Fonte: Doses de Arte |
O final de ano é a época em que
fazemos uma pausa, tentamos passar em revista o ano que se foi e meditamos
sobre o que virá. Invariavelmente, a época pede celebração, e as festas são
ensejo para novas comidas, novas experiências: a despensa e a mesa se enriquecem
com produtos que reaparecem magicamente nos supermercados em novembro para
voltarem em janeiro ao seu silencioso exílio, como as castanhas portuguesas com
as quais pretendo, mais uma vez, tentar fazer marron glacé. Tentar. Pela terceira vez.
Esse momento de reorganização da vida e
do nosso ritmo cotidiano é marcado com uma dieta diferente, a das grandes
festas, que quebra o ciclo da alimentação cotidiana e instaura uma ruptura do
tempo “normal” de nossas vidas. Novas comidas, e também novas bebidas para
marcar, na mesa, esse novo tempo que se vive. Não podem faltar as bebidas
normalmente dedicadas às celebrações, em especial o espumante – seja o
tradicional champagne para os mais
abastados, seja um vinho frisante de qualquer outra procedência ou mesmo uma
sidra popular. Em contraste com a corpulência dos vinhos tintos mais gordos, a
leveza quase diáfana dos espumantes convida-nos a esquecer nossas preocupações
por um instante, e a sensação frisante brinca com nossa sensibilidade e nos
torna mais receptivos ao novo, ao alegre.
O salão de recepções matrimoniais de Al Maa’red,
em Abu
Dhabi. Será que realmente precisa disso tudo?
Fonte:
LASVIT |
Claro que
celebrações também são momentos de dispormos das riquezas que acumulamos para
contentar nossos entes queridos – ou para nosso próprio contentamento
autoindulgente. Entre os povos nativos da costa oeste norte-americana, era
comum a realização de cerimônias periódicas conhecidas como potlatch, em que os chefes mais ricos distribuíam
presentes e, eventualmente, até mesmo desperdiçavam intencionalmente e
destruíam riquezas. Será que nossas suntuosas festas de fim de
ano ou as de casamento que alguns anfitriões abastados preparam não têm uma
função semelhante? Sem dúvida têm, mas com uma diferença: numa sociedade
baseada na troca e na reciprocidade, como é o caso dos indígenas
norte-americanos, o potlatch funciona
como momento privilegiado de união entre as pessoas e de acesso a produtos
escassos. Já na nossa sociedade de mercado consumista, festas suntuosas
adquirem o papel de ostentação de riqueza e demarcação de hierarquias de status.
Seja como for, esse período está – para
o bem e para o mal – associado à fartura: ao seu desfrute e também à sua
ostentação. Por isso, as bebidas da época assumem uma aura de sofisticação e de
riqueza: quem poderá negar que, entre todos os tipos de vinho, os champagnes são os mais rodeados de uma
aura de glamour? Quanto mais caro,
aliás, maior é o status de quem
oferece (ou, pior, bebe solitariamente) a garrafa. Para alguns consumidores,
isso parece influenciar a percepção de preços de tais produtos. As pessoas
parecem se esquecer de que o alto preço final dos champagnes para o consumidor está ligado aos altos custos
envolvidos em sua fabricação (voltaremos a esse ponto nos próximos posts), e
parecem acreditar que está antes ligado a esse suposto glamour da bebida, levando a todo tipo de mistificação, esnobismo e
abuso. Quem está mais preocupado em usar a bebida para ostentar a riqueza acaba,
no fundo, bebendo dinheiro. Não importam as qualidades do que se bebe: importa
o quanto custou. Numa curiosa inversão, quanto mais caro, melhor é o custo-benefício
(!): afinal, o objetivo não é pagar pouco por um produto de qualidade, mas
pagar muito por um produto, qualquer que seja sua qualidade.
Na batalha vinho vs. cerveja, os dois saem perdendo.
Fonte:
Supplewine |
Nós, amantes de cervejas, frequentemente nos
lamentamos pela diferença de percepção e julgamento que as pessoas ainda
parecem fazer a respeito de vinhos e cervejas. Muitos consideram, ainda hoje, a
cerveja como a “prima pobre” dos vinhos: mais barata (embora saibamos que nem
sempre é esse o caso) e, consequentemente, menos interessante e refinada.
