Degustações temáticas são sempre desafiadoras, instrutivas e
divertidas. Nós, aficionados por cervejas, já estamos acostumados a diversas
possibilidades: degustações verticais de várias safras de um mesmo rótulo, degustações
horizontais de vários rótulos da mesma cervejaria, degustações horizontais de
vários rótulos do mesmo estilo. As possibilidades são diversas. Convenhamos que
já existe alguma coisa de neurótico nessas degustações mais “correntes”. Mas,
no dia 03 de dezembro, tive a oportunidade de participar de um evento que, para
mim, era novidade: uma degustação de barris.
Mas este barril de Bordeaux é uma iguaria!
Fonte: thepetwiki.com |
Que diabos é isso? É sabido que uma das mais cultuadas
tendências internacionais no mundo cervejeiro são as cervejas envelhecidas em
barris de madeira. Algumas usam barris novos, especialmente confeccionados para
maturar cerveja, outras usam barris já empregados na maturação de outras
bebidas alcoólicas, como bourbon (um clássico da escola americana), vinho
branco e tinto, uísque, Calvados, vinho do Porto, e por aí vamos. O mais comum
é vermos barris de carvalho, mas os cervejeiros têm experimentado com outras
madeiras menos tradicionais – e podemos dizer que o Brasil tem se destacado no
emprego da umburana, uma das nossas madeiras mais típicas. Há todo um horizonte
de possibilidades abertas.
A inventiva cervejaria escocesa Brewdog lançou,
recentemente, dois rótulos envelhecidos em madeira: a Paradox Jura, uma potente
imperial stout, e a Bitch Please, uma barley wine feita em parceria com os americanos
da 3 Floyds. Essas duas cervejas têm uma coisa em comum: são maturadas em
barris de carvalho usados anteriormente para envelhecer os uísques escoceses
Jura. Ocorre que temos disponíveis, no mercado brasileiro, alguns rótulos do
uísque Jura. A ideia, proposta e organizada por Paulo Almeida, do Empório Alto dos Pinheiros, e orientada por Fernando Gurgel, da Casa Flora (importadora dos
uísques Jura) e por Gilberto Tarantino, da Tarantino Multibeer (importador das
cervejas Brewdog), era uma degustação comparada dos uísques Jura e das Brewdog
maturadas nos barris da mesma destilaria. O desafio? Tentar encontrar possíveis
similaridades decorrentes do uso dos mesmos barris, e quem sabe arriscar quais
rótulos do uísque Jura haviam sido maturados nos barris que depois foram usados
pela Brewdog.
As respostas não foram definitivas. Alguns palpites aqui ou
ali, mas nenhuma certeza. Como historiador de profissão, eu me habituei a
pensar que, na verdade, as perguntas que fazemos e os caminhos pelos quais elas
nos levam são mais importantes do que as respostas que tentamos dar a elas.
Para mim, portanto, a degustação mostrou-se uma grande oportunidade para
questionar algumas convicções correntes e pensar nas diversas possibilidades do
uso da madeira e dos ainda pouco compreendidos intercâmbios entre cervejas e
outras bebidas alcoólicas. Roberto Fonseca, do blog do B.O.B., também esteva lá
e escreveu suas impressões sobre a degustação. Para não repetir o que ele
já disse, quero compartilhar com meus leitores os questionamentos que a
degustação suscitou em mim.
Os uísques da Ilha de
Jura
Alguns single
malts da destilaria Jura.
Fonte: beveragemedia.com |
Começamos a noite por três uísques da destilaria Jura. Uísques,
de maneira geral, têm algumas similaridades importantes com nossas amadas
cervejas, pois são bebidas destiladas produzidas também à base de malte de
cevada. Na fabricação de um uísque, um fermentado de cevada (similar a uma
cerveja sem lúpulo) é destilado para dar origem a uma bebida que depois matura
durante alguns anos em barris de madeira, apurando aromas e sabores. Existem
uísques blendados, que levam outros grãos além da cevada para padronizar e suavizar
o sabor, e os prestigiados single malts,
que são produzidos a partir de uma única destilação, usando exclusivamente
malte de cevada. Quando temos destilados de malte de cevada de várias
destilarias, misturados para criar a bebida final, o produto é chamado simplesmente
de pure malt (ou ainda vatted).
