segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Bières brut - Parte I: Um novo estilo ou um novo status?

Com a chegada do fim de ano, eu não poderia deixar de registrar algumas linhas sobre o estilo de cerveja mais associado às grandes festas e celebrações: as bières brut. Em suas encarnações belgas ou brasileiras, ela seguramente estará na mesa de vários amantes de cervejas artesanais neste réveillon. Curiosamente, o Brasil é um dos países que mais se destacam na produção deste elaborado estilo tipicamente belga, o que sem dúvida é motivo de orgulho e sinal de maturidade de nossa indústria – mas também deve ser um alerta para pensarmos um pouco. Abro aqui uma série de posts sobre as bières brut, com o objetivo não apenas de ajudar na escolha do rótulo mais adequado para cada um, mas também para incentivar uma reflexão sobre o significado que essas cervejas têm assumido no Brasil nos últimos anos. Comecemos pela última parte.

Fonte: Doses de Arte
O final de ano é a época em que fazemos uma pausa, tentamos passar em revista o ano que se foi e meditamos sobre o que virá. Invariavelmente, a época pede celebração, e as festas são ensejo para novas comidas, novas experiências: a despensa e a mesa se enriquecem com produtos que reaparecem magicamente nos supermercados em novembro para voltarem em janeiro ao seu silencioso exílio, como as castanhas portuguesas com as quais pretendo, mais uma vez, tentar fazer marron glacé. Tentar. Pela terceira vez.

Esse momento de reorganização da vida e do nosso ritmo cotidiano é marcado com uma dieta diferente, a das grandes festas, que quebra o ciclo da alimentação cotidiana e instaura uma ruptura do tempo “normal” de nossas vidas. Novas comidas, e também novas bebidas para marcar, na mesa, esse novo tempo que se vive. Não podem faltar as bebidas normalmente dedicadas às celebrações, em especial o espumante – seja o tradicional champagne para os mais abastados, seja um vinho frisante de qualquer outra procedência ou mesmo uma sidra popular. Em contraste com a corpulência dos vinhos tintos mais gordos, a leveza quase diáfana dos espumantes convida-nos a esquecer nossas preocupações por um instante, e a sensação frisante brinca com nossa sensibilidade e nos torna mais receptivos ao novo, ao alegre.

O salão de recepções matrimoniais de Al Maa’red, 
em Abu Dhabi. Será que realmente precisa disso tudo?
Fonte: LASVIT
Claro que celebrações também são momentos de dispormos das riquezas que acumulamos para contentar nossos entes queridos – ou para nosso próprio contentamento autoindulgente. Entre os povos nativos da costa oeste norte-americana, era comum a realização de cerimônias periódicas conhecidas como potlatch, em que os chefes mais ricos distribuíam presentes e, eventualmente, até mesmo desperdiçavam intencionalmente e destruíam riquezas. Será que nossas suntuosas festas de fim de ano ou as de casamento que alguns anfitriões abastados preparam não têm uma função semelhante? Sem dúvida têm, mas com uma diferença: numa sociedade baseada na troca e na reciprocidade, como é o caso dos indígenas norte-americanos, o potlatch funciona como momento privilegiado de união entre as pessoas e de acesso a produtos escassos. Já na nossa sociedade de mercado consumista, festas suntuosas adquirem o papel de ostentação de riqueza e demarcação de hierarquias de status.

Seja como for, esse período está – para o bem e para o mal – associado à fartura: ao seu desfrute e também à sua ostentação. Por isso, as bebidas da época assumem uma aura de sofisticação e de riqueza: quem poderá negar que, entre todos os tipos de vinho, os champagnes são os mais rodeados de uma aura de glamour? Quanto mais caro, aliás, maior é o status de quem oferece (ou, pior, bebe solitariamente) a garrafa. Para alguns consumidores, isso parece influenciar a percepção de preços de tais produtos. As pessoas parecem se esquecer de que o alto preço final dos champagnes para o consumidor está ligado aos altos custos envolvidos em sua fabricação (voltaremos a esse ponto nos próximos posts), e parecem acreditar que está antes ligado a esse suposto glamour da bebida, levando a todo tipo de mistificação, esnobismo e abuso. Quem está mais preocupado em usar a bebida para ostentar a riqueza acaba, no fundo, bebendo dinheiro. Não importam as qualidades do que se bebe: importa o quanto custou. Numa curiosa inversão, quanto mais caro, melhor é o custo-benefício (!): afinal, o objetivo não é pagar pouco por um produto de qualidade, mas pagar muito por um produto, qualquer que seja sua qualidade.

