sábado, 15 de dezembro de 2012

Degustação de barris: Brewdog e Jura


Degustações temáticas são sempre desafiadoras, instrutivas e divertidas. Nós, aficionados por cervejas, já estamos acostumados a diversas possibilidades: degustações verticais de várias safras de um mesmo rótulo, degustações horizontais de vários rótulos da mesma cervejaria, degustações horizontais de vários rótulos do mesmo estilo. As possibilidades são diversas. Convenhamos que já existe alguma coisa de neurótico nessas degustações mais “correntes”. Mas, no dia 03 de dezembro, tive a oportunidade de participar de um evento que, para mim, era novidade: uma degustação de barris.

Mas este barril de Bordeaux é uma iguaria!
Fonte: thepetwiki.com
Que diabos é isso? É sabido que uma das mais cultuadas tendências internacionais no mundo cervejeiro são as cervejas envelhecidas em barris de madeira. Algumas usam barris novos, especialmente confeccionados para maturar cerveja, outras usam barris já empregados na maturação de outras bebidas alcoólicas, como bourbon (um clássico da escola americana), vinho branco e tinto, uísque, Calvados, vinho do Porto, e por aí vamos. O mais comum é vermos barris de carvalho, mas os cervejeiros têm experimentado com outras madeiras menos tradicionais – e podemos dizer que o Brasil tem se destacado no emprego da umburana, uma das nossas madeiras mais típicas. Há todo um horizonte de possibilidades abertas.

A inventiva cervejaria escocesa Brewdog lançou, recentemente, dois rótulos envelhecidos em madeira: a Paradox Jura, uma potente imperial stout, e a Bitch Please, uma barley wine feita em parceria com os americanos da 3 Floyds. Essas duas cervejas têm uma coisa em comum: são maturadas em barris de carvalho usados anteriormente para envelhecer os uísques escoceses Jura. Ocorre que temos disponíveis, no mercado brasileiro, alguns rótulos do uísque Jura. A ideia, proposta e organizada por Paulo Almeida, do Empório Alto dos Pinheiros, e orientada por Fernando Gurgel, da Casa Flora (importadora dos uísques Jura) e por Gilberto Tarantino, da Tarantino Multibeer (importador das cervejas Brewdog), era uma degustação comparada dos uísques Jura e das Brewdog maturadas nos barris da mesma destilaria. O desafio? Tentar encontrar possíveis similaridades decorrentes do uso dos mesmos barris, e quem sabe arriscar quais rótulos do uísque Jura haviam sido maturados nos barris que depois foram usados pela Brewdog.

As respostas não foram definitivas. Alguns palpites aqui ou ali, mas nenhuma certeza. Como historiador de profissão, eu me habituei a pensar que, na verdade, as perguntas que fazemos e os caminhos pelos quais elas nos levam são mais importantes do que as respostas que tentamos dar a elas. Para mim, portanto, a degustação mostrou-se uma grande oportunidade para questionar algumas convicções correntes e pensar nas diversas possibilidades do uso da madeira e dos ainda pouco compreendidos intercâmbios entre cervejas e outras bebidas alcoólicas. Roberto Fonseca, do blog do B.O.B., também esteva lá e escreveu suas impressões sobre a degustação. Para não repetir o que ele já disse, quero compartilhar com meus leitores os questionamentos que a degustação suscitou em mim.

Os uísques da Ilha de Jura

Alguns single malts da destilaria Jura.
Fonte: beveragemedia.com
Começamos a noite por três uísques da destilaria Jura. Uísques, de maneira geral, têm algumas similaridades importantes com nossas amadas cervejas, pois são bebidas destiladas produzidas também à base de malte de cevada. Na fabricação de um uísque, um fermentado de cevada (similar a uma cerveja sem lúpulo) é destilado para dar origem a uma bebida que depois matura durante alguns anos em barris de madeira, apurando aromas e sabores. Existem uísques blendados, que levam outros grãos além da cevada para padronizar e suavizar o sabor, e os prestigiados single malts, que são produzidos a partir de uma única destilação, usando exclusivamente malte de cevada. Quando temos destilados de malte de cevada de várias destilarias, misturados para criar a bebida final, o produto é chamado simplesmente de pure malt (ou ainda vatted).