Pois bem, a Jura é uma destilaria fundada em 1810, que
produz apenas uísques single malt. Na
degustação, tivemos a oportunidade de provar três rótulos: o Jura 10 Anos
Origin, o Jura 16 Anos Diurachs Own e o Jura Prophecy. Esse último é produzido
usando 100% de maltes turfados, isto é, feitos pelo método escocês tradicional,
em fornos alimentados com turfa (um tipo de solo de matéria vegetal), que dão
um sabor defumado ao grão. Todos eles possuem algumas características comuns do
terroir. Como a destilaria fica na
pequena Ilha de Jura, a maresia impregna os barris de sal e iodo,
características que se transferem aos uísques, dando-lhes um sólido paladar
salgado (mais acentuado conforme cresce o tempo de envelhecimento).
Apesar das características comuns, as diferenças entre os rótulos
são muito perceptíveis, mesmo para um leigo como eu. O Origin é o mais suave e
acessível de todos: sensação gentil, com aroma evidente de mel, sabor de
madeira suave, um toque abaunilhado que vai se desenvolvendo com o tempo e o
álcool muito bem ocultado. O Diurachs Own, meu preferido da noite, mostra-se
mais marcante e complexo: aromas intensos de baunilha, mel e especiarias, talvez
até algo frutado, sabor mais acentuado de madeira e um paladar salgado e
picante, com álcool mais presente. O Prophecy, para mim, foi uma absoluta
surpresa: aroma e sabor pesadamente defumados, lembrando lenha queimada e
bacon, e forte gosto salgado. Único, mas achei que o peso da defumação do malte
turfado acabou encobrindo um pouco a elegante complexidade do 16 Anos.
As cervejas da
Brewdog
A degustação temática prosseguiu com dois rótulos da
Brewdog. Inicialmente, a proposta era degustar apenas a imperial stout Brewdog
Paradox Jura. Por sugestão da equipe da Tarantino, abriu-se na sequência a
barleywine Brewdog/3 Floyds Bitch Please. Ambas são maturadas em barris da
destilaria de Jura. Vejamos um pouco sobre cada uma.
Fonte: 1001oel.com |
Estilo: (barrel-aged) American imperial stout
Teor alcoólico:
15%
Aparência:
líquido preto, grosso, totalmente opaco, com licorosidade visível e um creme de
desempenho razoável se considerarmos seu alto teor alcoólico
Aromas: no nariz
destacam-se primeiro os lúpulos, de perfil americano e frutado, remetendo a
maracujá e manga. Depois aparecem as características do barril: algum coco, defumado
suave, sabor de carvalho e uma baunilha que vai se tornando deliciosamente mais
intensa à medida que a temperatura aumenta, ao lado de um aroma de cereja ao
marrasquino. O torrado do malte não é tão intenso quanto se espera, mas café,
queimado e caramelo estão lá. A longa maturação contribui com um sutil oxidado
lembrando couro. Sobre isso tudo, predomina uma licorosidade intensa do álcool,
lembrando melaço e gim.
Paladar: a doçura
é uma pancada, dando à cerveja ares de licor, mas um forte salgado de maresia
lhe dá equilíbrio, junto com o correto amargor final. Seu final é quente e
picante, um pouco intenso demais.
Sensação na boca:
o corpo é grosso, com textura licorosa e de xarope que chega a ser um pouco
enjoativa com o tempo. Não é uma cerveja para se beber em quantidade. Uma certa
adstringência trai a passagem pela madeira.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
A Paradox Jura faz parte de uma linha especial da Brewdog,
composta por imperial stouts com passagem por barris de madeira oriundos de
diferentes destilarias escocesas. A versão de 2012 foi feita com teor alcoólico
mais elevado, chegando a impressionantes 15%, e foi maturada durante 9 meses
nos barris da Jura. O rótulo apresenta um interessante texto falando sobre a
história dos barris: feitos de carvalho americano, eles foram primeiramente
usados para a fabricação de bourbon, depois adquiridos pela destilaria Jura,
usados para envelhecer uísque e, finalmente, adquiridos pela Brewdog. Mas não
se afirma quanto tempo o uísque Jura passou dentro do barril. A madeira é
clara, mas não dominante: além de um leve defumado turfado, ela contribui com
notas sólidas de baunilha que, combinadas à licorosidade e à sensação doce e
xaroposa da cerveja, dão à bebida ares de sobremesa. O torrado do malte é
claro, mas também secundário diante da forte doçura. Sua evolução na taça é
notável: com o tempo, a baunilha e o frutado vão se abrindo e deixando-a
elegante e bem-resolvida. É uma cerveja para se beber lentamente, que vai se
tornando mais íntima a cada gole.
