Existem várias maneiras de comparar cervejas. A mais simples
delas consiste simplesmente em dizer, dentre um número limitado de rótulos,
qual nos agradou mais. Pode ser a mais agradável de uma noite de degustações,
ou a que mais nos impressionou dentre as representantes de um estilo, ou a mais
instigante dentre as produzidas por uma cervejaria – ou até mesmo a que mais
nos agradou dentre todas as que já bebemos na vida. Mas essa também é a forma
mais inútil de comparar cervejas. Ora, a satisfação não apenas é um critério
altamente subjetivo e intransferível como também depende da situação, do
contexto: a cerveja que mais me agradou hoje pode não ser a que mais me
agradará amanhã. Pode ser que a garrafa que tomei hoje estivesse especialmente
fresca, ou pode ser que o papo que a acompanhou estivesse especialmente
animado, ou talvez que o prato que a escoltou fosse uma combinação
especialmente feliz.
Estabelecer critérios objetivos e claros é o primeiro passo
para tornar útil qualquer comparação – isto é, para que ela possa servir de
guia para outras pessoas, em outras situações. Claro que, a partir desse
momento, surge a dúvida mais importante: a partir de qual critério serão
comparadas as cervejas? Cervejas possuem diversos atributos objetivos que podem
ser comparados adequadamente: coloração, densidade do corpo, sensação
alcoólica, percepção frutada, doçura, amargor, acidez, e por aí vamos. É
preciso escolher um, ou um pequeno número deles, para tornar nossa comparação
útil. Claro que cada critério escolhido resultará em resultados muito
diferentes. Façamos um teste a partir dos 5 rótulos de bières brut que discutimos no último post. Em primeiro lugar, se
escolhermos como critério o amargor, teremos a seguinte escala:
No entanto, se optarmos pela acidez, o resultado seria mais
semelhante ao que temos abaixo:
E se quisermos comparar a doçura?
Alguns poderão protestar: “Uma comparação desse tipo,
característica por característica, é inútil! Eu quero saber qual delas é a
melhor!” Melhor para quê? A mais refrescante? Talvez a mais marcante? Ou a mais
complexa? Quem sabe a mais suave ao paladar? Qual é o critério mais correto?
Nenhum – ou melhor, qualquer um. Tudo depende do que você espera que a cerveja
faça por você. Se o objetivo é refrescar, ou quem sabe cortar melhor a
untuosidade de um queijo cremoso, pode ser interessante buscar aquela com maior
acidez – a Eisenbahn Lust. Já se você pretende servir com um prato muito
apimentado, pode ser interessante evitar a de maior amargor – a Malheur Bière
Brut – e optar pela mais adocicada – Deus Brut des Flandres. Se você quer uma
sensação intensa, procure aquela que apresenta a maior soma entre acidez e
amargor – justamente a Malheur, a mesma que evitaríamos há pouco!
Decompor uma cerveja da forma como fizemos é o primeiro
passo, mas podemos partir dele para começarmos a elaborar comparações mais
complexas e interessantes, conjugando diversos critérios. Se selecionarmos os nove mais importantes aspectos associados ao estilo bière brut, podemos traçar um perfil geral descrevendo de que
forma, e com que tipo de equilíbrio, cada rótulo concretiza o estilo.
Gráficos como esse, a princípio, podem parecer confusos, mas
basta observar com calma para perceber que ele consegue revelar,
simultaneamente, as características que mais diferenciam os rótulos uns dos
outros – ou seja, seu perfil particular dentro do estilo. Vejamos como cada um
dos rótulos se destaca nesse comparativo:
Deus Brut des
Flandres: leve, adocicada, frutada e com especiarias
Wäls Brut: leve,
frutada, amarga
Malheur Bière Brut:
amaga, ácida, madura
Eisenbahn Lust:
ácida
Eisenbahn Lust
Prestige: madura, floral
Estamos falando, ainda, em características sensoriais
objetivas. Claro, podemos ter maior ou menor sensibilidade a este ou aquele
gosto ou grupo de aromas, mas essas são características que estão de fato nas
cervejas, e não apenas na consciência do degustador. Mas tenho afirmado, desde
o primeiro post deste blog, que as cervejas também podem traduzir experiências
e conceitos culturais. Podemos agrupar várias características sensoriais e
traduzi-las com conceitos culturais. Comparadas com dados sensoriais objetivos,
categorias culturais têm a vantagem de poderem transmitir de forma mais direta
e mais facilmente compreensível a complexidade das experiências humanas – que é
o que buscamos, afinal de contas, ao sentarmos em uma mesa para dividir uma
garrafa com pessoas queridas.
