É curioso que um estilo com raízes francesas e belgas tão
fortes, unindo os métodos tradicionais de produzir cerveja e espumantes nesses
dois países, tenha uma presença tão marcante no Brasil, país sem tanta tradição
vinícola e cervejeira remontando ao passado. Algumas pessoas acreditam – e me
parece plausível – que a elitização e a busca por consumidores de alta renda
tenham sido uma forma da indústria cervejeira nacional de procurar inserção de
mercado em uma conjuntura econômica de alta taxação, que impede a redução de
preços, e de expansão dos mercados de luxo. As bières brut, com suas remissões a champagne e glamour, eram uma escolha certeira para atingir na
mosca esse público. Não parece eloquente que o paralelo explícito com os champagnes (por meio do uso do termo
“método champenoise”) tenha ocorrido justamente com os rótulos da Terra dos
Papagaios, e não tanto com os belgas?
Um novo destino: o
Brasil
Maturação e remoção da Eisenbahn Lust
na vinícola San Michele.
Fonte: Edu Passarelli Recomenda
|
No Brasil, o estilo foi introduzido pela
cervejaria Eisenbahn com sua linha denominada Lust (em alemão, “prazer” ou
”vontade”). A cervejaria de Santa Catarina foi a primeira a invocar a
denominação “método champenoise”, em
destaque no rótulo, para denominar o estilo e catapultá-lo direto para o
mercado de luxo. A Eisenbahn Lust usa a mesma receita da Eisenbahn Strong
Golden Ale, mas a cerveja é enviada para a vinícola San Michele (em Rodeio/SC)
para a maturação em cave, a remoção e a expelição.
Assim como as grandes vinícolas normalmente produzem dois
rótulos diferentes de champagne (o champagne comum e o champagne millesimé), a Eisenbahn lançou uma versão “comum” da
Lust, que passa por três meses de maturação, e a versão de luxo denominada Lust
Prestige, que passa por um ano de maturação (mais ou menos o mesmo que a Deus,
e que a maior parte dos champagnes comuns).
Como vimos, a autólise começa a se intensificar a partir do 9º mês de
maturação; podemos concluir com alguma segurança, portanto, que a Eisenbahn
Lust tem poucas características de autólise, ao contrário da versão Prestige. A
produção de dois rótulos diferentes fez com que a Eisenbahn conseguisse
oferecer um produto a preços mais competitivos para “penetração” no mercado (a
Eisenbahn Lust é a bière brut mais
barata – ou melhor, menos cara – do mercado nacional) sem abdicar de um rótulo
de luxo produzido com mais cuidado.
José Felipe Carneiro mostra, orgulhoso,
a primeira safra da Wäls
Brut
passando pela remoção.
Fonte: Edu Passarelli Recomenda |
Como se não bastasse, em 2011 foi lançado um segundo rótulo do
estilo produzido no Brasil, desta vez por uma cervejaria especializada na
produção de estilos belgas: a Wäls, de Minas Gerais. A ideia surgiu de um
desafio feito a José Felipe Carneiro, responsável pela produção de cervejas da
Wäls, pelo seu irmão Tiago (também proprietário da cervejaria): ele seria capaz
de produzir uma cerveja como a Eisenbahn Lust Prestige? Muito estudo e algumas
tentativas depois, surgia a Wäls Brut. A cerveja apela para a mesma denominação
champenoise já usada pela Eisenbahn.
Sua produção usa como base um blend preparado com 70% da tripel da marca e 30%
de uma receita exclusiva, e ela passa por maturação na garrafa durante 9 meses
– tempo necessário para começar a se intensificar a autólise das leveduras.
Assim como a Malheur, a Wäls optou por realizar todas as etapas do processo em
sua própria fábrica – mas, ao contrário da cervejaria belga, faz tudo manualmente.
Em 2011, a cervejaria iniciou reformas para ampliar as caves de produção da
Wäls Brut, indicando um maior investimento neste que já é seu rótulo de mais
alto padrão. Entre suas concorrentes diretas, a cerveja se diferencia
especialmente pelo licor de expedição, que, em vez de ser um líquido mais adocicado,
é a própria cerveja resultante da refermentação com leveduras de espumantes, resultando num produto final levemente
mais seco. Talvez devamos considerar que, se as demais bières brut podem ser classificadas como “brut”, a Wäls Brut seria
uma “extra brut” ou "brut nature" (um pouco mais seca).