Pois bem, a Jura é uma destilaria fundada em 1810, que produz apenas uísques single malt. Na degustação, tivemos a oportunidade de provar três rótulos: o Jura 10 Anos Origin, o Jura 16 Anos Diurachs Own e o Jura Prophecy. Esse último é produzido usando 100% de maltes turfados, isto é, feitos pelo método escocês tradicional, em fornos alimentados com turfa (um tipo de solo de matéria vegetal), que dão um sabor defumado ao grão. Todos eles possuem algumas características comuns do terroir. Como a destilaria fica na pequena Ilha de Jura, a maresia impregna os barris de sal e iodo, características que se transferem aos uísques, dando-lhes um sólido paladar salgado (mais acentuado conforme cresce o tempo de envelhecimento).

Apesar das características comuns, as diferenças entre os rótulos são muito perceptíveis, mesmo para um leigo como eu. O Origin é o mais suave e acessível de todos: sensação gentil, com aroma evidente de mel, sabor de madeira suave, um toque abaunilhado que vai se desenvolvendo com o tempo e o álcool muito bem ocultado. O Diurachs Own, meu preferido da noite, mostra-se mais marcante e complexo: aromas intensos de baunilha, mel e especiarias, talvez até algo frutado, sabor mais acentuado de madeira e um paladar salgado e picante, com álcool mais presente. O Prophecy, para mim, foi uma absoluta surpresa: aroma e sabor pesadamente defumados, lembrando lenha queimada e bacon, e forte gosto salgado. Único, mas achei que o peso da defumação do malte turfado acabou encobrindo um pouco a elegante complexidade do 16 Anos.

As cervejas da Brewdog

A degustação temática prosseguiu com dois rótulos da Brewdog. Inicialmente, a proposta era degustar apenas a imperial stout Brewdog Paradox Jura. Por sugestão da equipe da Tarantino, abriu-se na sequência a barleywine Brewdog/3 Floyds Bitch Please. Ambas são maturadas em barris da destilaria de Jura. Vejamos um pouco sobre cada uma.

Fonte: 1001oel.com

Estilo: (barrel-aged) American imperial stout
Teor alcoólico: 15%
Aparência: líquido preto, grosso, totalmente opaco, com licorosidade visível e um creme de desempenho razoável se considerarmos seu alto teor alcoólico
Aromas: no nariz destacam-se primeiro os lúpulos, de perfil americano e frutado, remetendo a maracujá e manga. Depois aparecem as características do barril: algum coco, defumado suave, sabor de carvalho e uma baunilha que vai se tornando deliciosamente mais intensa à medida que a temperatura aumenta, ao lado de um aroma de cereja ao marrasquino. O torrado do malte não é tão intenso quanto se espera, mas café, queimado e caramelo estão lá. A longa maturação contribui com um sutil oxidado lembrando couro. Sobre isso tudo, predomina uma licorosidade intensa do álcool, lembrando melaço e gim.
Paladar: a doçura é uma pancada, dando à cerveja ares de licor, mas um forte salgado de maresia lhe dá equilíbrio, junto com o correto amargor final. Seu final é quente e picante, um pouco intenso demais.
Sensação na boca: o corpo é grosso, com textura licorosa e de xarope que chega a ser um pouco enjoativa com o tempo. Não é uma cerveja para se beber em quantidade. Uma certa adstringência trai a passagem pela madeira.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Paradox Jura faz parte de uma linha especial da Brewdog, composta por imperial stouts com passagem por barris de madeira oriundos de diferentes destilarias escocesas. A versão de 2012 foi feita com teor alcoólico mais elevado, chegando a impressionantes 15%, e foi maturada durante 9 meses nos barris da Jura. O rótulo apresenta um interessante texto falando sobre a história dos barris: feitos de carvalho americano, eles foram primeiramente usados para a fabricação de bourbon, depois adquiridos pela destilaria Jura, usados para envelhecer uísque e, finalmente, adquiridos pela Brewdog. Mas não se afirma quanto tempo o uísque Jura passou dentro do barril. A madeira é clara, mas não dominante: além de um leve defumado turfado, ela contribui com notas sólidas de baunilha que, combinadas à licorosidade e à sensação doce e xaroposa da cerveja, dão à bebida ares de sobremesa. O torrado do malte é claro, mas também secundário diante da forte doçura. Sua evolução na taça é notável: com o tempo, a baunilha e o frutado vão se abrindo e deixando-a elegante e bem-resolvida. É uma cerveja para se beber lentamente, que vai se tornando mais íntima a cada gole.

