sábado, 24 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte VII: Quinteto virtuoso


Estou ciente de que este era o momento que algumas pessoas estavam aguardando desta matéria sobre as bières brut. Sabemos que essas cervejas não são exatamente baratas, e nem todo mundo pode se dar ao luxo de simplesmente sair provando todas para decidir qual bate mais com o seu paladar. Tendo isso em vista, uma avaliação dos 5 rótulos disponíveis no mercado nacional certamente é útil. Os leitores que estiverem querendo provar uma cerveja do estilo e não sabem por qual começar podem ter alguma luz; e aqueles que já provaram todas podem concordar ou discordar do comparativo, ou quem sabe retornar a este ou aquele rótulo com um novo olhar depois de tudo o que discutimos por aqui. Ainda assim, sinto que tudo o que discutimos até aqui nos ajuda a extrair dessas cervejas uma experiência mais completa e instigante; e espero que os bravos leitores que nos acompanharam até aqui compartilhem essa opinião.

Espere aí, eu disse 5 rótulos? Sim, cinco. Não está faltando algum? Vamos aos esclarecimentos: os rótulos que selecionei para compor o painel comparativo são: Deus Brut des Flandres, Wäls Brut, Malheur Bière Brut, Eisenbahn Lust e Eisenbahn Lust Prestige. Deixei de fora a Malheur Dark Brut, já que o estilo-base a partir do qual ela é produzida (Belgian dark strong ale) lhe dá características que divergem completamente do perfil que delineamos na última parte. Alguns também se indagarão a respeito da Infinium Ale (produzida em parceria da Samuel Adams com a Weihenstephaner); contudo, esta cerveja, apesar de sua “aura” de champagne, não passa pelo método champenoise.

Como ocorreu a degustação? Infelizmente, não tive a oportunidade ($$) de realizar uma degustação simultânea comparativa dos cinco rótulos. Sinto desapontar os mais românticos, mas os historiadores não estão ganhando tão bem, assim. Dessa forma, o comparativo foi feito a partir de minhas notas de degustação das ocasiões em que degustei cada um desses rótulos. Seria extremamente interessante refazer o comparativo com as cinco garrafas na mesa, mas a ocasião deverá esperar até que eu ganhe na mega-sena ou seja adotado por um mecenas generoso – o que ocorrer primeiro.

Mas chega de conversa fiada e vamos a elas!


Deus Brut des Flandres

Aparência: coloração amarela clara, acinzentada, transparente, com espuma abundante que se diminui rapidamente e deixa uma camada perene.

Aromas: excelente harmonia e equilíbrio de aromas frutados, condimentados e florais. Predomina um aroma adocicado de manjericão fresco, acompanhado de frutado expressivo (com remissões de uvas verdes, lima-da-Pérsia, laranja, guaraná, tutti-frutti). Álcoois revelam perfume floral de rosas, sugerido gim e Cointreau. Toques condimentados trazem cravo e algo apimentado (fenólico ou de lúpulo?). Há uma sutil "sensação de lambic" (amêndoas?). Possivelmente a que apresenta maior complexidade aromática.
Paladar: o trio doce-picante-amargo se desenvolve em sequência na boca e mostra bom equilíbrio, com acidez bem presente e um toque salgado considerável. Menos ácida que outras do estilo.
Sensação na boca: corpo leve e incrivelmente limpo, com sensação frisante delicada e “crocante”. Baixa mineralização dá a sensação de “engolir nuvens”.

A cerveja que originou o estilo apresenta alta complexidade de aromas e harmonia modelar entre seus perfis frutado, floral/alcoólico e condimentado. Um toque herbal bem expressivo e bem integrado aos ésteres frutados sugere manjericão e me agrada muito. O lúpulo é pouco expressivo. Com sensação extremamente limpa e leve, deixa um perfume persistente na boca. Tem paladar delicado e feminino, em especial devido ao fato de ser uma das mais adocicadas do estilo. A longa maturação (todo o processo produtivo leva mais de um ano) lhe dá boa complexidade de álcoois aromáticos em harmonia. Para mim, segue sendo um modelo de harmonia, além de uma das mais surpreendentes cervejas que já bebi.

Veja aqui a avaliação completa.