Produto do mesmo pensamento tosco, ostentatório e simplista típico de uma
cultura embasbacada com seu recente acesso ao mundo do consumo de luxo.
Babaquices do Brasil do século XXI, em suma. Muitas vezes, saímos em defesa de
nossas queridas cervejas, advogando que tenham o mesmo status concedido ao nobre fermentado de uvas. Questiono-me se essa
paridade realmente é a melhor estratégia. Às vezes, equiparar cervejas e vinhos
pode ser um tiro pela culatra: podemos absorver o melhor, mas também podemos
ser presenteados com o pior da cultura enófila brasileira. E, infelizmente,
esses fetiches perversos que rondam os vinhos nas festas de fim de ano em nossa
sociedade consumista parecem estar também contaminando nossas cervejas.
As bières
brut, nesse mercado de luxo que tem se tornado o segmento das cervejas
ditas “especiais”, estão assumindo as características associadas ao champagne – as boas e as ruins,
indistintamente. A comparação se impõe quase naturalmente: ambas as bebidas usam
o mesmo método de produção, o chamado método champenoise, aprimorado pelo abade Dom Pérignon no século XVII e
por Nicole Ponsardin, a célebre viúva (veuve)
Cliquot, no início do século XIX. Na verdade, as cervejas, em especial as da
escola belga, guardam muito mais semelhanças com os champagnes do que se poderia supor a princípio. Voltaremos a isso
mais tarde. Mas o fato é que, quando surgiu em 2002 a primeira representante
deste novo estilo cervejeiro, a belga Deus, ela foi apresentada imediatamente
como um “champagne das cervejas”,
servida inclusive na tradicional taça dos champagnes
(a “flauta”). O mesmo marketing foi aplicado aos rótulos brasileiros,
inclusive. Como resultado, a comparação com os champagnes se consolidou definitivamente.
Como para confirmar essa vinculação, a
cerveja Deus estabeleceu um novo patamar de preços. Na Europa, a garrafa de
750ml custa em torno de € 15-20. No Brasil, como se sabe, é corriqueiro
encontrá-la acima dos R$ 200, o que corresponde à faixa de preços de um champagne mais comercial, como o Moët &
Chandon ou o Veuve Cliquot Ponsardin. Outras bières brut, mesmo as nacionais, normalmente ultrapassam os R$ 100,
com a exceção feita à versão mais comercial da Eisenbahn Lust. Isso as torna vítimas
fáceis daquele fetichismo e daquela inversão de preços que comentei em relação
ao champagne: paradoxalmente, a Deus
é uma cerveja que vende muito bem no Brasil – não apesar do seu preço, como se
poderia pensar, mas justamente por causa
dele! Na estúpida lógica do quanto mais caro, melhor, esses rótulos
catapultaram automaticamente as cervejas para um novo patamar dentro do mercado
de luxo nacional. Os importadores e produtores têm, compreensivelmente,
explorado com avidez esse novo e lucrativo nicho de mercado que se abriu para
as cervejas, mas será que não existem alguns prejuízos desse tipo de inserção
de mercado para um produto como uma cerveja? Não se trata de uma inserção
conquistada gradativamente a partir das qualidades organolépticas e sensoriais
do produto e da experiência pessoal de vários consumidores, mas de uma mera estratégia
de precificação. Posicionamento superficial, frágil, sujeito a todo tipo de abalos.
“Garçom, não estou encontrando meus R$ 200 nesta taça.”
Fonte:
Cartoon Stock |
Ironicamente, quem sai perdendo com todo
esse fetichismo não são (apenas) os consumidores: são as próprias cervejas.
