terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Cerveja e mitologia - Parte II: As três vidas


Na primeira parte desta matéria sobre cerveja e mitologia, comentei o papel do cauim como “bebida da imortalidade” entre os tukuna da região amazônica. Vimos que, ao beberem a cerveja, os índios puderam unir-se aos deuses e tornar-se imortais. Mortalidade, imortalidade. Parece uma contraposição muito familiar para nós: na maior parte das religiões da nossa cultura também existe uma divisão da vida entre um corpo mortal e uma alma imortal.

A terceira vida

Mas os índios sul-americanos não se limitam a esses dois estados. Para eles, além da mortalidade dos homens comuns e da imortalidade dos deuses, existiria ainda uma “terceira vida”, uma outra forma, mais restrita, de “imortalidade”. E, de novo, a cerveja tem tudo a ver com essa terceira vida. Vejamos como isso ocorre a partir de mais um mito da etnia tukuna, um pouco mais elaborado do que aquele que discutimos antes: o mito da vida longa.

A vida longa
                Confinada em sua cela da puberdade, uma virgem ouviu o chamado dos imortais. Respondeu imediatamente e pediu a imortalidade. Naquele momento, ocorria uma festa. Entre os convidados havia uma jovem, que estava noiva de Tartaruga, mas o desprezava, pois ele se alimentava de orelha-de-pau, e cortejava Falcão.
                Durante toda a festa, ela ficou fora da cabana com seu bem-amado (o Falcão), a não ser por um instante, para beber cauim. Tartaruga notou sua saída apressada e lançou uma maldição: repentinamente, o couro de anta sobre o qual estavam sentados a virgem e os convidados elevou-se nos ares, sem que Tartaruga tivesse tempo de tomar seu lugar nele.
                Os dois amantes veem o couro e seus ocupantes, já bem alto no céu. Os irmãos da jovem lançam um cipó até ela, para poderem subir até lá; mas ela não devia abrir os olhos! Ela desobedece e grita: “O cipó é muito fino! Vai rebentar!”. O cipó cede de fato. Na queda, a jovem se transforma em pássaro.
As Plêiades no céu noturno. Não está enxergando 
Tartaruga, a jovem índia e os demais convidados?
                Tartaruga quebrou as jarras repletas de bebida e esta, que estava cheia de vermes, se esparramou pelo chão, onde as formigas e as outras criaturas que trocam de pele a lamberam; por isso elas não envelhecem. Tartaruga transformou-se em pássaro e foi juntar-se aos seus companheiros no mundo do alto. O couro e seus ocupantes ainda podem ser vistos hoje em dia: forma o halo lunar (em outra versão: a constelação das Plêiades).

Vamos lá, deixe o relativismo cultural e o politicamente correto de lado e admita: você achou o mito uma balbúrdia sem pé nem cabeça, não é mesmo? Só podia ser história de bêbado! Então vamos tentar destrinchar os fios da história para entendermos o que a cerveja está fazendo no meio dessa confusão toda. Você verá que a história toda tem uma lógica implacável.

O mito se propõe a explicar o surgimento da “vida longa”. Não se trata nem da mortalidade dos homens, nem da imortalidade dos deuses. O mito começa com o pedido de uma virgem (mortal) pela imortalidade, e terminará com o surgimento de uma espécie de vida intermediária entre a mortalidade e a imortalidade. Ora, os deuses são imortais porque não morrem jamais, permanecem sempre na mesma forma em que estão. Os homens, pelo contrário, nascem bebês, crescem, envelhecem, definham e eventualmente morrem e apodrecem, numa progressão linear e irreversível. Mas existem alguns seres que conseguem “reverter” essa progressão em direção à morte e ao apodrecimento, pelo menos temporariamente: são os animais que trocam de pele ou de carcaça, como as cobras e vários tipos de insetos. Quando estão se aproximando da decrepitude, eles “trocam” de corpo e voltam a rejuvenescer. Nem mortais nem imortais, eles atingem a “vida longa” através de uma espécie de ressurreição periódica.