Wäls Brut


Fonte: http://espacovinil.blogspot.com
Aparência: dourada radiosa e transparente, com creme menos abundante, mas persistente, e carbonatação visivelmente mais suave.
Aromas: muita complexidade, com predomínio de aromas frutados e florais. O perfil frutado revela a identidade do fermento usado pela cervejaria em notas de mamão papaya, pêras frescas e polpa de maçã, e o perfil floral combina os álcoois superiores (lembrando essência de rosas) ao aroma floral do lúpulo, sugerindo variedades alemãs tradicionais. O malte, limpo, traz uma doçura de mel. Bem ao fundo, o frescor aromático é temperado por uma leve "sensação de lambic" (amêndoas?), e toques sutis de cravo e pimenta.
Paladar: doçura e amargor se equilibram competentemente e se justapõem durante todo o gole. A percepção de acidez é baixa para o estilo (talvez pela baixa carbonatação), diminuindo a refrescância e a vividez mas trazendo boa limpeza. Apesar de a cerveja não levar um licor de expedição adocicado, a cerveja de base deixa boa dose de açúcares residuais, resultando em final seco mas bem equilibrado.
Sensação na boca: muito leve e seco, elegante e delicado, com forte sensação de limpeza que não agride a garganta. Carbonatação menos acentuada que em outras do estilo.

Caçula no estilo, a Wäls Brut apresenta uma proposta muito interessante, com grande complexidade aromática, paladar mais direto (mas consistente e equilibrado) e sensação bem limpa na boca (a baixa carbonatação, considerando-se o estilo, contribui com isso). Mostra-se bastante seca, mas de forma delicada. Lembra bastante o perfil aromático de uma boa Belgian golden strong ale, mas mais complexa, delicada e limpa. Algumas pessoas não gostam de bières brut porque elas não possuem a rusticidade de uma cerveja, mas esta Wäls consegue a proeza de obter aquela sensação diáfana do estilo sem abdicar de algo dessa pegada mais de “cerveja” (amargor, aroma de lúpulo). Um equilíbrio difícil.

Veja aqui a avaliação completa.


Malheur Bière Brut

Aparência: cor dourada intensa, com opacidade excessiva para o estilo (visível já desde a garrafa e mesmo em temperatura mais alta) e boa espuma.
Aromas: perfil definido de uma Belgian golden strong ale, com frutado predominante, características secundárias de malte e floral e toques condimentados e de envelhecimento. Ésteres remetem a pêras e maçãs, com um toque de tinta fresca, equilibrados por um vívido floral de rosas. O malte é bem presente (mais que em outros rótulos do estilo), com toques de mel e marrom-glacê. Toques apimentados complementam o aroma, bem como uma sutil e interessante sensação de tabaco/tostado, provavelmente oriunda das leveduras em autólise.
Paladar: predomina o amargor seco e persistente, como de uma golden strong ale bem seca, chegando até a raspar um pouco na garganta combinado ao intenso aquecimento alcoólico. A acidez é bem expressiva, e a doçura não chega a equilibrar de forma delicada o conjunto. Produz uma sensação decididamente mais rústica e assertiva.
Sensação na boca: corpo leve e bem seco, com ótima textura acetinada (imagino que fruto da autólise). O aquecimento alcoólico agride um pouco a garganta, e ela não apresenta aquela limpeza ao engolir que é típica do estilo.

Concorrente belga da Deus, a Malheur Bière Brut apresenta características decididamente diferentes dela, apostando em um perfil mais rústico e assertivo, com amargor destacado e sensação alcoólica considerável. A complexidade e o equilíbrio aromático, para mim, mostram-se um pouco inferiores a suas concorrentes. O ponto positivo fica para as características de maturação e envelhecimento, que lhe dão toques bastante interessantes e sugerem um tempo razoável sobre leveduras (o fabricante não indica quanto tempo ela matura). Trata-se de uma bière brut mais viril, masculina, talvez até um pouco grosseira em relação ao estilo, com “pegada” – é uma cerveja que muitas vezes se torna a bière brut preferida daqueles que não gostam do estilo. Não é para meninos. Aproxima-se de uma Belgian golden strong ale, e este talvez seja seu calcanhar-de-Aquiles: apresenta preço pouco atraente para oferecer uma sensação semelhante às strong golden ales, muito mais baratas.

Veja aqui a avaliação completa.


Eisenbahn Lust

Aparência: cor dourada radiosa, com boa transparência inicial, mas turbidez no fundo da garrafa. Espuma volumosa, diminui rapidamente mas deixa uma camadinha perene.

