucaristia. Depois, é quase inevitável que nos estendamos nas simpáticas mesinhas do bar para continuar matutando sobre a maravilha da fermentação selvagem, embalados por mais algumas taças de boa lambic (pagas à parte depois da visita a preços bastante camaradas).

Ao final, eu me peguei pensando, como profissional de museus, o quanto o Museu Bruxelense da Gueuze, apesar de seu insuspeitado formato, cumpre exatamente a promessa de um bom ecomuseu. Temos a oportunidade de observar um patrimônio histórico ainda em uso por pessoas apaixonadas que vivem daquilo e, literalmente, respiram o ar da lambic. Vemos com clareza a distância histórica que separa essa experiência do “nosso” mundo industrial contemporâneo, e compreendemos que o presente ainda pode ser feito a partir de muitos passados acumulados. Melhor ainda, podemos comungar, durante algum tempo, o mistério dessa tradição quase abandonada e aprender a reverenciar seus encantos. Unir praticantes e entusiastas em torno de uma deliciosa tradição – não seria esse o objetivo de qualquer boa instituição cultural?

No próximo post, iremos direto ao cálice sagrado: falarei um pouco sobre as cervejas que podemos apreciar no Museu Bruxelense da Gueuze, só para deixar meus leitores com um pouco mais de água na boca. Não perca!