Fonte: brewtiful.com

Estilo: (barrel-aged) American barleywine
Teor alcoólico: 11.5%
Aparência: coloração marrom-alaranjada escura, com bastante opacidade e creme de baixa formação, mas boa persistência
Aromas: imensa complexidade de aromas. É uma das cervejas mais complexas que já degustei, com um monte de sensações sobrepostas, gerando até excesso de informação, já que nem todas elas se integram sempre em perfeita harmonia. Predominam as sensações do malte, com caramelo, castanhas e um intenso defumado de turfa. Os lúpulos, ecléticos, trazem um frutado norte-americano (manga) e tons herbais e picantes ingleses. O estágio de 8 meses pela madeira traz impressões de xarope, mel, plástico, couro, madeira queimada e iodo. Por fim, notas frutadas lembrando banana juntam-se a uma sensação salgada de tomates secos. Rústica, singularíssima.
Paladar: um pouco chapado demais para o estilo, com amargor predominante (sobretudo no final, de forma até um tanto agressiva) e uma singular sensação salgada, extremamente intensa.
Sensação na boca: tem corpo intenso e textura cremosa, com sensação de “substância”, que preenche a boca devido ao salgado.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Bitch Please é uma reinterpretação “escocesa” do estilo barleywine, tipicamente inglês. Isso se deve não apenas ao uso dos barris de scotch whisky, mas sobretudo devido ao uso abundante de malte turfado, que lhe dá uma intensa rusticidade e uma assertiva sensação defumada e salgada. Também leva toffee e biscoito doce na receita. Mas não deixe esses ingredientes “meigos” te enganarem: a Bitch Please é uma cerveja extremamente masculina, viril, até áspera e estúpida talvez, transbordando personalidade. Ela não te deixa indiferente, é como se ficasse “chamando para o pau” a cada novo gole. Claro que, com isso, ela perde elegância e sofisticação (o que mais me incomoda é que nem sempre as sensações se integram harmoniosamente, antes brigando umas com as outas ao longo da degustação), mas não creio que sua proposta seja ser “sofisticada”. Vide seu nome, bitch.

Qual é o barril? Três goles, maestro!

Afinal de contas, os barris usados pela Brewdog haviam sido usado antes para envelhecer qual (ou quais) dos uísques Jura? Algumas respostas foram sugeridas, insinuadas pelos vários participantes da degustação. Mas, repito, acredito que seja um dos casos em que fazer a pergunta é mais interessante do que tentar (temerariamente) respondê-la. Ora, nossos sentidos podem facilmente nos induzir ao erro nesse caso. É tentador estabelecer uma correlação entre o intenso abaunilhado da Paradox Jura e do Jura 16 Anos Diurachs Own, bem como entre a defumação da Bitch Please e do Jura Prophecy. Mas isso realmente significa que a Paradox foi parar nos barris do 16 Anos, e que os barris do Prophecy acabaram recebendo a Bitch Please?

Barris usados da destilaria de Jura. Será que 
algum desses foi parar na Brewdog?
Fonte: http://www.flickr.com/photos/50506404@N02
Mais devagar com o andor. Nesse caso, de fato o santo é de barro. Hoje em dia, com a moda das “barrel-aged beers”, há um certo marketing que superexplora a relação entre a cerveja e os barris. Isso ocorre, em parte, porque a influência da madeira na maturação da cerveja é complexa e diversificada, um pouco difícil de entender para o consumidor comum. Dizer que uma cerveja maturada em barris de uísque vai ter “gosto de uísque” é um atalho mais rápido, uma correlação analógica de fácil compreensão; porém, muito enganosa. Vejamos o porquê.

