Das cervejas belgas de abadia para os vinhos espumantes, e
agora dos vinhos de volta para as cervejas. Nas partes anteriores deste artigo,
traçamos as linhas gerais de uma deliciosa rota de intercâmbios tecnológicos e
sensoriais na produção de bebidas fermentadas nas regiões da Bélgica e França –
vimos como certas técnicas típicas da produção de cervejas na Bélgica foram
apropriadas, reelaboradas e aprofundadas pela indústria vinícola entre os
séculos XVIII e XIX. O século XXI viu esse fluxo se inverter na direção oposta,
fechando o ciclo: foi a renascente indústria cervejeira belga que, impulsionada
pelo recente crescimento do interesse global pelos estilos belgas, voltou a
instituir esse diálogo, apropriando-se de volta dos desenvolvimentos do método champenoise. O resultado, todos sabemos,
foi a criação de um novo e empolgante estilo cervejeiro: as bières brut, das quais temos falado
desde a primeira parte desta matéria. Chegou a hora de fazermos um panorama
histórico da criação do estilo e de sua chegada às terras tupiniquins.
Pierre Celis: a
criatividade belga
A primeira bière brut
produzida industrialmente, a Deus Brut des Flandres (da cervejaria Bosteels) só
foi comercializada em 2002 – menos de 10 anos atrás. Trata-se, portanto, de um
estilo extremamente jovem, em franco desenvolvimento. A informação pode
surpreender alguns entusiastas de cervejas, acostumados a pensar na escola
cervejeira belga como uma tradição antiga, com raízes nos mosteiros da época
medieval. É comum ouvir uma contraposição entre as escolas “tradicionais”
(belga, britânica e germânica) e a “nova” escola americana, como se apenas esta
última tivesse trazido inovações recentes à paleta dos estilos cervejeiros.
Esse é um lugar-comum que vale desconstruir desde já: assim como outras
tradições cervejeiras, a escola belga, ao invés de ter ficado fossilizada no
passado, continua se desenvolvendo de forma dinâmica e criativa, inovando sem
abdicar das contribuições do passado. Poucos dos modernos estilos belgas, como
os conhecemos hoje, já eram produzidos exatamente da mesma maneira antes do
século XIX. Alguns dos mais emblemáticos, inclusive são criações recentes: vale
lembrar que as tripel claras, hoje consideradas tão típicas, não tinham essa
coloração e nem esse perfil sensorial antes da metade do século XX. Mas isso é assunto para
outros posts.
Pierre Celis examina a precipitação do
fermento nas garrafas de
sua Grottenbier,
maturando no pupitre ao fundo.
Fonte: Michael Jackson. Great Beers
of
Belgium
|
De qualquer forma, a
história das bières brut remonta ao
final do século XX, com um personagem que foi uma das mais importantes figuras
envolvidas na revitalização mundial das cervejas belgas, mas que poucos
associam às bières brut: Pierre
Celis. Algumas informações para quem não está familiarizado com o nome:
fundador da cervejaria Hoegaarden, Celis reiniciou a fabricação de um estilo
tradicional então extinto: as cervejas belgas de trigo denominadas witbier. Quando a Hoegaarden foi
adquirida pela Interbrew, proprietária da marca Stella Artois (hoje parte da
gigante AB-InBev), Pierre Celis foi aos Estados Unidos e, em 1992, abriu a
cervejaria Celis Brewery no Texas, popularizando as witbier na América. Pierre Celis tornou-se famoso pelas suas
excelentes cervejas, mas não pelo sucesso comercial de sua administração: a
Celis Brewery foi vendida ao grupo Miller em 1995 e fechou entre 2000 e 2001.
A idade e os reveses comerciais não tiraram de Celis o
empreendedorismo e nem a vontade de inovar. De volta à Bélgica após as
dificuldades nos EUA, ele retomou um antigo projeto: produzir uma cerveja
empregando o método tradicional de produção de champagne. Celis já havia adquirido caves para isso desde a década
de 1980, mas seu envolvimento com a Hoegaarden e com a Celis Brewery o impedira
de levar o empreendimento adiante. Com o fechamento da Celis, contudo, ele
adquiriu um imenso conjunto de caves subterrâneas na vila de Kanne (município
de Riemst), na Bélgica, onde começou a maturar suas cervejas usando o
procedimento de “remoção” (remuage)
empregado nos champagnes,
gradualmente virando as garrafas de ponta-cabeça e girando-as sobre seu próprio
eixo. De acordo com o método champenoise,
a próxima etapa seria o congelamento do gargalo para a expelição do fermento (dégorgement).
