sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte VIII: A dança dos cinco

Existem várias maneiras de comparar cervejas. A mais simples delas consiste simplesmente em dizer, dentre um número limitado de rótulos, qual nos agradou mais. Pode ser a mais agradável de uma noite de degustações, ou a que mais nos impressionou dentre as representantes de um estilo, ou a mais instigante dentre as produzidas por uma cervejaria – ou até mesmo a que mais nos agradou dentre todas as que já bebemos na vida. Mas essa também é a forma mais inútil de comparar cervejas. Ora, a satisfação não apenas é um critério altamente subjetivo e intransferível como também depende da situação, do contexto: a cerveja que mais me agradou hoje pode não ser a que mais me agradará amanhã. Pode ser que a garrafa que tomei hoje estivesse especialmente fresca, ou pode ser que o papo que a acompanhou estivesse especialmente animado, ou talvez que o prato que a escoltou fosse uma combinação especialmente feliz.

Estabelecer critérios objetivos e claros é o primeiro passo para tornar útil qualquer comparação – isto é, para que ela possa servir de guia para outras pessoas, em outras situações. Claro que, a partir desse momento, surge a dúvida mais importante: a partir de qual critério serão comparadas as cervejas? Cervejas possuem diversos atributos objetivos que podem ser comparados adequadamente: coloração, densidade do corpo, sensação alcoólica, percepção frutada, doçura, amargor, acidez, e por aí vamos. É preciso escolher um, ou um pequeno número deles, para tornar nossa comparação útil. Claro que cada critério escolhido resultará em resultados muito diferentes. Façamos um teste a partir dos 5 rótulos de bières brut que discutimos no último post. Em primeiro lugar, se escolhermos como critério o amargor, teremos a seguinte escala:


No entanto, se optarmos pela acidez, o resultado seria mais semelhante ao que temos abaixo:


E se quisermos comparar a doçura?



Alguns poderão protestar: “Uma comparação desse tipo, característica por característica, é inútil! Eu quero saber qual delas é a melhor!” Melhor para quê? A mais refrescante? Talvez a mais marcante? Ou a mais complexa? Quem sabe a mais suave ao paladar? Qual é o critério mais correto? Nenhum – ou melhor, qualquer um. Tudo depende do que você espera que a cerveja faça por você. Se o objetivo é refrescar, ou quem sabe cortar melhor a untuosidade de um queijo cremoso, pode ser interessante buscar aquela com maior acidez – a Eisenbahn Lust. Já se você pretende servir com um prato muito apimentado, pode ser interessante evitar a de maior amargor – a Malheur Bière Brut – e optar pela mais adocicada – Deus Brut des Flandres. Se você quer uma sensação intensa, procure aquela que apresenta a maior soma entre acidez e amargor – justamente a Malheur, a mesma que evitaríamos há pouco!

Decompor uma cerveja da forma como fizemos é o primeiro passo, mas podemos partir dele para começarmos a elaborar comparações mais complexas e interessantes, conjugando diversos critérios. Se selecionarmos os nove mais importantes aspectos associados ao estilo bière brut, podemos traçar um perfil geral descrevendo de que forma, e com que tipo de equilíbrio, cada rótulo concretiza o estilo.



Gráficos como esse, a princípio, podem parecer confusos, mas basta observar com calma para perceber que ele consegue revelar, simultaneamente, as características que mais diferenciam os rótulos uns dos outros – ou seja, seu perfil particular dentro do estilo. Vejamos como cada um dos rótulos se destaca nesse comparativo:

Deus Brut des Flandres: leve, adocicada, frutada e com especiarias
Wäls Brut: leve, frutada, amarga
Malheur Bière Brut: amaga, ácida, madura
Eisenbahn Lust: ácida
Eisenbahn Lust Prestige: madura, floral

Estamos falando, ainda, em características sensoriais objetivas. Claro, podemos ter maior ou menor sensibilidade a este ou aquele gosto ou grupo de aromas, mas essas são características que estão de fato nas cervejas, e não apenas na consciência do degustador. Mas tenho afirmado, desde o primeiro post deste blog, que as cervejas também podem traduzir experiências e conceitos culturais. Podemos agrupar várias características sensoriais e traduzi-las com conceitos culturais. Comparadas com dados sensoriais objetivos, categorias culturais têm a vantagem de poderem transmitir de forma mais direta e mais facilmente compreensível a complexidade das experiências humanas – que é o que buscamos, afinal de contas, ao sentarmos em uma mesa para dividir uma garrafa com pessoas queridas.

