É, eu sei que, a princípio, a matéria sobre as bières brut deveria acabar na oitava
parte. Mas uma coisa da qual se pode ter certeza sobre os historiadores é que,
se você os deixar, eles divagarão infinitamente. E, para a minha felicidade (e
eventualmente para a infelicidade alheia), neste blog eu tenho espaço à vontade
para divagar. E cá estamos nós, de novo, em torno das bières brut. Mas agora vou tentar terminar de vez.
Por que não? Fonte: http://www.wineexpedition.com |
Ao contar a história
deste fascinante estilo cervejeiro, comentei que ele foi o fruto de uma troca
secular de expertise e tecnologia
entre a produção cervejeira e vinícola. Parece adequado, portanto, que eu tenha
sido levado a um insight sobre essas
cervejas degustando justamente um vinho. Fomos dos vinhos para a cerveja, agora
voltaremos aos vinhos – para acabar novamente nas cervejas. Essa é uma
experiência a que os cervejeiros deveriam se dedicar com maior frequência:
degustar vinhos nos coloca em território aparentado o suficiente com as
cervejas para que uma certa familiaridade se manifeste, mas distante o suficiente
para desafiar nossos sentidos e nos tirar da nossa “zona de conforto”.
Uma dúvida
angustiante
Pois bem, uma das dúvidas que haviam ficado em aberto para
mim, a respeito das bières brut, era
uma certa semelhança aromática entre alguns rótulos degustados e as cervejas do
estilo lambic. Havia alguma coisa lá, em 3 dos 5 rótulos degustados, que me fez
pensar “hm, cheiro de lambic”. Pior que isso, eu só percebi isso a posteriori,
comparando minhas notas de degustação tomadas em ocasiões independentes, o que
significa que não posso ter sido sugestionado por um rótulo a perceber o mesmo
nos demais.
Eu adoro lambics, mas a semelhança havia me colocado um
problema para o qual eu não tinha uma resposta. A princípio, a característica
mais distintiva das cervejas lambic, produzidas por fermentação espontânea, são
os aromas produzidos pelas leveduras “selvagens” do gênero Brettanomyces. Trata-se de aromas normalmente descritos como “animais”
(cobertor de cavalo, estábulo, couro etc.), e correspondem a um conjunto de
compostos fenólicos dentre os quais se destaca o 4-etil-fenol. O problema é
que, em teoria, não há ocorrência de leveduras do gênero Brettanomyces na produção das bières
brut, que usam apenas leveduras típicas para a produção de cervejas e
vinhos, do gênero Saccharomyces.
Célula de levedura do gênero Brettanomyces Fonte: http://www.etslabs.com |
Como
explicar a presença dos “aromas de lambic”, então? Poderia ser uma contaminação
por Brettanomyces? A princípio, isso
seria possível (já me ocorreu em outras cervejas que degustei), mas em 3 das 5
amostras? Poderia ser que as leveduras de espumante, ao se adaptarem aos
açúcares da cerveja durante a refermentação, tivessem produzido esse composto
fenólico? Nunca encontrei nenhuma indicação a respeito em minhas pesquisas e,
se fosse o caso, será que isso não deveria ocorrer também com outras cervejas
refermentadas com cepas típicas de espumantes? Diante desses impasses, só me
restou registrar a questão nas partes anteriores desta matéria e deixar o
assunto em aberto.
Brettanomyces, oxidação
Esse dias me ocorreu uma outra alternativa, bem mais
plausível. Ironicamente, depois de tanto escrever sobre bières brut, eu decidi comemorar meu ano-novo com... um espumante!
Escolhi dois rótulos diferentes da vinícola Casa Valduga, o Casa Valduga Arte Brut
e o Casa Valduga Premium Brut. Em parte, a escolha foi motivada pela descoberta
de que ambos eram produzidos pelo método tradicional (como é chamado o método champenoise quando é realizado fora da
região de Champagne). O Arte Brut passa 12 meses maturando sobre leveduras (o
mesmo que a Eisenbahn Lust Prestige), e o Premium Brut passa 25 meses. Apesar
disso, chegam ao consumidor com um preço bastante atrativo: R$ 35 e R$ 45,
respectivamente. Faz a gente se questionar a respeito do custo-benefício das bières brut, inclusive.
Enquanto eu degustava o Premium Brut, tive de novo aquele
déja-vu: “hm, cheiro de lambic”. Pois aí é que me deu o estalo: provavelmente
era a mesma coisa que eu tinha sentido nas bières
brut! E me lembrei de que, além dos aromas “animais” das Brettanomyces, havia um outro tipo de
aroma bem típico do perfil das lambics: uma substância chamada benzaldeído,
decorrente de processos de oxidação que ocorrem nas lambics durante a longa
maturação pela qual passam. Tem um aroma bem peculiar de amêndoas cruas (não as
torradas), entre o terroso e o mineral.
