quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte II: Carbonatação e autólise na produção de champagnes


Vimos na última parte deste artigo que o alto custo de produção das cervejas no estilo bière brut está ligado a seu processo de produção, emprestado dos champagnes. Trata-se do afamado “método champenoise”, método de produção de vinhos espumantes na região francesa de Champagne. Quando usado fora dessa região, é conhecido como “método tradicional”. Toda a nomenclatura em francês relativa às etapas desse processo já ajuda a lhe dar uma aura de misticismo e esnobismo que eu pretendo ajudar a apagar, motivo pelo qual procurarei sempre oferecer os termos em português. Antes de entendermos o que o tal método champenoise faz pelas bières brut, comecemos entendendo o seu papel na produção dos vinhos espumantes.

Fermentação e carbonatação

O perlage de um vinho espumante.
Fonte: The Art of Bottled Poetry
A característica distintiva dos espumantes é sua espuma e sua sensação frisante. Na realidade, não se trata propriamente de “espuma”, na medida em que uma espuma perene depende de que as moléculas de proteínas imersas no líquido tenham um determinado tamanho, que encontramos nas cervejas, mas não no vinho. De qualquer modo, ocorre nos espumantes a formação de bolhas. Para entender esse fenômeno, retomemos algumas noções básicas ligadas à fermentação. A fermentação é a metabolização de açúcares pelas leveduras, a partir de reações químicas das quais as leveduras extraem a energia de que necessitam para sobreviver. A fermentação têm dois subprodutos: o etanol (álcool etílico) e o gás carbônico, produzidos nas seguintes proporções:

C6H1206 → 2CH3CH2OH + 2CO2

Isto é, para cada molécula de açúcar consumida, as leveduras produzem duas moléculas de etanol e duas de gás carbônico. O álcool dissolve-se no líquido, enquanto o gás carbônico, em situações normais, é liberado na atmosfera. Normalmente, a fermentação do vinho ocorre em cubas que não são vedadas, permitindo que todo o gás formado escape, resultando em uma bebida sem excesso de gás carbônico dissolvido, que então é engarrafada e comercializada (diz-se desses vinhos que são tranquilos, isto é, não possuem carbonatação). Mas e se uma parte da fermentação ocorrer já dentro da garrafa? Parte do gás carbônico é liberada para o pequeno espaço de ar no gargalo, o que aumenta consideravelmente a pressão no interior da garrafa. Quanto maior a pressão, maior o grau de solubilidade do gás carbônico (de acordo com a lei de Henry), o que significa que uma parcela maior do gás carbônico fica retida dentro do líquido, dissolvida.

Estátua de Dom Pérignon na sede da 
Moët & Chandon, na França.
Fonte: Wikimedia Commons
É exatamente isso que ocorre na produção do champagne: um mosto de uvas sofre uma fermentação primária em cuba aberta, e depois é engarrafado com uma segunda cepa de leveduras, sofrendo fermentação secundária dentro da garrafa e adquirindo gás carbônico – trata-se da etapa chamada “tomada de espuma” (prise de mousse), aprimorada pelo monge Dom Pérignon no século XVIII. Já ouvi de Garret Oliver, mestre-cervejeiro da Brooklyn Brewery, que, ao contrário do que se pensa normalmente, não foram as cervejas belgas que passaram a usar as garrafas e rolhas do champagne, mas os vinhos espumantes que passaram a empregar as garrafas usadas na fabricação de cervejas. Essas garrafas precisam ser bastante resistentes, pois a pressão em seu interior pode chegar a até 7 atm (o que corresponde a 7 vezes mais do que a pressão atmosférica ao nível do mar). Nesse meio, o volume total de gás carbônico dissolvido em um champagne (ou em uma cerveja bastante carbonatada) pode chegar a impressionantes 5 litros para 750ml de líquido. Não à toa, muitas dessas garrafas chegam a estourar na fase da tomada de espuma ou durante a maturação.

Quando a garrafa é aberta e o champagne é servido, a pressão sobre o líquido cai drasticamente, diminuindo a solubilidade do gás carbônico. Subitamente, o vinho se torna supersaturado de gás carbônico e entra em estado metaestável: precisa liberar gás carbônico para voltar a entrar em equilíbrio. A maior parte do gás, cerca de 80%, simplesmente escapa pela superfície do líquido de forma invisível, mas uma parte significativa forma bolhas no interior da taça, que então emergem para a superfície, formando o perlage (“fio de pérolas”), como se chama o fio contínuo de bolhas em ascensão pelo qual o espumante é famoso. Normalmente se considera que o tamanho das bolhas indica a qualidade da bebida (quanto menores, melhor o vinho), muito embora a pesquisa científica relacione o tamanho das bolhas quase exclusivamente a propriedades meramente físicas do líquido, em especial a quantidade de gás dissolvido no líquido (quanto maior a quantidade de gás carbônico, maiores serão as bolhas).