Em primeiro lugar, porque há diversas maneiras de se reutilizar um barril. Algumas cervejarias recebem os barris ainda encharcados da bebida que estava lá antes e o preenchem imediatamente com suas cervejas. Nesses casos, o sabor da bebida anterior realmente irá se integrar com mais força à cerveja. Mas isso significa que a madeira, em si, fica em segundo plano, pois a maturação da bebida anterior já extraiu a maior parte das substâncias químicas presentes na madeira. Para potencializar as trocas químicas entre a madeira e a cerveja, algumas cervejarias “renovam” o barril, raspando a parte interna e recompondo a tosta para que a madeira esteja mais “fresca”. Outras cervejarias, ainda, preferem limitar a interferência entre a madeira e a cerveja, optando por limpar e sanitizar o barril antes do uso, sem revitalizar a madeira.

Além disso, o sabor e aroma da madeira é apenas uma das características adicionadas à cerveja pela maturação em barris. Alguns barris possuem maior ocorrência de fungos e bactérias residentes que podem ocasionar características ácidas à cerveja. A madeira também acelera a oxigenação da cerveja, de modo que muitas vezes a transformação mais evidente não veio da madeira em si, mas da oxidação do líquido. Os resultados finais do processo serão totalmente diferentes conforme as características do barril e os métodos empregados pela cervejaria. Às vezes, a bebida que estava lá anteriormente tem influência pequena no resultado final.

É aí que podemos adotar um saudável ceticismo em relação ao alcance de uma “degustação de barris”. Para mim, a experiência foi mais interessante para mostrar um universo aberto de possíveis do que para chegar a uma única conclusão fechada. É verdade que uma característica comum a todas as bebidas da noite com certeza proveio dos barris: a sensação de salgado, que não é da madeira em si, mas da maresia da Ilha de Jura. Para além disso, resta o inefável e indefinível mistério. A baunilha da Paradox é a mesma baunilha do Jura 16 Anos? Sem dúvida, mas essa é uma característica do carvalho, e não exclusivamente do uísque: dois barris totalmente diferentes podem adicionar o mesmo aroma às duas bebidas, independentemente. Mas o defumado da Bitch Please é igualzinho ao do Jura Prophecy! Sim, sem dúvida; contudo, o rótulo da Brewdog informa claramente que a Bitch Please é produzida usando malte turfado como ingrediente – o mesmo malte turfado que dá o aroma defumado ao uísque. Portanto, a similaridade aí vem da matéria-prima, e não necessariamente do barril. Voltamos, portanto, à estaca zero. Mas tudo bem, porque a jornada já nos recompensou abundantemente!

Esclarecimento: a degustação foi gratuita, e O Cru e o Maltado participou a convite do Empório Alto dos Pinheiros.

3 comentários:

  1. Muito bom Alexandre. Depois coloque alguma coisa sobre as cervejas nacionais maturadas em madeira. Não se esqueça da 3 lobos!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grande Bruno!

      Estou cozinhando a ideia de um dossiê sobre cervejas maturadas em barris; quem sabe não escrevo em algum momento do ano que vem? Com certeza a 3 Lobos Bravo vai entrar, é uma das minhas nacionais preferidas (e, se você for olhar as cervejas indicadas para iniciantes aqui do blog, vai vê-la na lista!). Mas as cervejarias nacionais estão numa fase de experimentação com barris, e acho que dentro de uns 2 anos teremos vários rótulos nacionais com passagem por madeira. Se você gosta da Bravo, prove a Way Amburana Lager, que é maturada em barris de umburana também. São cervejas com perfis e propostas muito diferentes, vale a pena o comparativo!

      E aquela ideia sua de comprar um barril de umburana para maturar as suas crias? Tá de pé ainda??? :-D

      Abraços!
      Alexandre A. Marcussi

      Excluir
  2. Depois de um longo intervalo, volto ao blog e claro que não me surpreendi, muito bacana o artigo!

    ResponderExcluir