Com o tempo, porém, Celis desistiu de fazer a expelição: seu
interesse já não era mais remover o fermento, mas apenas estudar os efeitos dos
giros na garrafa e da maturação em caves, com temperatura natural constante (em
torno de 12ºC). Essas cervejas, produzidas pela cervejaria St. Bernardus, são
comercializadas com o nome de Grottenbier, e podem ser encontradas
ocasionalmente no Brasil (importadas pela Belgian Beer Paradise). Isso nos
mostra que, para além das bières brut,
o método champenoise ainda pode
fornecer inspiração para uma série de inovações interessantes na produção
cervejeira.
Deus Brut des
Flandres: a consolidação de um novo estilo
Etapas de produção da Deus Brut des Flandres:
1. brassagem; 2. fermentação
primária; 3. refermentação
e maturação
na garrafa; 4. remoção; e 5. expelição.
As etapas 3-5 ocorrem na região
de Champagne.
Fonte:
http://www.bestbelgianspecialbeers.be |
Celis optou por se
apropriar de apenas uma parte do método champenoise,
mas uma outra cervejaria inspirou-se em seu exemplo e levou o processo até o
final. Em 2002, a cervejaria Bosteels (a mesma que produz a Kwak e a Tripel
Karmeliet) lançou a primeira representante do novo estilo: a Deus Brut des
Flandres. Deus tem uma alta gravidade original (alto teor de açúcares no início
da produção), mas é bastante bem atenuada para ficar com um paladar mais seco e
um corpo mais leve, característico do estilo. A cevada é malteada levemente
para manter a coloração bem clara mesmo com a alta quantidade de malte
empregada na fabricação, e pouco lúpulo é usado. A fermentação primária é feita
na cervejaria Bosteels; depois disso, ela recebe uma dosagem de açúcar e uma
cepa de leveduras de espumante para a fermentação secundária. Esta, contudo,
não é realizada na fábrica: a cerveja de base é transportada em
caminhões-tanque para Rheims, capital da região de Champagne, onde é engarrafada
e sofre fermentação secundária durante 3-4 semanas. Depois disso, ela é
maturada na garrafa por mais de um ano, período em que processos como os de
autólise do champagne começam a
ocorrer com a cerveja. Por fim, ela passa por remoção e expelição, processo que
dura em torno de 3 a 4 semanas. Apenas então é comercializada.
Deus foi apresentada como uma contraparte do champagne no mundo cervejeiro,
apropriando-se das técnicas de produção do espumante. Apesar disso, o
proprietário da Bosteels, Antoine Bosteels, não deixou de fazer a ressalva:
“Não se trata de um substituto do champagne.
É uma bebida para pessoas que apreciam grandes vinhos, grandes cervejas,
grandes whiskeys...” Sábias palavras: já tivemos a oportunidade de discutir os
males de confundir essas cervejas com champagnes.
Mas não importa: o paralelo estava estabelecido.
Rótulo da Eisenbahn Lust, com a “herética” expressão
“método
champenoise” estampada abaixo do nome.
Fonte:
www.balcaodebar.com.br |
No Brasil, o termo “método champenoise” usado para indicar o estilo
reforçou ainda mais a comparação. Contudo, é interessante observar que, entre
os espumantes de uva, o termo “método champenoise”
só pode ser empregado para vinhos produzidos na região de Champagne (muito
embora eu o tenha visto hoje mesmo, na prateleira do supermercado, no rótulo do
espumante da Miolo...). Para todos os outros espumantes, produzidos em outros
lugares pelo mesmo método, a denominação usual é “método tradicional”. Levando
isso em conta, a única bière brut que
poderia legitimamente invocar o “método champenoise”
em seu marketing seria a Deus Brut des Flandres, pois ela passa pelo processo
na cidade de Rheims, capital da região de Champagne. Se quisermos ser puristas,
talvez fosse mais adequado empregar o termo “método vinícola tradicional” para
todas as demais representantes do gênero. Nenhuma das duas marcas belgas
emprega a expressão “método champenoise”:
a Bosteels refere-se ao método de produção como “uma técnica secular” e cita os
termos “remuage” e “dégorgement”, enquanto a Malheur indica o “método
original”. A Eisenbahn, no Brasil, foi a primeira marca a empregar o termo
“método champenoise” em seu
marketing. Mas, até onde eu saiba, não existe legislação que regule o uso do
termo especificamente na produção cervejeira.
Concorrência
amigável: Malheur Bière Brut
Curiosamente, a segunda cervejaria belga a enveredar pelo
novo estilo localiza-se em Buggenhout, a mesmíssima vila de 5000 habitantes em
que está instalada a fábrica da Bosteels. Trata-se de uma cervejaria inaugurada
em 1997 por Emmanuel De Landtsheer: a Malheur, cujo nome, irônico, pode ser
traduzido por algo como “infortúnio” ou “infelicidade”. Claro que suas cervejas
estão longe de causar infelicidade. Em 2000, a Malheur lançou uma strong golden ale denominada Malheur 10,
que serviria de receita de base para a produção de sua bière brut. É comum que as cervejarias que produzem o estilo usem
como base a mesma receita de uma tripel ou strong
golden ale que já é comercializada pela cervejaria. A exceção é a Bosteels,
que não comercializada nenhum rótulo produzido com a mesma receita básica da
Deus.