Na batalha vinho vs. cerveja, os dois saem perdendo.
Fonte: Supplewine
Nós, amantes de cervejas, frequentemente nos lamentamos pela diferença de percepção e julgamento que as pessoas ainda parecem fazer a respeito de vinhos e cervejas. Muitos consideram, ainda hoje, a cerveja como a “prima pobre” dos vinhos: mais barata (embora saibamos que nem sempre é esse o caso) e, consequentemente, menos interessante e refinada. Produto do mesmo pensamento tosco, ostentatório e simplista típico de uma cultura embasbacada com seu recente acesso ao mundo do consumo de luxo. Babaquices do Brasil do século XXI, em suma. Muitas vezes, saímos em defesa de nossas queridas cervejas, advogando que tenham o mesmo status concedido ao nobre fermentado de uvas. Questiono-me se essa paridade realmente é a melhor estratégia. Às vezes, equiparar cervejas e vinhos pode ser um tiro pela culatra: podemos absorver o melhor, mas também podemos ser presenteados com o pior da cultura enófila brasileira. E, infelizmente, esses fetiches perversos que rondam os vinhos nas festas de fim de ano em nossa sociedade consumista parecem estar também contaminando nossas cervejas.

As bières brut, nesse mercado de luxo que tem se tornado o segmento das cervejas ditas “especiais”, estão assumindo as características associadas ao champagne – as boas e as ruins, indistintamente. A comparação se impõe quase naturalmente: ambas as bebidas usam o mesmo método de produção, o chamado método champenoise, aprimorado pelo abade Dom Pérignon no século XVII e por Nicole Ponsardin, a célebre viúva (veuve) Cliquot, no início do século XIX. Na verdade, as cervejas, em especial as da escola belga, guardam muito mais semelhanças com os champagnes do que se poderia supor a princípio. Voltaremos a isso mais tarde. Mas o fato é que, quando surgiu em 2002 a primeira representante deste novo estilo cervejeiro, a belga Deus, ela foi apresentada imediatamente como um “champagne das cervejas”, servida inclusive na tradicional taça dos champagnes (a “flauta”). O mesmo marketing foi aplicado aos rótulos brasileiros, inclusive. Como resultado, a comparação com os champagnes se consolidou definitivamente.

Como para confirmar essa vinculação, a cerveja Deus estabeleceu um novo patamar de preços. Na Europa, a garrafa de 750ml custa em torno de € 15-20. No Brasil, como se sabe, é corriqueiro encontrá-la acima dos R$ 200, o que corresponde à faixa de preços de um champagne mais comercial, como o Moët & Chandon ou o Veuve Cliquot Ponsardin. Outras bières brut, mesmo as nacionais, normalmente ultrapassam os R$ 100, com a exceção feita à versão mais comercial da Eisenbahn Lust. Isso as torna vítimas fáceis daquele fetichismo e daquela inversão de preços que comentei em relação ao champagne: paradoxalmente, a Deus é uma cerveja que vende muito bem no Brasil – não apesar do seu preço, como se poderia pensar, mas justamente por causa dele! Na estúpida lógica do quanto mais caro, melhor, esses rótulos catapultaram automaticamente as cervejas para um novo patamar dentro do mercado de luxo nacional. Os importadores e produtores têm, compreensivelmente, explorado com avidez esse novo e lucrativo nicho de mercado que se abriu para as cervejas, mas será que não existem alguns prejuízos desse tipo de inserção de mercado para um produto como uma cerveja? Não se trata de uma inserção conquistada gradativamente a partir das qualidades organolépticas e sensoriais do produto e da experiência pessoal de vários consumidores, mas de uma mera estratégia de precificação. Posicionamento superficial, frágil, sujeito a todo tipo de abalos.

