Estou ciente de que este era o momento que algumas pessoas
estavam aguardando desta matéria sobre as bières
brut. Sabemos que essas cervejas não são exatamente baratas, e nem todo
mundo pode se dar ao luxo de simplesmente sair provando todas para decidir qual
bate mais com o seu paladar. Tendo isso em vista, uma avaliação dos 5 rótulos
disponíveis no mercado nacional certamente é útil. Os leitores que estiverem
querendo provar uma cerveja do estilo e não sabem por qual começar podem ter
alguma luz; e aqueles que já provaram todas podem concordar ou discordar do
comparativo, ou quem sabe retornar a este ou aquele rótulo com um novo olhar
depois de tudo o que discutimos por aqui. Ainda assim, sinto que tudo o que
discutimos até aqui nos ajuda a extrair dessas cervejas uma experiência mais
completa e instigante; e espero que os bravos leitores que nos acompanharam até
aqui compartilhem essa opinião.
Espere aí, eu disse 5 rótulos? Sim, cinco. Não está faltando
algum? Vamos aos esclarecimentos: os rótulos que selecionei para compor o
painel comparativo são: Deus Brut des Flandres, Wäls Brut, Malheur Bière Brut,
Eisenbahn Lust e Eisenbahn Lust Prestige. Deixei de fora a Malheur Dark Brut,
já que o estilo-base a partir do qual ela é produzida (Belgian dark strong ale)
lhe dá características que divergem completamente do perfil que delineamos na
última parte. Alguns também se indagarão a respeito da Infinium Ale (produzida
em parceria da Samuel Adams com a Weihenstephaner); contudo, esta cerveja, apesar
de sua “aura” de champagne, não passa
pelo método champenoise.
Como ocorreu a
degustação? Infelizmente, não tive a oportunidade ($$) de realizar uma
degustação simultânea comparativa dos cinco rótulos. Sinto desapontar os mais
românticos, mas os historiadores não estão ganhando tão bem, assim. Dessa
forma, o comparativo foi feito a partir de minhas notas de degustação das
ocasiões em que degustei cada um desses rótulos. Seria extremamente
interessante refazer o comparativo com as cinco garrafas na mesa, mas a ocasião
deverá esperar até que eu ganhe na mega-sena ou seja adotado por um mecenas
generoso – o que ocorrer primeiro.
Mas chega de conversa fiada e vamos a elas!
Deus Brut des
Flandres
Aparência:
coloração amarela clara, acinzentada, transparente, com espuma abundante
que se diminui rapidamente e deixa uma camada perene.
Aromas: excelente
harmonia e equilíbrio de aromas frutados, condimentados e florais. Predomina um
aroma adocicado de manjericão fresco, acompanhado de frutado expressivo (com remissões
de uvas verdes, lima-da-Pérsia, laranja, guaraná, tutti-frutti). Álcoois
revelam perfume floral de rosas, sugerido gim e Cointreau. Toques condimentados
trazem cravo e algo apimentado (fenólico ou de lúpulo?). Há uma sutil "sensação de lambic" (amêndoas?). Possivelmente a que apresenta maior complexidade aromática.
Paladar: o trio
doce-picante-amargo se desenvolve em sequência na boca e mostra bom equilíbrio,
com acidez bem presente e um toque salgado considerável. Menos ácida que outras
do estilo.
Sensação na boca:
corpo leve e incrivelmente limpo, com sensação frisante delicada e “crocante”.
Baixa mineralização dá a sensação de “engolir nuvens”.
A cerveja que originou o estilo apresenta alta complexidade
de aromas e harmonia modelar entre seus perfis frutado, floral/alcoólico e
condimentado. Um toque herbal bem expressivo e bem integrado aos ésteres
frutados sugere manjericão e me agrada muito. O lúpulo é pouco expressivo. Com
sensação extremamente limpa e leve, deixa um perfume persistente na boca. Tem
paladar delicado e feminino, em especial devido ao fato de ser uma das mais
adocicadas do estilo. A longa maturação (todo o processo produtivo leva mais de
um ano) lhe dá boa complexidade de álcoois aromáticos em harmonia. Para mim,
segue sendo um modelo de harmonia, além de uma das mais surpreendentes cervejas
que já bebi.
Veja aqui a avaliação completa.
Veja aqui a avaliação completa.
Wäls Brut
Fonte: http://espacovinil.blogspot.com |
Aparência: dourada radiosa e
transparente, com creme menos abundante, mas persistente, e carbonatação
visivelmente mais suave.
