sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte V: O mercado brasileiro


É curioso que um estilo com raízes francesas e belgas tão fortes, unindo os métodos tradicionais de produzir cerveja e espumantes nesses dois países, tenha uma presença tão marcante no Brasil, país sem tanta tradição vinícola e cervejeira remontando ao passado. Algumas pessoas acreditam – e me parece plausível – que a elitização e a busca por consumidores de alta renda tenham sido uma forma da indústria cervejeira nacional de procurar inserção de mercado em uma conjuntura econômica de alta taxação, que impede a redução de preços, e de expansão dos mercados de luxo. As bières brut, com suas remissões a champagne e glamour, eram uma escolha certeira para atingir na mosca esse público. Não parece eloquente que o paralelo explícito com os champagnes (por meio do uso do termo “método champenoise”) tenha ocorrido justamente com os rótulos da Terra dos Papagaios, e não tanto com os belgas?

Um novo destino: o Brasil

Maturação e remoção da Eisenbahn Lust 
na vinícola San Michele.
Fonte: Edu Passarelli Recomenda
No Brasil, o estilo foi introduzido pela cervejaria Eisenbahn com sua linha denominada Lust (em alemão, “prazer” ou ”vontade”). A cervejaria de Santa Catarina foi a primeira a invocar a denominação “método champenoise”, em destaque no rótulo, para denominar o estilo e catapultá-lo direto para o mercado de luxo. A Eisenbahn Lust usa a mesma receita da Eisenbahn Strong Golden Ale, mas a cerveja é enviada para a vinícola San Michele (em Rodeio/SC) para a maturação em cave, a remoção e a expelição.

Assim como as grandes vinícolas normalmente produzem dois rótulos diferentes de champagne (o champagne comum e o champagne millesimé), a Eisenbahn lançou uma versão “comum” da Lust, que passa por três meses de maturação, e a versão de luxo denominada Lust Prestige, que passa por um ano de maturação (mais ou menos o mesmo que a Deus, e que a maior parte dos champagnes comuns). Como vimos, a autólise começa a se intensificar a partir do 9º mês de maturação; podemos concluir com alguma segurança, portanto, que a Eisenbahn Lust tem poucas características de autólise, ao contrário da versão Prestige. A produção de dois rótulos diferentes fez com que a Eisenbahn conseguisse oferecer um produto a preços mais competitivos para “penetração” no mercado (a Eisenbahn Lust é a bière brut mais barata – ou melhor, menos cara – do mercado nacional) sem abdicar de um rótulo de luxo produzido com mais cuidado.

José Felipe Carneiro mostra, orgulhoso, 
a primeira safra da Wäls Brut 
passando pela remoção.
Fonte: Edu Passarelli Recomenda
Como se não bastasse, em 2011 foi lançado um segundo rótulo do estilo produzido no Brasil, desta vez por uma cervejaria especializada na produção de estilos belgas: a Wäls, de Minas Gerais. A ideia surgiu de um desafio feito a José Felipe Carneiro, responsável pela produção de cervejas da Wäls, pelo seu irmão Tiago (também proprietário da cervejaria): ele seria capaz de produzir uma cerveja como a Eisenbahn Lust Prestige? Muito estudo e algumas tentativas depois, surgia a Wäls Brut. A cerveja apela para a mesma denominação champenoise já usada pela Eisenbahn. Sua produção usa como base um blend preparado com 70% da tripel da marca e 30% de uma receita exclusiva, e ela passa por maturação na garrafa durante 9 meses – tempo necessário para começar a se intensificar a autólise das leveduras. Assim como a Malheur, a Wäls optou por realizar todas as etapas do processo em sua própria fábrica – mas, ao contrário da cervejaria belga, faz tudo manualmente. Em 2011, a cervejaria iniciou reformas para ampliar as caves de produção da Wäls Brut, indicando um maior investimento neste que já é seu rótulo de mais alto padrão. Entre suas concorrentes diretas, a cerveja se diferencia especialmente pelo licor de expedição, que, em vez de ser um líquido mais adocicado, é a própria cerveja resultante da refermentação com leveduras de espumantes, resultando num produto final levemente mais seco. Talvez devamos considerar que, se as demais bières brut podem ser classificadas como “brut”, a Wäls Brut seria uma “extra brut” ou "brut nature" (um pouco mais seca).

