Na primeira parte desta matéria sobre cerveja e mitologia,
comentei o papel do cauim como “bebida da imortalidade” entre os tukuna da
região amazônica. Vimos que, ao beberem a cerveja, os índios puderam unir-se
aos deuses e tornar-se imortais. Mortalidade, imortalidade. Parece uma
contraposição muito familiar para nós: na maior parte das religiões da nossa
cultura também existe uma divisão da vida entre um corpo mortal e uma alma
imortal.
A terceira vida
Mas os índios sul-americanos não se limitam a esses dois
estados. Para eles, além da mortalidade dos homens comuns e da imortalidade dos
deuses, existiria ainda uma “terceira vida”, uma outra forma, mais restrita, de
“imortalidade”. E, de novo, a cerveja tem tudo a ver com essa terceira vida.
Vejamos como isso ocorre a partir de mais um mito da etnia tukuna, um pouco
mais elaborado do que aquele que discutimos antes: o mito da vida longa.
A vida longa
Confinada em sua cela da
puberdade, uma virgem ouviu o chamado dos imortais. Respondeu imediatamente e
pediu a imortalidade. Naquele momento, ocorria uma festa. Entre os convidados
havia uma jovem, que estava noiva de Tartaruga, mas o desprezava, pois ele se
alimentava de orelha-de-pau, e cortejava Falcão.
Durante toda a festa, ela ficou
fora da cabana com seu bem-amado (o Falcão), a não ser por um instante, para
beber cauim. Tartaruga notou sua saída apressada e lançou uma maldição:
repentinamente, o couro de anta sobre o qual estavam sentados a virgem e os
convidados elevou-se nos ares, sem que Tartaruga tivesse tempo de tomar seu
lugar nele.
Os dois amantes veem o couro e
seus ocupantes, já bem alto no céu. Os irmãos da jovem lançam um cipó até ela,
para poderem subir até lá; mas ela não devia abrir os olhos! Ela desobedece e
grita: “O cipó é muito fino! Vai rebentar!”. O cipó cede de fato. Na queda, a
jovem se transforma em pássaro.
As Plêiades no céu noturno. Não está enxergando
Tartaruga, a jovem índia e os demais convidados?
|
Tartaruga quebrou as jarras
repletas de bebida e esta, que estava cheia de vermes, se esparramou pelo chão,
onde as formigas e as outras criaturas que trocam de pele a lamberam; por isso
elas não envelhecem. Tartaruga transformou-se em pássaro e foi juntar-se aos
seus companheiros no mundo do alto. O couro e seus ocupantes ainda podem ser
vistos hoje em dia: forma o halo lunar (em outra versão: a constelação das
Plêiades).
Vamos lá, deixe o relativismo cultural e o
politicamente correto de lado e admita: você achou o mito uma balbúrdia sem pé
nem cabeça, não é mesmo? Só podia ser história de bêbado! Então vamos tentar
destrinchar os fios da história para entendermos o que a cerveja está fazendo
no meio dessa confusão toda. Você verá que a história toda tem uma lógica
implacável.
O mito se propõe a explicar o surgimento da “vida longa”.
Não se trata nem da mortalidade dos homens, nem da imortalidade dos deuses. O
mito começa com o pedido de uma virgem (mortal) pela imortalidade, e terminará
com o surgimento de uma espécie de vida intermediária entre a mortalidade e a
imortalidade. Ora, os deuses são imortais porque não morrem jamais, permanecem
sempre na mesma forma em que estão. Os homens, pelo contrário, nascem bebês,
crescem, envelhecem, definham e eventualmente morrem e apodrecem, numa
progressão linear e irreversível. Mas existem alguns seres que conseguem
“reverter” essa progressão em direção à morte e ao apodrecimento, pelo menos
temporariamente: são os animais que trocam de pele ou de carcaça, como as
cobras e vários tipos de insetos. Quando estão se aproximando da decrepitude,
eles “trocam” de corpo e voltam a rejuvenescer. Nem mortais nem imortais, eles
atingem a “vida longa” através de uma espécie de ressurreição periódica.