Fonte: brewtiful.com |
Estilo: (barrel-aged) American barleywine
Teor alcoólico:
11.5%
Aparência:
coloração marrom-alaranjada escura, com bastante opacidade e creme de baixa
formação, mas boa persistência
Aromas: imensa
complexidade de aromas. É uma das cervejas mais complexas que já degustei, com
um monte de sensações sobrepostas, gerando até excesso de informação, já que
nem todas elas se integram sempre em perfeita harmonia. Predominam as sensações
do malte, com caramelo, castanhas e um intenso defumado de turfa. Os lúpulos,
ecléticos, trazem um frutado norte-americano (manga) e tons herbais e picantes
ingleses. O estágio de 8 meses pela madeira traz impressões de xarope, mel,
plástico, couro, madeira queimada e iodo. Por fim, notas frutadas lembrando
banana juntam-se a uma sensação salgada de tomates secos. Rústica,
singularíssima.
Paladar: um pouco
chapado demais para o estilo, com amargor predominante (sobretudo no final, de
forma até um tanto agressiva) e uma singular sensação salgada, extremamente
intensa.
Sensação na boca:
tem corpo intenso e textura cremosa, com sensação de “substância”, que preenche
a boca devido ao salgado.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
A Bitch Please é uma reinterpretação “escocesa” do estilo
barleywine, tipicamente inglês. Isso se deve não apenas ao uso dos barris de
scotch whisky, mas sobretudo devido ao uso abundante de malte turfado, que lhe
dá uma intensa rusticidade e uma assertiva sensação defumada e salgada. Também
leva toffee e biscoito doce na receita. Mas não deixe esses ingredientes
“meigos” te enganarem: a Bitch Please é uma cerveja extremamente masculina,
viril, até áspera e estúpida talvez, transbordando personalidade. Ela não te
deixa indiferente, é como se ficasse “chamando para o pau” a cada novo gole.
Claro que, com isso, ela perde elegância e sofisticação (o que mais me incomoda
é que nem sempre as sensações se integram harmoniosamente, antes brigando umas
com as outas ao longo da degustação), mas não creio que sua proposta seja ser
“sofisticada”. Vide seu nome, bitch.
Qual é o barril? Três
goles, maestro!
Afinal de contas, os barris usados pela Brewdog haviam sido
usado antes para envelhecer qual (ou quais) dos uísques Jura? Algumas respostas
foram sugeridas, insinuadas pelos vários participantes da degustação. Mas,
repito, acredito que seja um dos casos em que fazer a pergunta é mais
interessante do que tentar (temerariamente) respondê-la. Ora, nossos sentidos
podem facilmente nos induzir ao erro nesse caso. É tentador estabelecer uma
correlação entre o intenso abaunilhado da Paradox Jura e do Jura 16 Anos
Diurachs Own, bem como entre a defumação da Bitch Please e do Jura Prophecy.
Mas isso realmente significa que a Paradox foi parar nos barris do 16 Anos, e
que os barris do Prophecy acabaram recebendo a Bitch Please?
Barris usados da destilaria de Jura. Será que
algum
desses foi parar na Brewdog?
Fonte: http://www.flickr.com/photos/50506404@N02 |
Mais devagar com o andor. Nesse caso, de fato o santo é de
barro. Hoje em dia, com a moda das “barrel-aged beers”, há um certo marketing
que superexplora a relação entre a cerveja e os barris. Isso ocorre, em parte,
porque a influência da madeira na maturação da cerveja é complexa e
diversificada, um pouco difícil de entender para o consumidor comum. Dizer que
uma cerveja maturada em barris de uísque vai ter “gosto de uísque” é um atalho
mais rápido, uma correlação analógica de fácil compreensão; porém, muito
enganosa. Vejamos o porquê.