Aromas: muita
complexidade, com predomínio de aromas frutados e florais. O perfil frutado
revela a identidade do fermento usado pela cervejaria em notas de mamão papaya,
pêras frescas e polpa de maçã, e o perfil floral combina os álcoois superiores
(lembrando essência de rosas) ao aroma floral do lúpulo, sugerindo variedades
alemãs tradicionais. O malte, limpo, traz uma doçura de mel. Bem ao fundo, o
frescor aromático é temperado por uma leve "sensação de lambic" (amêndoas?), e toques sutis de
cravo e pimenta.
Paladar: doçura e
amargor se equilibram competentemente e se justapõem durante todo o gole. A percepção
de acidez é baixa para o estilo (talvez pela baixa carbonatação), diminuindo a refrescância
e a vividez mas trazendo boa limpeza. Apesar de a cerveja não levar um licor de
expedição adocicado, a cerveja de base deixa boa dose de açúcares residuais,
resultando em final seco mas bem equilibrado.
Sensação na boca: muito
leve e seco, elegante e delicado, com forte sensação de limpeza que não agride
a garganta. Carbonatação menos acentuada que em outras do estilo.
Caçula no estilo, a Wäls Brut apresenta uma proposta muito
interessante, com grande complexidade aromática, paladar mais direto (mas
consistente e equilibrado) e sensação bem limpa na boca (a baixa carbonatação,
considerando-se o estilo, contribui com isso). Mostra-se bastante seca, mas de
forma delicada. Lembra bastante o perfil aromático de uma boa Belgian golden
strong ale, mas mais complexa, delicada e limpa. Algumas pessoas não gostam de bières brut porque elas não possuem a rusticidade
de uma cerveja, mas esta Wäls consegue a proeza de obter aquela sensação
diáfana do estilo sem abdicar de algo dessa pegada mais de “cerveja” (amargor,
aroma de lúpulo). Um equilíbrio difícil.
Veja aqui a avaliação completa.
Veja aqui a avaliação completa.
Malheur Bière Brut
Aparência: cor
dourada intensa, com opacidade excessiva para o estilo (visível já desde a
garrafa e mesmo em temperatura mais alta) e boa espuma.
Aromas: perfil
definido de uma Belgian golden strong ale, com frutado predominante, características
secundárias de malte e floral e toques condimentados e de envelhecimento.
Ésteres remetem a pêras e maçãs, com um toque de tinta fresca, equilibrados por
um vívido floral de rosas. O malte é bem presente (mais que em outros rótulos
do estilo), com toques de mel e marrom-glacê. Toques apimentados complementam o
aroma, bem como uma sutil e interessante sensação de tabaco/tostado,
provavelmente oriunda das leveduras em autólise.
Paladar: predomina
o amargor seco e persistente, como de uma golden strong ale bem seca, chegando
até a raspar um pouco na garganta combinado ao intenso aquecimento alcoólico. A
acidez é bem expressiva, e a doçura não chega a equilibrar de forma delicada o
conjunto. Produz uma sensação decididamente mais rústica e assertiva.
Sensação na boca:
corpo leve e bem seco, com ótima textura acetinada (imagino que fruto da
autólise). O aquecimento alcoólico agride um pouco a garganta, e ela não
apresenta aquela limpeza ao engolir que é típica do estilo.
Concorrente belga da Deus, a Malheur Bière Brut apresenta
características decididamente diferentes dela, apostando em um perfil mais
rústico e assertivo, com amargor destacado e sensação alcoólica considerável. A
complexidade e o equilíbrio aromático, para mim, mostram-se um pouco inferiores
a suas concorrentes. O ponto positivo fica para as características de maturação
e envelhecimento, que lhe dão toques bastante interessantes e sugerem um tempo
razoável sobre leveduras (o fabricante não indica quanto tempo ela matura). Trata-se
de uma bière brut mais viril,
masculina, talvez até um pouco grosseira em relação ao estilo, com “pegada” – é
uma cerveja que muitas vezes se torna a bière
brut preferida daqueles que não gostam do estilo. Não é para meninos.
Aproxima-se de uma Belgian golden strong ale, e este talvez seja seu
calcanhar-de-Aquiles: apresenta preço pouco atraente para oferecer uma sensação
semelhante às strong golden ales, muito mais baratas.