Peguemos o conjunto de nove características que escolhi para representar
o estilo bière brut (aquelas
descritas no gráfico acima). Dentre essas possibilidades, poderíamos chamar de
“jovial” uma cerveja com mais frescor (acidez, aromas frutados), em contraste
com uma cerveja mais “madura” (amargor, mais traços de maturação e especiarias).
Também podemos chamar de “elegante” uma cerveja leve, delicada e complexa, ao
passo que seria mais “rústica” uma cerveja com mais amargor, mais corpo e mais
pegada. Com isso, poderíamos comparar melhor a identidade de cada rótulo a uma
situação, uma personalidade, uma pessoa – falamos em pessoas “joviais” ou
“maduras”, descrevemos pessoas, lugares e ocasiões como “elegantes” ou “rústicos”;
mas não falamos – a não ser metaforicamente – em pessoas e situações
“frutadas”, com “especiarias” ou “ácidas”. Então façamos a seguinte
brincadeira: se as nossas 5 bières brut
fossem pessoas, que personalidades elas teriam?
Comparações desse tipo nos ajudam a definir melhor a vocação
de cada um desses rótulos ao aproximá-los de palavras que usaríamos para
descrever pessoas e situações. Se eu quero escolher a bière brut ideal para servir em uma festa ou presentear uma pessoa,
posso começar a partir das seguintes perguntas: eu descreveria a atmosfera de
minha festa ou a personalidade da pessoa como madura ou jovial? Rústica ou
elegante? Para cada possibilidade, um rótulo irá atender melhor o meu objetivo
e transmitir exatamente a sensação que estou buscando.
Essas comparações não são úteis apenas para o consumidor
final, para obter a melhor sensação ao consumir a cerveja. Também podem ajudar
um publicitário a vender uma cerveja explorando sentimentos e imagens
condizentes com o perfil sensorial do produto – garantindo que a experiência
oferecida pelo produto condiga com a imagem transmitida. A indústria nacional
de cervejas – em especial as macrocervejarias, as únicas com orçamento para
publicidade – está acostumada a uma publicidade que, via de regra, não tem nada
a ver com o perfil sensorial de seus rótulos. Mas, se as cervejas artesanais
querem vender um produto cujo maior diferencial são as sensações no paladar,
precisa saber explorá-las adequadamente em sua comunicação.
Igualmente, uma sistematização como essa pode nos ajudar a
imaginar possibilidades de cervejas que ainda não existem, mas que podem se
tornar realidade. É fácil identificar pelo gráfico acima que ainda não temos no
mercado nacional uma bière brut
decididamente jovial e elegante. Podemos tentar imaginar como seria essa
cerveja: leve, complexa, delicada, muito frutada e floral, com poucas
características picantes ou de maturação. Identificando essa lacuna, um
cervejeiro poderia desenvolver uma receita para ocupar esse nicho, garantindo
que seu produto iria se diferenciar de suas concorrentes e apresentar algo
novo.
Espero que tenha ficado claro por que simplesmente não faz
sentido nos perguntarmos sobre qual “a melhor bière brut”. Cada uma possui uma proposta diferente. Tudo o que
podemos fazer é reconhecer a qual proposta nós nos identificamos mais e tentar
observar de que forma cada rótulo consegue concretizar a sua proposta. É
lugar-comum afirmar que não podemos avaliar uma cerveja fora do seu estilo – não
faz sentido, por exemplo, esperar de uma bière
brut as características de uma Russian imperial stout. Mas eu iria além: da
mesma forma, não é condizente esperar que uma Deus Brut des Flandres tenha as
mesmas características de uma Malheur Bière Brut, apesar do fato de pertencerem
ao mesmo estilo. Simplesmente não é a mesma a proposta que cada uma busca
concretizar. Ter respeito com uma cerveja e com os profissionais que a
produziram é saber reconhecer sua proposta específica e julgá-la apenas e tão-somente de acordo com ela.
Não julguemos o quanto a Deus Brut des Flandres obtém sucesso em ser uma
cerveja rústica e jovial – pois ela não se propõe a sê-lo. Talvez seja melhor
avaliar o seu sucesso ao tentar ser uma cerveja elegante, o que condiz mais com
o seu perfil.