Cru, cozido, podre
Toda a história se desenvolve em torno de um triângulo
amoroso. A jovem índia era noiva de Tartaruga e amante de Falcão. Ela
desprezava Tartaruga, pois seu noivo comia orelhas-de-pau, uma espécie de fungo
que se desenvolve nos troncos das árvores. Ou seja, Tartaruga era odiado porque
comia alimentos podres. Falcão, por sua vez, era admirado e desejado: em vez de
se alimentar do podre, Falcão comia carne crua. A jovem, como índia que era,
comia alimentos cozidos. Temos aqui uma tríade alimentar: cru-cozido-podre, que
corresponde a uma tríade de estados vitais: imortalidade-vida
longa-mortalidade.
Sinceramente: você levaria a sério alguém
que come isto?
Fonte: tresorelhas.com.br |
A jovem não admite
misturar os alimentos: ela claramente escolhe o cru em detrimento do podre.
Como consequência, sofre a maldição de Tartaruga, eleva-se aos ares e
transforma-se em pássaro (um comedor de cru, tal como o Falcão), junto com
todos os ocupantes do couro de anta sobre o qual ela estava sentada. Já vimos,
no mito da bebida da imortalidade, como a anta (tapir) era o elemento de
ligação entre o mundo terreno dos mortais e o mundo celeste dos imortais. Aqui,
o couro da anta exerce o mesmo papel de mediação, permitindo aos homens mortais
que se tornem pássaros e, no fim das contas, estrelas no mundo celeste. A
incapacidade desses três personagens (jovem índia, Falcão e Tartaruga) de conjugar
os regimes alimentares vai obrigá-los a uma escolha drástica entre a vida
mortal e a imortalidade no mundo dos céus.
O mito narra as peripécias envolvendo as tentativas de se
resgatar a jovem do mundo dos céus, mas ela estraga tudo quando abre os olhos. Um
personagem que desavisadamente ouve ou vê mais do que devia e, com isso, causa
uma separação drástica (aqui, entre o céu e a terra) é uma figura comum na
mitologia indígena, mas não cabe aqui explorar o seu significado. Quero pular
logo para a parte que nos diz respeito diretamente: o cauim. O que ele tem a
ver com essa “terceira vida” intermediária dos insetos e cobras?
O cauim, como vimos, era uma bebida
fermentada preparada a partir das raízes da mandioca, espécie de “cerveja de
mandioca” muito consumida pelos índios. O mito indica que os jarros de cauim
estavam “cheios de vermes”, e isso se compreende facilmente pelo processo de
produção da bebida. Como vimos, a mandioca cozida devia ser mastigada e deixada
fermentar e azedar espontaneamente para se produzir o cauim. Interessante
conjunção de regimes alimentares: o cauim era um alimento ao mesmo tempo cozido e podre. Diferentemente da jovem índia, que
come cozido e troca o podre pelo cru, o cauim une o cozido e o podre num único
alimento. Em vez de separar as esferas do mundo, ele as reúne em si. É por isso
que o mito tukuna nos conta que as formigas e todos os animais que lamberam o
cauim ganharam a vida longa: isto é, eles não foram forçados a escolher entre a
mortalidade terrena e a imortalidade celeste, mas ficaram com uma espécie de “imortalidade
intermediária” por meio da qual trocam seus corpos “apodrecidos” por outros
corpos novos e jovens. A cerveja, portanto, os rejuvenesce, ao contrário do que
ocorre com os homens mortais, que apenas envelhecem e morrem.
“Mamãe, enchi a cara de cerveja!”
Fonte: cobramania.com |
Bebida de propriedades extraordinárias, para os índios, a
cerveja permite a conjunção entre os homens e os deuses, assim como revela uma
solução intermediária entre a imortalidade e a morte. Em grande parte, isso
ocorre porque ela é um alimento que transita entre os mundos alimentares: vem
de uma raiz crua, é cozido pelos homens e depois deixado apodrecer “naturalmente”.
O cauim vem da natureza, é retrabalhado pelos homens e dado de volta para ser
finalizado pela natureza.
É comum escutar dos nossos produtores de cerveja, mesmo nas
cervejarias industriais mais modernas, que o mestre-cervejeiro não produz
cerveja. Ele produz mosto, que então é posto para fermentar. Quem produz a cerveja
são as leveduras, no maravilhoso e misterioso processo da fermentação, nem
sempre passível de 100% de controle pelo homem. Fazer cerveja é confiar na
natureza, conceder-lhe o fruto do nosso trabalho humano (o mosto) para que ela
nos retorne a dádiva da “bebida da imortalidade”. Sejamos reverentes, pois!
Nenhum comentário:
Postar um comentário