Quando se paga um valor tão alto por uma garrafa, é muito difícil evitar que
uma série de expectativas se coloque entre nós e o líquido dentro do nosso copo
– expectativa que, às vezes, cerveja
nenhuma seria capaz de suprir. Muitas vezes, o preço é tudo o que as
pessoas conseguem degustar ao tomar essas cervejas, em prejuízo de toda a
riqueza sensorial que elas podem nos oferecer se estivermos receptivos. É comum
ouvir relatos de apreciadores de cervejas que se decepcionaram ao beber uma
Deus. Pelo preço que pagaram, “exigiam” que fosse a “melhor cerveja” que já tomaram
(de acordo com aquilo que eles acham
que deveria ser a “melhor cerveja”), a mais marcante, a mais impactante, demandando dela
características que o estilo não se propõe a oferecer. Ora, as bières
brut jamais se propuseram a ser cervejas impactantes e marcantes! Por conta
do seu processo de produção, elas primam justamente pela sua delicadeza. Além
disso, apesar de sabermos pelo nosso bolso que o dinheiro tem uma escala quantitativa
absoluta, o prazer oferecido por uma cerveja é sempre relativo. Em outros
termos, embora possa perfeitamente existir “a cerveja mais cara” do mundo, não
existe nem jamais existirá “a melhor cerveja” do mundo – ainda bem.
As bières
brut, no fim das contas, acabam vitimadas pela própria faixa de preço em
que se encaixam, impedidas de serem corretamente avaliadas de acordo com a sua
proposta. O apreciador de cervejas que paga seu preço exige “a melhor cerveja
que já bebeu” (o que é uma besteira), e o consumidor mais eclético exige que
ela seja um champagne (coisa que
nunca será, pois é uma cerveja). Seus verdadeiros encantos, por isso, muitas
vezes continuam secretos. Nas próximas partes deste artigo, explorarei o
processo de produção dessas cervejas, falarei sobre sua proposta sensorial e
finalizarei com uma comparação dos cinco rótulos disponíveis no mercado
nacional: Deus Brut des Flandres, Eisenbahn Lust, Eisenbahn Lust Prestige,
Malheur Bière Brut e Wäls Brut. Espero poder varrer a grossa camada de
fetichismo que recobre essas cervejas para deixá-las falarem por si mesmas, sem
o auxílio da etiqueta de preços, e para apreciar seu brilho delicado, próprio e
radiante, escondido por baixo de tanto esnobismo.
O amadurecimento do mercado brasileiro de cervejas ..ãh.. não-convencionais está seguindo um rumo muito estranho. É muita "cave" para pouca caneca.
ResponderExcluirPelo menos estou gostando da nova safra de blogs cervejeiros. O Cru e o Maltado já está no topo da minha lista. Parabéns !
Muito bom o texto.
ResponderExcluirCerta vez vi um comentário sobre a DeuS que segue um pouco essa linha. Dizia algo como: "achei que ficou entre uma cerveja bem ruim e um champagne horrível".
Me parece que a pessoa espera que ela seja as duas coisas, tanto um ótimo champagne, como uma fantástica cerveja. Quando a ela não encontra as características comuns a um champagne, busca características de uma cerveja comum, coisa que ela também não tem. Em seguida pensa no preço que pagou e se decepciona.
Mas tem também o outro lado, o cara que paga 200 reais e já aceitou, pelo hype e por outros fatores, que a cerveja é espetacular. Ninguém vai convence-lo do contrário. Então, antes mesmo de bebe-la, ele grita aos quatro cantos que é a melhor cerveja do mundo e que ninguém pode deixar de tomá-la. Basicamente, ele se obriga a gostar da cerveja, talvez por não querer acreditar que pagou 200 reais numa cerveja que não opera milagres.
Fernando, concordo em termos com você. Realmente tivemos lançamentos "especiais" em número desproporcional ao de lançamentos "de linha", em especial no ano de 2010. Alguns especialistas relacionam isso à alta tributação, que, ao impedir a redução de preços, incentiva a penetração em mercados de luxo - mais ou menos como ocorre na Itália. Mas acho que as novas micros estão fazendo bons rótulos a bons preços, com distribuição mais regionalizada. Espero que a tendência continue.
ResponderExcluirAndré, concordo totalmente com você. Seja porque a pessoa bebeu e não era nada do que ela esperava, seja porque ela "já gostou" de antemão só por causa do preço, o resultado é o mesmo: ela se torna incapaz de apreciar as verdadeiras qualidades sensoriais da cerveja. Espero contribuir para evitar isso!