É só isso? Quase, por mais improvável que possa parecer. Há poucas cervejas produzidas no estilo ao redor do mundo. Além das quatro marcas já citadas (disponíveis no mercado nacional), o site norte-americano Beer Advocate indica outros rótulos sob a denominação de estilo “bière de champagne / bière brut”, mas nem todos com o teor alcoólico ou o perfil do estilo consagrado pela Deus. Entre as que mais parecem se adequar ao perfil das marcas belgas, podemos citar a canadense Dominus Vobiscum Brut, da microcervejaria Charlevoix, e a italiana L’Equilibrista, da cervejaria Birra del Borgo. De qualquer forma, considerando-se o berço belga do estilo, o Brasil, com as particularidades do seu mercado de luxo de cervejas, tem se destacado mundialmente na produção do estilo, com o mesmo número de marcas que na Bélgica!

E os preços?

Esta é a clássica questão, invariavelmente levantada quando o assunto são as bières brut. Por que elas custam tão mais caro que os demais estilos (salvo talvez algumas lambics importadas e alguns rótulos excepcionais pela sua raridade ou seu teor alcoólico elevado)? Parte substancial da resposta, é óbvio, encontra-se no método champenoise, principalmente na longa maturação em garrafa e nas trabalhosas etapas da remoção e expelição, quando realizadas manualmente (garrafa por garrafa).

Pode ir esquecendo a sua bière brut no final do ano...
Fonte: www.canstockphoto.com.br
Mas isso justifica tanta diferença? Não possuo uma cervejaria e nunca ousei produzir as danadas, então é um pouco difícil dar uma resposta definitiva para isso. É preciso lembrar que, para além do tempo e do trabalho gastos com o processo produtivo, as bières brut requerem infraestrutura específica apenas para sua produção (ou o aluguel de uma infraestrutura alheia, como é o caso da Bosteels e da Eisenbahn). E, é claro, existe o direcionamento desses rótulos para ocasiões especiais e para um público de maior poder aquisitivo (trata-se dos produtos de luxo de suas cervejarias), estimulando uma precificação em faixa superior. A Wäls Brut, por exemplo, é comercializada em uma caixa de luxo artesanal cujo custo é de R$ 18. É claro que isso gera um impacto no preço final. José Felipe Carneiro, responsável pela produção das cervejas da Wäls, já afirmou que a caixa faz parte da experiência do produto – porque, infelizmente, não se trata apenas da cerveja, mas também da aura de sofisticação e glamour que o consumidor espera dela. Será que podemos culpar exclusivamente o produtor se é isso que o consumidor espera do produto? Mais uma vez, são as bières brut as maiores prejudicadas pelo prestígio associado ao estilo.

Por mais difícil que seja ponderar todos esses fatores para avaliar o preço final das cervejas do estilo, não custa fazermos, de novo, a comparação com os vinhos: as vinícolas nacionais da Serra Gaúcha conseguem colocar no mercado bons espumantes produzidos pelo método champenoise na faixa dos R$ 30-40. Veja, estamos falando de vinhos, que são mais caros para se produzir do que cervejas, a princípio (já que 90% do volume de matéria-prima da cerveja é água). O espumante Valduga Arte, por exemplo, passa por 12 meses de maturação com leveduras (o mesmo que a Eisenbahn Lust Prestige) e sai por menos de R$ 35. Como eu afirmei, é difícil fazer especulações e ainda mais difícil comparar o volume de produção de uma vinícola como a Valduga e uma microcervejaria como a Wäls, mas me parece que não se pode creditar o alto preço das bières brut exclusivamente ao processo de produção.

Na próxima parte deste artigo, finalmente comentaremos um pouco sobre as características sensoriais do estilo. Trocando em miúdos: depois de saber tudo isso, afinal de contas, como uma bière brut se apresenta na minha boca? Não perca!

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