Eisenbahn Lust
Aparência: cor dourada radiosa, com boa
transparência inicial, mas turbidez no fundo da garrafa. Espuma volumosa,
diminui rapidamente mas deixa uma camadinha perene.
Aromas: inusitada
diante do estilo, talvez por conta de ser o rótulo com menor tempo de maturação
com as leveduras de espumante. Apresenta intenso perfil lembrando lambics e também espumantes (amêndoas), acompanhado de sólido perfume floral. O frutado
traz abacaxi (como na cerveja de base, a Strong Golden Ale da cervejaria), mas
é menos expressivo. Percebe-se um leve aroma de lúpulo floral e condimentado. Minha
garrafa estava quase no limite da validade, o que pode explicar as características de oxidação remetendo a amêndoas, que mostraram-se bem mais intensas do que o esperado para esta cerveja, que matura por pouco tempo com as leveduras. Possui pouca complexidade para o
estilo, mas se destacou pelo perfil inesperado e relativamente intenso
lembrando lambics,
muito interessante. Pode ter sido uma anomalia da minha amostra?
Paladar: bastante
ácido, com uma doçura correta mas não excessiva para equilibrar. Bem atenuada
se comparada com a cerveja de base. O amargor aparece suave ao final.
Sensação na boca:
corpo leve e delicado, com ótima sensação “crocante” devido à alta carbonatação.
Uma suave sensação alcoólica aparece ao final, equilibrada.
Rótulo “de combate” da Eisenbahn, a Lust comum matura por
apenas 3 meses e, até por conta disso, apresenta perfil fresco e vívido. Na
minha amostra, destacaram-se características lembrando cervejas do tipo lambic (talvez características acentuadas de oxidação com aromas de amêndoas, mas talvez até se possa aventar contaminação por Brettanomyces nesta garrafa), ao lado de forte floral. Forte acidez, a
mais alta entre os rótulos degustados, lhe dá vividez e brilho, mas menos
elegância e limpidez. No mais, apresentou menor complexidade do que o esperado
pelo estilo – a maturação abreviada com leveduras, insuficiente para aprofundar a autólise,
pode explicar isso. Apresenta a sensação perfumada, leve e delicada típica do
estilo por um preço atraente diante das concorrentes. Desconfio que a forte lembrança de lambic não seja típica do rótulo na intensidade em que a encontrei, de modo que valeria fazer uma nova degustação.
Eisenbahn Lust
Prestige
Aparência:
dourada média, bem transparente, com perlage evidente e espuma pouco
persistente
Aromas: possui
perfil aromático maduro e consistente, bem integrado, em que frutados e florais
frescos predominam sobre características mais “fechadas” de envelhecimento.
Equilibram-se notas expressivas de abacaxis frescos (com tutti-frutti ao fundo)
e rosas. Um lúpulo floral e condimentado aparece sutilmente. O envelhecimento
estendido contribui com aromas maduros mais destacados do que nos outros
rótulos degustados, lembrando amêndoas cruas, toque mineral e amanteigado e uma
remissão a mel ou xarope ao fundo. O malte se faz presente lembrando pão doce.
Uma presença de compostos sulfúricos (dimetil sulfeto e dimetil trissulfeto,
lembrando legumes refogados no alho) lhe tirou um pouco do brilho e pureza.
Paladar: consistente
e bem-resolvido, com amargor levemente predominante mas muito bem equilibrado
pela acidez precisa e pela doçura. Todas essas sensações se misturam de forma
harmônica na boca.
Sensação na boca: corpo
leve e seco, com alta sensação frisante
Uma versão mais madura e consistente da Eisenbahn Lust, com
aromas de envelhecimento que se destacam em relação às demais representantes do
estilo, equilibrando o vívido frescor frutado-floral e conferindo-lhe muita elegância.
Poderia apresentar mais complexidade e mais pureza de aromas – já peguei
algumas garrafas com defeitos sulfúricos e de autólise intensos o bastante para
prejudicar decisivamente a degustação, o que é complicado numa cerveja nessa
faixa de preço. Em relação à versão “normal” da Lust, mostra-se menos ácida e
mais seca, com frutado mais fresco e presente. Um rótulo delicado e sofisticado, muito distante da
receita que lhe serve de base.
Na próxima – e derradeira! – parte desta matéria sobre as bières brut, farei alguns comentários
comparativos a respeito dos cinco rótulos degustados, confrontando suas
qualidades, perfis e vocações. Não perca!
Perdeu as partes anteriores deste artigo? Veja aqui:
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