Aromas: inusitada diante do estilo, talvez por conta de ser o rótulo com menor tempo de maturação com as leveduras de espumante. Apresenta intenso perfil lembrando lambics e também espumantes (amêndoas), acompanhado de sólido perfume floral. O frutado traz abacaxi (como na cerveja de base, a Strong Golden Ale da cervejaria), mas é menos expressivo. Percebe-se um leve aroma de lúpulo floral e condimentado. Minha garrafa estava quase no limite da validade, o que pode explicar as características de oxidação remetendo a amêndoas, que mostraram-se bem mais intensas do que o esperado para esta cerveja, que matura por pouco tempo com as leveduras. Possui pouca complexidade para o estilo, mas se destacou pelo perfil inesperado e relativamente intenso lembrando lambics, muito interessante. Pode ter sido uma anomalia da minha amostra?
Paladar: bastante ácido, com uma doçura correta mas não excessiva para equilibrar. Bem atenuada se comparada com a cerveja de base. O amargor aparece suave ao final.
Sensação na boca: corpo leve e delicado, com ótima sensação “crocante” devido à alta carbonatação. Uma suave sensação alcoólica aparece ao final, equilibrada.

Rótulo “de combate” da Eisenbahn, a Lust comum matura por apenas 3 meses e, até por conta disso, apresenta perfil fresco e vívido. Na minha amostra, destacaram-se características lembrando cervejas do tipo lambic (talvez características acentuadas de oxidação com aromas de amêndoas, mas talvez até se possa aventar contaminação por Brettanomyces nesta garrafa), ao lado de forte floral. Forte acidez, a mais alta entre os rótulos degustados, lhe dá vividez e brilho, mas menos elegância e limpidez. No mais, apresentou menor complexidade do que o esperado pelo estilo – a maturação abreviada com leveduras, insuficiente para aprofundar a autólise, pode explicar isso. Apresenta a sensação perfumada, leve e delicada típica do estilo por um preço atraente diante das concorrentes. Desconfio que a forte lembrança de lambic não seja típica do rótulo na intensidade em que a encontrei, de modo que valeria fazer uma nova degustação.

Veja aqui a avaliação completa.


Eisenbahn Lust Prestige

Aparência: dourada média, bem transparente, com perlage evidente e espuma pouco persistente

Aromas: possui perfil aromático maduro e consistente, bem integrado, em que frutados e florais frescos predominam sobre características mais “fechadas” de envelhecimento. Equilibram-se notas expressivas de abacaxis frescos (com tutti-frutti ao fundo) e rosas. Um lúpulo floral e condimentado aparece sutilmente. O envelhecimento estendido contribui com aromas maduros mais destacados do que nos outros rótulos degustados, lembrando amêndoas cruas, toque mineral e amanteigado e uma remissão a mel ou xarope ao fundo. O malte se faz presente lembrando pão doce. Uma presença de compostos sulfúricos (dimetil sulfeto e dimetil trissulfeto, lembrando legumes refogados no alho) lhe tirou um pouco do brilho e pureza.
Paladar: consistente e bem-resolvido, com amargor levemente predominante mas muito bem equilibrado pela acidez precisa e pela doçura. Todas essas sensações se misturam de forma harmônica na boca.
Sensação na boca: corpo leve e seco, com alta sensação frisante

Uma versão mais madura e consistente da Eisenbahn Lust, com aromas de envelhecimento que se destacam em relação às demais representantes do estilo, equilibrando o vívido frescor frutado-floral e conferindo-lhe muita elegância. Poderia apresentar mais complexidade e mais pureza de aromas – já peguei algumas garrafas com defeitos sulfúricos e de autólise intensos o bastante para prejudicar decisivamente a degustação, o que é complicado numa cerveja nessa faixa de preço. Em relação à versão “normal” da Lust, mostra-se menos ácida e mais seca, com frutado mais fresco e presente. Um rótulo delicado e sofisticado, muito distante da receita que lhe serve de base.

Veja aqui a avaliação completa.


Na próxima – e derradeira! – parte desta matéria sobre as bières brut, farei alguns comentários comparativos a respeito dos cinco rótulos degustados, confrontando suas qualidades, perfis e vocações. Não perca!

Perdeu as partes anteriores deste artigo? Veja aqui:
Parte VI: O perfil sensorial

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