Pois bem, o rótulo do Casa Valduga Premium Brut de fato
usava o termo “amêndoas” ao descrever o bouquet do espumante, o que afastava
qualquer dúvida. Como esse aroma de amêndoas podia ser produzido por reações de
oxidação, condizia com o processo de fabricação do espumante, com sua longa
maturação de 25 meses. E, mais que isso, condizia também com o método de
produção das bières brut, pois elas
também passam por um longo período de maturação na garrafa. Eu já havia
identificado positivamente amêndoas na Eisenbahn Lust Prestige, então não seria
impossível que essa “sensação de lambic” que eu estava percebendo em outros
rótulos fosse também um toque de amêndoas. Bem mais plausível, e condizente com
o processo de fabricação, do que os aromas produzidos por Brettanomyces. Meu cérebro talvez tivesse tomado um “atalho mental”,
identificando prontamente “amêndoas” com “lambics” e me induzindo ao erro.
Restava ainda uma dificuldade. O rótulo em que eu tinha
encontrado essa “sensação de lambic” de forma mais intensa havia sido a
Eisenbahn Lust. Isso era bastante curioso, já que se tratava da cerveja com
menor tempo de maturação dentre todas as bières
brut, então deveria ter menos características de envelhecimento e maturação
estendida. Mas também me ocorreu que a garrafa que eu degustei estava quase
estourando a data de validade, de modo que a maturação dentro da garrafa, após a
expelição e já sem as leveduras, pode ter acentuado a presença de benzaldeído.
Não tenho uma explicação definitiva e, para mim, a questão segue
em aberto, à espera de novas deliciosas degustações para que seja esclarecida –
ou pelo menos confrontada mais uma vez. De qualquer forma, editei as partes
anteriores desta matéria para refletir essa minha nova impressão. Quanto mais
estudamos sobre qualquer coisa – e cervejas não são uma exceção –, mais as
perguntas se multiplicam. De qualquer modo, saio com duas novas intuições: em
primeiro lugar, a de que o aroma de amêndoas deve ter um papel bem mais
importante na composição do aroma das lambics do que normalmente se reconhece
no “senso comum” cervejeiro. Em segundo lugar, e mais importante, reforço minha
impressão de que uma visita ao mundo dos vinhos pode ser sempre uma experiência
enriquecedora para nossa apreciação de cervejas. Os fermentados todos são uma grande
família, e as bières brut são o maior
testemunho de que as trocas entre os dois mundos podem ser muito proveitosas.
Quem sou eu para ousar discordar?
Um espumante
Termino
esta matéria saindo da minha zona de conforto e apresentado aos colegas
cervejeiros uma indicação de espumante, justamente aquele que me deu o insight para este epílogo: o Casa
Valduga Premium Brut, safra 2006. Livre-se do seu preconceito a respeito de
vinhos nacionais, caso o tenha. O clima da Serra Gaúcha (com baixa insolação e
alta umidade) pode não ser o ideal para a produção de diversos tipos de vinhos,
mas é perfeito para a produção de espumantes, pois resulta em uvas com alta
acidez. Por isso, o Brasil produz alguns espumantes de reconhecida qualidade,
os quais deveríamos prestigiar mais frequentemente em vez de sair gastando mais
de R$ 200 num champagne básico por
aí.
O vinho-base do Casa Valduga Premium Brut é produzido a
partir de um corte em que entram 60% de uvas Chardonnay e 40% de Pinot Noir, e
ele passa por todas as etapas do método champenoise.
Sua maturação dentro da garrafa, com as leveduras, dura 25 meses – o dobro de
um champagne comum, mas não tanto
quanto um champagne millesimé. A
vinícola também comercializa uma versão com apenas 12 meses de maturação,
denominada Arte Brut, e outras três versões com 36, 48 e impressionantes 60
meses de maturação.
Na boca, o Premium Brut apresenta acidez dominante e viva e
uma secura agradável, de abrir o apetite, mas sem exageros. Seu aroma, muito
elegante e equilibrado, combina um aroma de frutas frescas com toques
expressivos de oxidação lembrando amêndoas cruas. Em comparação com o seu irmão
mais jovem, o Arte Brut, mostrou-se mais seco, mais maduro e menos frutado.
Infelizmente, minha pouca familiaridade com a degustação de vinhos me impede de
ir mais adiante na descrição, mas não me impede de registrar aqui a dica para
todos os amantes de cervejas e fermentados!
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