Emmanuel De Landtsheer e o equipamento
de remoção automática na
Malheur.
Fonte: Michael Jackson. Great Beers of Belgium |
A Malheur 10 e a Malheu Bière Brut (o rótulo
consolidou o nome do estilo) têm a mesma receita inicial e sofrem igualmente
uma fermentação primária de 10 dias e uma secundária de mais 10 dias. A
diferença está na refermentação na garrafa (feita com levedura de espumante
para a Bière Brut), na maturação estendida e nos processos de remoção e
expelição. Não consegui localizar dados precisos sobre o tempo de maturação da
Malheur Bière Brut. Diferentemente do que ocorre com a Deus, a Malheur Bière
Brut percorre todas as etapas de sua produção dentro da fábrica da Malheur: Emmanuel
De Landtsheer viajou às vinícolas de Champagne para estudar os processos de
automação do método champenoise e
adquiriu um equipamento que realiza a remoção automaticamente: as garrafas são
acondicionadas em grandes gaiolas de metal com capacidade para 500 garrafas
cada. Essas gaiolas giram automaticamente sobre dois eixos, virando as garrafas
de ponta cabeça ao mesmo tempo em que elas são giradas sobre seu próprio eixo.
Em sete dias, o equipamento realiza um conjunto de 36 movimentos
pré-programados, ao final dos quais toda a levedura é depositada no gargalo da
garrafa e a cerveja está pronta para a expelição. Os movimentos são realizados
lentamente, cada um durando entre duas e oito horas. O programa de movimentos
não é exatamente o mesmo usado para a produção de champagne, tendo sido adaptado especialmente para a Malheur.
Mas De Landtsheer não parecia satisfeito com essas
inovações, e aplicou o mesmo método à produção de uma outra cerveja, desta vez
escura: a Malheu Dark Brut. Trata-se de uma cerveja que usa como base a receita
da Malheur 12 (uma dark strong ale),
mas é maturada em barris de carvalho americano, refermentada na garrafa e
depois sofre os mesmos processos de remoção e expelição. A Malheur Dark Brut,
assim como os experimentos de Pierre Celis com a Grottenbier, provam que as
inovações trazidas pela adaptação do método champenoise
às cervejas não precisam ficar restritas às bières
brut, claras e delicadas, mas podem dar origem a toda uma nova gama de
estilos belgas. A estrada está aberta.
Na próxima parte deste artigo, veremos como as bières brut vieram a encontrar uma nova
pátria no Brasil, e faremos uma descrição sensorial das características do
estilo. Não perca, nas partes final, um comparativo dos rótulos disponíveis no
mercado nacional!
Perdeu as partes anteriores? Confira:
A Deus é refermentada na garrafa por mais de 1 ano enquanto a Malheu Brut por apenas 10 dias? Outra pergunta, a Deus usa essa levedura especial de champagne também, que nem a Malheu?
ResponderExcluirOlá, Siddhattha, tudo bem?
ExcluirO que dura 10 dias não é a maturação da Malheur Brut, mas sim a fermentação secundária da cerveja-base, a Malheur 10. Depois da fermentação primária e secundária, aí sim ela é engarrafada e passa pelo método "champenoise", por um período de tempo que a cervejaria não especifica (mas que eu duvido que seja menor do que 1 ano). Tanto a Deus quanto a Malheur Brut usam levedura de espumante para a última fermentação na garrafa. O mesmo tipo de levedura é usado também em todas as outras bières brut do mercado e também em várias outras cervejas que não passam pelo método, mas que usam leveduras de champagne (a título de exemplo, poderíamos citar a linha belga da Brooklyn e as sour ales da Tupiniquim, por exemplo).
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
ola alexandre excelente aritigo sobre biere brut estou pesquisando muito para fazer uma receita em casa, você poderia me ajudar com uma duvida no caso pra cerveja como seria feito este licor de expedição? agradeço se puder me ajudar abs
ResponderExcluirBoa noite, caro,
ExcluirNão sou homebrewer, então não posso te dar muitos detalhes precisos sobre a composição exata do licor de expedição. O que posso dizer é que ele varia de cervejaria para cervejaria. A Bosteels, por exemplo, usar um licor adoçado e aromatizado (daí aquele gosto peculiar da DeuS). Já a Wäls, por exemplo, usa como licor a própria cerveja já devidamente maturada e depois do dégorgement, apenas "completando" o volume faltante com o mesmo líquido (o que explica por que ela é ligeiramente mais seca). Acho que você pode fazer vários experimentos e ver o que funciona melhor na sua receita.
Abraços,
Alexandre A. Marcussi