É só isso? Quase, por mais improvável que possa parecer. Há
poucas cervejas produzidas no estilo ao redor do mundo. Além das quatro marcas
já citadas (disponíveis no mercado nacional), o site norte-americano Beer
Advocate indica outros rótulos sob a denominação de estilo “bière de champagne
/ bière brut”, mas nem todos com o teor alcoólico ou o perfil do estilo
consagrado pela Deus. Entre as que mais parecem se adequar ao perfil das marcas
belgas, podemos citar a canadense Dominus Vobiscum Brut, da microcervejaria
Charlevoix, e a italiana L’Equilibrista, da cervejaria Birra del Borgo. De
qualquer forma, considerando-se o berço belga do estilo, o Brasil, com as
particularidades do seu mercado de luxo de cervejas, tem se destacado
mundialmente na produção do estilo, com o mesmo número de marcas que na
Bélgica!
E os preços?
Esta é a clássica questão, invariavelmente levantada quando
o assunto são as bières brut. Por que
elas custam tão mais caro que os demais estilos (salvo talvez algumas lambics
importadas e alguns rótulos excepcionais pela sua raridade ou seu teor
alcoólico elevado)? Parte substancial da resposta, é óbvio, encontra-se no
método champenoise, principalmente na longa maturação em garrafa e nas
trabalhosas etapas da remoção e expelição, quando realizadas manualmente
(garrafa por garrafa).
Pode ir esquecendo a sua bière
brut no final do ano...
Fonte: www.canstockphoto.com.br |
Mas isso justifica tanta diferença? Não possuo uma
cervejaria e nunca ousei produzir as danadas, então é um pouco difícil dar uma
resposta definitiva para isso. É preciso lembrar que, para além do tempo e do
trabalho gastos com o processo produtivo, as bières brut requerem infraestrutura específica apenas para sua
produção (ou o aluguel de uma infraestrutura alheia, como é o caso da Bosteels
e da Eisenbahn). E, é claro, existe o direcionamento desses rótulos para
ocasiões especiais e para um público de maior poder aquisitivo (trata-se dos
produtos de luxo de suas cervejarias), estimulando uma precificação em faixa
superior. A Wäls Brut, por exemplo, é comercializada em uma caixa de luxo
artesanal cujo custo é de R$ 18. É claro que isso gera um impacto no preço
final. José Felipe Carneiro, responsável pela produção das cervejas da Wäls, já
afirmou que a caixa faz parte da experiência do produto – porque, infelizmente,
não se trata apenas da cerveja, mas também da aura de sofisticação e glamour
que o consumidor espera dela. Será que podemos culpar exclusivamente o produtor
se é isso que o consumidor espera do produto? Mais uma vez, são as bières brut as maiores prejudicadas pelo
prestígio associado ao estilo.
Por mais difícil que seja ponderar todos esses fatores para
avaliar o preço final das cervejas do estilo, não custa fazermos, de novo, a
comparação com os vinhos: as vinícolas nacionais da Serra Gaúcha conseguem colocar
no mercado bons espumantes produzidos pelo método champenoise na faixa dos R$
30-40. Veja, estamos falando de vinhos, que são mais caros para se produzir do
que cervejas, a princípio (já que 90% do volume de matéria-prima da cerveja é
água). O espumante Valduga Arte, por exemplo, passa por 12 meses de maturação
com leveduras (o mesmo que a Eisenbahn Lust Prestige) e sai por menos de R$ 35.
Como eu afirmei, é difícil fazer especulações e ainda mais difícil comparar o
volume de produção de uma vinícola como a Valduga e uma microcervejaria como a
Wäls, mas me parece que não se pode creditar o alto preço das bières brut exclusivamente ao processo
de produção.
Na próxima parte deste artigo, finalmente comentaremos um
pouco sobre as características sensoriais do estilo. Trocando em miúdos: depois
de saber tudo isso, afinal de contas, como uma bière brut se apresenta na minha boca? Não perca!
Perdeu as partes anteriores deste artigo? Confira aqui:
Mais um ótimo texto! Parabéns!
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