Peguemos o conjunto de nove características que escolhi para representar o estilo bière brut (aquelas descritas no gráfico acima). Dentre essas possibilidades, poderíamos chamar de “jovial” uma cerveja com mais frescor (acidez, aromas frutados), em contraste com uma cerveja mais “madura” (amargor, mais traços de maturação e especiarias). Também podemos chamar de “elegante” uma cerveja leve, delicada e complexa, ao passo que seria mais “rústica” uma cerveja com mais amargor, mais corpo e mais pegada. Com isso, poderíamos comparar melhor a identidade de cada rótulo a uma situação, uma personalidade, uma pessoa – falamos em pessoas “joviais” ou “maduras”, descrevemos pessoas, lugares e ocasiões como “elegantes” ou “rústicos”; mas não falamos – a não ser metaforicamente – em pessoas e situações “frutadas”, com “especiarias” ou “ácidas”. Então façamos a seguinte brincadeira: se as nossas 5 bières brut fossem pessoas, que personalidades elas teriam?


Comparações desse tipo nos ajudam a definir melhor a vocação de cada um desses rótulos ao aproximá-los de palavras que usaríamos para descrever pessoas e situações. Se eu quero escolher a bière brut ideal para servir em uma festa ou presentear uma pessoa, posso começar a partir das seguintes perguntas: eu descreveria a atmosfera de minha festa ou a personalidade da pessoa como madura ou jovial? Rústica ou elegante? Para cada possibilidade, um rótulo irá atender melhor o meu objetivo e transmitir exatamente a sensação que estou buscando.

Essas comparações não são úteis apenas para o consumidor final, para obter a melhor sensação ao consumir a cerveja. Também podem ajudar um publicitário a vender uma cerveja explorando sentimentos e imagens condizentes com o perfil sensorial do produto – garantindo que a experiência oferecida pelo produto condiga com a imagem transmitida. A indústria nacional de cervejas – em especial as macrocervejarias, as únicas com orçamento para publicidade – está acostumada a uma publicidade que, via de regra, não tem nada a ver com o perfil sensorial de seus rótulos. Mas, se as cervejas artesanais querem vender um produto cujo maior diferencial são as sensações no paladar, precisa saber explorá-las adequadamente em sua comunicação.

Igualmente, uma sistematização como essa pode nos ajudar a imaginar possibilidades de cervejas que ainda não existem, mas que podem se tornar realidade. É fácil identificar pelo gráfico acima que ainda não temos no mercado nacional uma bière brut decididamente jovial e elegante. Podemos tentar imaginar como seria essa cerveja: leve, complexa, delicada, muito frutada e floral, com poucas características picantes ou de maturação. Identificando essa lacuna, um cervejeiro poderia desenvolver uma receita para ocupar esse nicho, garantindo que seu produto iria se diferenciar de suas concorrentes e apresentar algo novo.

Espero que tenha ficado claro por que simplesmente não faz sentido nos perguntarmos sobre qual “a melhor bière brut”. Cada uma possui uma proposta diferente. Tudo o que podemos fazer é reconhecer a qual proposta nós nos identificamos mais e tentar observar de que forma cada rótulo consegue concretizar a sua proposta. É lugar-comum afirmar que não podemos avaliar uma cerveja fora do seu estilo – não faz sentido, por exemplo, esperar de uma bière brut as características de uma Russian imperial stout. Mas eu iria além: da mesma forma, não é condizente esperar que uma Deus Brut des Flandres tenha as mesmas características de uma Malheur Bière Brut, apesar do fato de pertencerem ao mesmo estilo. Simplesmente não é a mesma a proposta que cada uma busca concretizar. Ter respeito com uma cerveja e com os profissionais que a produziram é saber reconhecer sua proposta específica e julgá-la apenas e tão-somente de acordo com ela. Não julguemos o quanto a Deus Brut des Flandres obtém sucesso em ser uma cerveja rústica e jovial – pois ela não se propõe a sê-lo. Talvez seja melhor avaliar o seu sucesso ao tentar ser uma cerveja elegante, o que condiz mais com o seu perfil.