Cru, cozido, podre

Toda a história se desenvolve em torno de um triângulo amoroso. A jovem índia era noiva de Tartaruga e amante de Falcão. Ela desprezava Tartaruga, pois seu noivo comia orelhas-de-pau, uma espécie de fungo que se desenvolve nos troncos das árvores. Ou seja, Tartaruga era odiado porque comia alimentos podres. Falcão, por sua vez, era admirado e desejado: em vez de se alimentar do podre, Falcão comia carne crua. A jovem, como índia que era, comia alimentos cozidos. Temos aqui uma tríade alimentar: cru-cozido-podre, que corresponde a uma tríade de estados vitais: imortalidade-vida longa-mortalidade.

Sinceramente: você levaria a sério alguém
que come isto?
Fonte: tresorelhas.com.br
A jovem não admite misturar os alimentos: ela claramente escolhe o cru em detrimento do podre. Como consequência, sofre a maldição de Tartaruga, eleva-se aos ares e transforma-se em pássaro (um comedor de cru, tal como o Falcão), junto com todos os ocupantes do couro de anta sobre o qual ela estava sentada. Já vimos, no mito da bebida da imortalidade, como a anta (tapir) era o elemento de ligação entre o mundo terreno dos mortais e o mundo celeste dos imortais. Aqui, o couro da anta exerce o mesmo papel de mediação, permitindo aos homens mortais que se tornem pássaros e, no fim das contas, estrelas no mundo celeste. A incapacidade desses três personagens (jovem índia, Falcão e Tartaruga) de conjugar os regimes alimentares vai obrigá-los a uma escolha drástica entre a vida mortal e a imortalidade no mundo dos céus.

O mito narra as peripécias envolvendo as tentativas de se resgatar a jovem do mundo dos céus, mas ela estraga tudo quando abre os olhos. Um personagem que desavisadamente ouve ou vê mais do que devia e, com isso, causa uma separação drástica (aqui, entre o céu e a terra) é uma figura comum na mitologia indígena, mas não cabe aqui explorar o seu significado. Quero pular logo para a parte que nos diz respeito diretamente: o cauim. O que ele tem a ver com essa “terceira vida” intermediária dos insetos e cobras?

O cauim, como vimos, era uma bebida fermentada preparada a partir das raízes da mandioca, espécie de “cerveja de mandioca” muito consumida pelos índios. O mito indica que os jarros de cauim estavam “cheios de vermes”, e isso se compreende facilmente pelo processo de produção da bebida. Como vimos, a mandioca cozida devia ser mastigada e deixada fermentar e azedar espontaneamente para se produzir o cauim. Interessante conjunção de regimes alimentares: o cauim era um alimento ao mesmo tempo cozido e podre. Diferentemente da jovem índia, que come cozido e troca o podre pelo cru, o cauim une o cozido e o podre num único alimento. Em vez de separar as esferas do mundo, ele as reúne em si. É por isso que o mito tukuna nos conta que as formigas e todos os animais que lamberam o cauim ganharam a vida longa: isto é, eles não foram forçados a escolher entre a mortalidade terrena e a imortalidade celeste, mas ficaram com uma espécie de “imortalidade intermediária” por meio da qual trocam seus corpos “apodrecidos” por outros corpos novos e jovens. A cerveja, portanto, os rejuvenesce, ao contrário do que ocorre com os homens mortais, que apenas envelhecem e morrem.

“Mamãe, enchi a cara de cerveja!”
Fonte: cobramania.com
Bebida de propriedades extraordinárias, para os índios, a cerveja permite a conjunção entre os homens e os deuses, assim como revela uma solução intermediária entre a imortalidade e a morte. Em grande parte, isso ocorre porque ela é um alimento que transita entre os mundos alimentares: vem de uma raiz crua, é cozido pelos homens e depois deixado apodrecer “naturalmente”. O cauim vem da natureza, é retrabalhado pelos homens e dado de volta para ser finalizado pela natureza.

É comum escutar dos nossos produtores de cerveja, mesmo nas cervejarias industriais mais modernas, que o mestre-cervejeiro não produz cerveja. Ele produz mosto, que então é posto para fermentar. Quem produz a cerveja são as leveduras, no maravilhoso e misterioso processo da fermentação, nem sempre passível de 100% de controle pelo homem. Fazer cerveja é confiar na natureza, conceder-lhe o fruto do nosso trabalho humano (o mosto) para que ela nos retorne a dádiva da “bebida da imortalidade”. Sejamos reverentes, pois!

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