Autólise

Representação esquemática da autólise em três 
momentos: ao final da fermentação secundária (a), 
3-6 meses depois (b) e 9-12 meses depois.
Fonte: ALEXANDRE, H.; GUILLOUX BÉNATIER, M.
Yeast autolysis in sparkling wine – a review.
Australian Journal of Grape and Wine Research,
 v. 12, n.2, p. 121, jul. 2006.
O que ocorre na garrafa além da formação de álcool e gás carbônico? Assim que acabam os açúcares fermentáveis, as leveduras entram em uma espécie de estado de dormência. Se continuarem sem alimento (e é precisamente isso que ocorre), começam a sofrer autólise, isto é, começam a consumir e quebrar cadeias protéicas de suas próprias células, liberando uma série de compostos químicos no líquido. Nos champagnes (que possuem em torno de 11-13% ABV e pH próximo de 3, o que retarda a autólise), o processo se intensifica por volta do 9º mês após o engarrafamento com a cepa de levedura. Essa é uma parte fundamental do método champenoise, e garante as características distintivas dos espumantes produzidos dessa forma. Poucos vinhos sofrem um tal processo de autólise intencional: além dos espumantes produzidos pelo método tradicional, o xerez e certos vinhos brancos que maturam com leveduras (“sobre borra”, ou sur lies). A maior parte dos vinhos não chega a sofrer os efeitos da autólise de leveduras.

A autólise é normalmente tida como um vilão absoluto na produção de cervejas, mas acredito que seja interessante olhar para o mundo dos vinhos para relativizarmos essa visão algo esquemática. De fato, estudos mostram que o processo de autólise, quando realizado gradativamente e em ambiente controlado (alto teor alcoólico, pH e temperaturas baixas, com determinadas cepas de levedura) ocorre em diversas etapas e pode liberar um conjunto diversificado de substâncias, muitas das quais adicionam atributos sensoriais positivos aos espumantes e cervejas. Num primeiro momento, liberam-se manoproteínas, que melhoram a sensação na boca. Etapas seguintes liberam lipídios, ácidos nucléicos e diversos compostos aromáticos, entre os quais os primeiros, e mais expressivos, são os ésteres (em especial os de isoamila e etila, responsáveis por aromas frutados como maçãs, banana e abacaxi), seguidos depois pelos álcoois superiores (dentre os quais alguns que conferem aromas cítricos e principalmente florais).

Se o processo de autólise continua, as proteínas são quebradas em cadeias cada vez menores de aminoácidos, resultando em um gosto típico de umami, aquela sensação “carnuda” que encontramos em alimentos como a carne vermelha, o shoyo, o salmão, o tomate e o queijo parmesão. Aminoácidos podem ser interessantes em baixas concentrações, mas depois começam a conferir uma sensação um pouco áspera e desagradável. Outra substância tipicamente associada à autólise de leveduras é o ácido caprílico, que é responsável por uma certa aspereza na garganta e por um aroma desagradável de sabão de coco em barra. Em concentrações pequenas, no entanto, pode adicionar uma certa complexidade terrosa ou ressaltar aromas florais. Ou seja, a autólise, se ocorrer de forma controlada e gradativa, pode adicionar características positivas tanto aos champagnes quanto às cervejas, mas também pode ser responsável por características indesejadas se não for bem controlada ou se se prolongar em excesso.

Agora é só esperar pela autólise e finalmente abrir a garrafa de champagne, certo? Não; ainda faltam justamente as etapas mais emblemáticas do processo, aquelas que inspiraram a criação das bières brut: a remuage e o dégorgement. Falarei delas na próxima postagem.

Agora façamos uma pausa. O leitor arguto, ou minimante familiarizado com o processo de produção de cervejas, já haverá de ter notado que os processos descritos até aqui não são exclusivos dos champagnes. De fato, as mesmíssimas etapas são empregadas na fabricação de algumas cervejas – aquelas que sofrem refermentação na garrafa, ou seja, que são engarrafadas com uma segunda dose de leveduras. Trata-se de método típico da escola belga, em uso provavelmente desde a Idade Média na produção dos estilos de abadia – ou seja, antes do aprimoramento do método de produção de espumantes por Dom Pérignon. É possível que as cervejas belgas de abadia tenham fornecido inspiração, tecnologia e know-how para a produção do champagne (não nos esqueçamos que, assim como os produtores das cervejas de abadia, Dom Pérignon era um monge católico). Eu diria que é até provável. Normalmente encaramos as bières brut como cervejas com características de champagnes; ora, talvez fosse mais condizente, do ponto de vista histórico, encarar o champagne como um vinho branco com características de cervejas belgas!

Diante disso, podemos seguir em frente e compreender melhor o que torna as bières brut tão diferentes das cervejas belgas “comuns”. Nas partes seguintes desta matéria, explorarei as etapas restantes do processo de produção das bières brut e farei uma análise comparativa dos cinco rótulos disponíveis no mercado nacional. Não perca!

Perdeu a primeira parte deste artigo? Confira aqui.

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