Com isso, chegamos ao final desse dossiê sem nenhuma certeza, mas cheios de novas perguntas e caminhos a trilhar. Entendo que alguns leitores possam ter ficado decepcionados ao não encontrarem o meu veredito a respeito da “melhor bière brut”. Talvez alguns até mesmo estivessem apenas esperando por isso. Mas não é assim que deve ser – se chegamos a conclusões certas demais, é porque abdicamos de seguir o caminho por tempo o suficiente para termos uma visão mais abrangente. O mundo cervejeiro é um horizonte aberto de possibilidades, cheio de pontos de partida mas sem pontos de chegada. Meu interesse é contribuir para que ele continue assim. 

Um brinde ao ano-novo, e por um 2012 com menos certezas, ostentação e hierarquias, e com mais diversidade, surpresa e descobertas!

Perdeu as partes anteriores desta matéria sobre as bières brut? Confira!

Leituras adicionais

Se quiser se aprofundar em alguns dos assuntos tratados nesta matéria sobre as bières brut, recomendo vivamente as leituras indicadas abaixo. Os artigos científicos citados podem ser acessados online, mas alguns requerem filiação a redes de periódicos científicos e pagamento de anuidades. Boa parte dessas redes pode ser acessada gratuitamente a partir dos terminais de grandes universidades públicas para se obterem cópias digitais desses artigos.

ALEXANDRE, Hervé; GUILLOUX-BENATIER, Michèle. Yeast autolysis in sparkling wine - a review. Australian Journal of Grape and Wine Research, Adelaide, Austrália: Australian Society of Viticulture and Oenology, v. 12, n. 2, p. 119-127, jul. 2006. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1755-0238.2006.tb00051.x/pdf.

Acesso em: 01 dez. 2011.

DHARMADHIKARI, Murli. Yeast autolysis. Disponível


Acesso em: 03 dez. 2011.

JACKSON, Michael. Great beers of Belgium. 6ª edição rev. e ampl. Boulder, Colorado: Brewer’s Association, 2008.


LEROY, M. J. et alii. Yeast autolysis during champagne aging. American Journal of Enology and Viticulture, Davis, CA: American Society for Enology and Viticulture, v. 41, n. 1, mar. 1990. Disponível em: http://ajevonline.org/content/41/1/21.full.pdf+html. Acesso em: 03 dez. 2011.

LIGER-BELAIR, Gérard. The Physics and Chemistry behind the bubbling properties of champagne and sparkling wines: a state-of-the-art review. Journal of Agricultural and Food Chemistry, Davis, CA: University of California, n. 53, v.

8, p. 2788-2802, mar. 2005. Disponível em: http://pubs.acs.org/doi/pdf/10.1021/jf048259e.

Acesso em: 01 dez. 2011.



5 comentários:

  1. Belo dossiê, Marcussi. Se já me deu trabalho para ler tudo, imagino o trabalho que deu para escrever :)
     
    Ainda não ficou muito claro para mim como uma bière brut acaba ficando com um corpo mais leve que a cerveja-base que a origina (se é que eu entendi direito). Sabemos que os açúcares residuais e algumas proteínas são os responsáveis pelo corpo da cerveja, basicamente. O açúcar acrescentado posteriormente para a realização do champenoise também não deve alterar significativamente o corpo, já que ele será totalmente consumido pelas leveduras de espumante. Essas leveduras de espumante teriam a propriedade de atacar também os açúcares residuais da cerveja-base, resultando num corpo mais leve e paladar mais seco?
     
    Abraços.
     
    Claudinei

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  2. Exatamente, Claudinei. Com a mudança da cepa de levedura e das condições químico-biológicas durante a refermentação na garrafa e a longa maturação, as leveduras acabam consumindo parte dos açúcares que não haviam sido consumidos na fermentação primária. Isso pode ocorrer, inclusive, com diversas cervejas envelhecidas!

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  3. Belo artigo, Marcussi! Parabéns e continue com esse ótimo trabalho. ;o)

    Abs...T+

    FiL

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  4. Parabens pela qualidade de seus artigos, Marcussi! Riquissimos em informacao e expostos de forma clara. Alem de ser historiador e amante da boa cerveja, voce demonstra ser um escritor de mao cheia!!! Abs, Fabricio

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