Com isso, chegamos ao final desse dossiê sem nenhuma
certeza, mas cheios de novas perguntas e caminhos a trilhar. Entendo que alguns
leitores possam ter ficado decepcionados ao não encontrarem o meu veredito a
respeito da “melhor bière brut”.
Talvez alguns até mesmo estivessem apenas esperando por isso. Mas não é assim
que deve ser – se chegamos a conclusões certas demais, é porque abdicamos de
seguir o caminho por tempo o suficiente para termos uma visão mais abrangente. O
mundo cervejeiro é um horizonte aberto de possibilidades, cheio de pontos de
partida mas sem pontos de chegada. Meu interesse é contribuir para que ele
continue assim.
Um brinde ao ano-novo, e por um 2012 com menos certezas, ostentação e hierarquias, e com mais diversidade, surpresa e descobertas!
Perdeu as partes anteriores desta matéria sobre as bières brut? Confira!
Leituras adicionais
Se quiser se aprofundar em alguns dos assuntos tratados
nesta matéria sobre as bières brut,
recomendo vivamente as leituras indicadas abaixo. Os artigos científicos
citados podem ser acessados online, mas alguns requerem filiação a redes de
periódicos científicos e pagamento de anuidades. Boa parte dessas redes pode
ser acessada gratuitamente a partir dos terminais de grandes universidades
públicas para se obterem cópias digitais desses artigos.
ALEXANDRE, Hervé;
GUILLOUX-BENATIER, Michèle. Yeast autolysis in sparkling wine - a review. Australian Journal of Grape and Wine Research, Adelaide, Austrália: Australian Society of Viticulture and Oenology, v. 12, n. 2, p. 119-127, jul. 2006. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1755-0238.2006.tb00051.x/pdf.
Acesso em: 01 dez. 2011.
DHARMADHIKARI, Murli. Yeast autolysis. Disponível
Acesso em: 03 dez. 2011.
JACKSON, Michael. Great beers of Belgium. 6ª edição rev. e ampl. Boulder, Colorado: Brewer’s
Association, 2008.
LEROY, M. J. et alii. Yeast autolysis during
champagne aging. American Journal of
Enology and Viticulture, Davis, CA: American Society for Enology and
Viticulture, v. 41, n. 1, mar. 1990. Disponível em: http://ajevonline.org/content/41/1/21.full.pdf+html.
Acesso em: 03 dez. 2011.
LIGER-BELAIR, Gérard.
The Physics and Chemistry behind the bubbling properties of champagne and
sparkling wines: a state-of-the-art review. Journal of Agricultural and Food Chemistry, Davis, CA: University of California, n. 53, v.
8, p. 2788-2802, mar. 2005. Disponível em: http://pubs.acs.org/doi/pdf/10.1021/jf048259e.
Acesso em: 01 dez. 2011.
Belo dossiê, Marcussi. Se já me deu trabalho para ler tudo, imagino o trabalho que deu para escrever :)
ResponderExcluirAinda não ficou muito claro para mim como uma bière brut acaba ficando com um corpo mais leve que a cerveja-base que a origina (se é que eu entendi direito). Sabemos que os açúcares residuais e algumas proteínas são os responsáveis pelo corpo da cerveja, basicamente. O açúcar acrescentado posteriormente para a realização do champenoise também não deve alterar significativamente o corpo, já que ele será totalmente consumido pelas leveduras de espumante. Essas leveduras de espumante teriam a propriedade de atacar também os açúcares residuais da cerveja-base, resultando num corpo mais leve e paladar mais seco?
Abraços.
Claudinei
Exatamente, Claudinei. Com a mudança da cepa de levedura e das condições químico-biológicas durante a refermentação na garrafa e a longa maturação, as leveduras acabam consumindo parte dos açúcares que não haviam sido consumidos na fermentação primária. Isso pode ocorrer, inclusive, com diversas cervejas envelhecidas!
ResponderExcluirBelo artigo, Marcussi! Parabéns e continue com esse ótimo trabalho. ;o)
ResponderExcluirAbs...T+
FiL
Parabens pela qualidade de seus artigos, Marcussi! Riquissimos em informacao e expostos de forma clara. Alem de ser historiador e amante da boa cerveja, voce demonstra ser um escritor de mao cheia!!! Abs, Fabricio
ResponderExcluirObrigado, Fabrício!
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