Em primeiro lugar, porque há diversas maneiras de se
reutilizar um barril. Algumas cervejarias recebem os barris ainda encharcados
da bebida que estava lá antes e o preenchem imediatamente com suas cervejas.
Nesses casos, o sabor da bebida anterior realmente irá se integrar com mais
força à cerveja. Mas isso significa que a madeira, em si, fica em segundo
plano, pois a maturação da bebida anterior já extraiu a maior parte das
substâncias químicas presentes na madeira. Para potencializar as trocas
químicas entre a madeira e a cerveja, algumas cervejarias “renovam” o barril,
raspando a parte interna e recompondo a tosta para que a madeira esteja mais
“fresca”. Outras cervejarias, ainda, preferem limitar a interferência entre a
madeira e a cerveja, optando por limpar e sanitizar o barril antes do uso, sem
revitalizar a madeira.
Além disso, o sabor e aroma da madeira é apenas uma das
características adicionadas à cerveja pela maturação em barris. Alguns barris
possuem maior ocorrência de fungos e bactérias residentes que podem ocasionar
características ácidas à cerveja. A madeira também acelera a oxigenação da
cerveja, de modo que muitas vezes a transformação mais evidente não veio da
madeira em si, mas da oxidação do líquido. Os resultados finais do processo
serão totalmente diferentes conforme as características do barril e os métodos
empregados pela cervejaria. Às vezes, a bebida que estava lá anteriormente tem
influência pequena no resultado final.
É aí que podemos adotar um saudável ceticismo em relação ao
alcance de uma “degustação de barris”. Para mim, a experiência foi mais
interessante para mostrar um universo aberto de possíveis do que para chegar a
uma única conclusão fechada. É verdade que uma característica comum a todas as
bebidas da noite com certeza proveio dos barris: a sensação de salgado, que não
é da madeira em si, mas da maresia da Ilha de Jura. Para além disso, resta o
inefável e indefinível mistério. A baunilha da Paradox é a mesma baunilha do
Jura 16 Anos? Sem dúvida, mas essa é uma característica do carvalho, e não
exclusivamente do uísque: dois barris totalmente diferentes podem adicionar o
mesmo aroma às duas bebidas, independentemente. Mas o defumado da Bitch Please
é igualzinho ao do Jura Prophecy! Sim, sem dúvida; contudo, o rótulo da Brewdog
informa claramente que a Bitch Please é produzida usando malte turfado como ingrediente – o mesmo malte turfado que
dá o aroma defumado ao uísque. Portanto, a similaridade aí vem da
matéria-prima, e não necessariamente do barril. Voltamos, portanto, à estaca
zero. Mas tudo bem, porque a jornada já nos recompensou abundantemente!
Esclarecimento: a degustação foi gratuita, e O Cru e o Maltado participou a convite do Empório Alto dos Pinheiros.
Esclarecimento: a degustação foi gratuita, e O Cru e o Maltado participou a convite do Empório Alto dos Pinheiros.
Muito bom Alexandre. Depois coloque alguma coisa sobre as cervejas nacionais maturadas em madeira. Não se esqueça da 3 lobos!
ResponderExcluirGrande Bruno!
ExcluirEstou cozinhando a ideia de um dossiê sobre cervejas maturadas em barris; quem sabe não escrevo em algum momento do ano que vem? Com certeza a 3 Lobos Bravo vai entrar, é uma das minhas nacionais preferidas (e, se você for olhar as cervejas indicadas para iniciantes aqui do blog, vai vê-la na lista!). Mas as cervejarias nacionais estão numa fase de experimentação com barris, e acho que dentro de uns 2 anos teremos vários rótulos nacionais com passagem por madeira. Se você gosta da Bravo, prove a Way Amburana Lager, que é maturada em barris de umburana também. São cervejas com perfis e propostas muito diferentes, vale a pena o comparativo!
E aquela ideia sua de comprar um barril de umburana para maturar as suas crias? Tá de pé ainda??? :-D
Abraços!
Alexandre A. Marcussi
Depois de um longo intervalo, volto ao blog e claro que não me surpreendi, muito bacana o artigo!
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