“Garçom, não estou encontrando meus R$ 200 nesta taça.”
Fonte: Cartoon Stock
Ironicamente, quem sai perdendo com todo esse fetichismo não são (apenas) os consumidores: são as próprias cervejas. Quando se paga um valor tão alto por uma garrafa, é muito difícil evitar que uma série de expectativas se coloque entre nós e o líquido dentro do nosso copo – expectativa que, às vezes, cerveja nenhuma seria capaz de suprir. Muitas vezes, o preço é tudo o que as pessoas conseguem degustar ao tomar essas cervejas, em prejuízo de toda a riqueza sensorial que elas podem nos oferecer se estivermos receptivos. É comum ouvir relatos de apreciadores de cervejas que se decepcionaram ao beber uma Deus. Pelo preço que pagaram, “exigiam” que fosse a “melhor cerveja” que já tomaram (de acordo com aquilo que eles acham que deveria ser a “melhor cerveja”), a mais marcante, a mais impactante, demandando dela características que o estilo não se propõe a oferecer.  Ora, as bières brut jamais se propuseram a ser cervejas impactantes e marcantes! Por conta do seu processo de produção, elas primam justamente pela sua delicadeza. Além disso, apesar de sabermos pelo nosso bolso que o dinheiro tem uma escala quantitativa absoluta, o prazer oferecido por uma cerveja é sempre relativo. Em outros termos, embora possa perfeitamente existir “a cerveja mais cara” do mundo, não existe nem jamais existirá “a melhor cerveja” do mundo – ainda bem.

As bières brut, no fim das contas, acabam vitimadas pela própria faixa de preço em que se encaixam, impedidas de serem corretamente avaliadas de acordo com a sua proposta. O apreciador de cervejas que paga seu preço exige “a melhor cerveja que já bebeu” (o que é uma besteira), e o consumidor mais eclético exige que ela seja um champagne (coisa que nunca será, pois é uma cerveja). Seus verdadeiros encantos, por isso, muitas vezes continuam secretos. Nas próximas partes deste artigo, explorarei o processo de produção dessas cervejas, falarei sobre sua proposta sensorial e finalizarei com uma comparação dos cinco rótulos disponíveis no mercado nacional: Deus Brut des Flandres, Eisenbahn Lust, Eisenbahn Lust Prestige, Malheur Bière Brut e Wäls Brut. Espero poder varrer a grossa camada de fetichismo que recobre essas cervejas para deixá-las falarem por si mesmas, sem o auxílio da etiqueta de preços, e para apreciar seu brilho delicado, próprio e radiante, escondido por baixo de tanto esnobismo.

3 comentários:

  1. O amadurecimento do mercado brasileiro de cervejas ..ãh.. não-convencionais está seguindo um rumo muito estranho. É muita "cave" para pouca caneca.
    Pelo menos estou gostando da nova safra de blogs cervejeiros. O Cru e o Maltado já está no topo da minha lista. Parabéns !

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  2. Muito bom o texto.

    Certa vez vi um comentário sobre a DeuS que segue um pouco essa linha. Dizia algo como: "achei que ficou entre uma cerveja bem ruim e um champagne horrível".

    Me parece que a pessoa espera que ela seja as duas coisas, tanto um ótimo champagne, como uma fantástica cerveja. Quando a ela não encontra as características comuns a um champagne, busca características de uma cerveja comum, coisa que ela também não tem. Em seguida pensa no preço que pagou e se decepciona.

    Mas tem também o outro lado, o cara que paga 200 reais e já aceitou, pelo hype e por outros fatores, que a cerveja é espetacular. Ninguém vai convence-lo do contrário. Então, antes mesmo de bebe-la, ele grita aos quatro cantos que é a melhor cerveja do mundo e que ninguém pode deixar de tomá-la. Basicamente, ele se obriga a gostar da cerveja, talvez por não querer acreditar que pagou 200 reais numa cerveja que não opera milagres.

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  3. Fernando, concordo em termos com você. Realmente tivemos lançamentos "especiais" em número desproporcional ao de lançamentos "de linha", em especial no ano de 2010. Alguns especialistas relacionam isso à alta tributação, que, ao impedir a redução de preços, incentiva a penetração em mercados de luxo - mais ou menos como ocorre na Itália. Mas acho que as novas micros estão fazendo bons rótulos a bons preços, com distribuição mais regionalizada. Espero que a tendência continue.

    André, concordo totalmente com você. Seja porque a pessoa bebeu e não era nada do que ela esperava, seja porque ela "já gostou" de antemão só por causa do preço, o resultado é o mesmo: ela se torna incapaz de apreciar as verdadeiras qualidades sensoriais da cerveja. Espero contribuir para evitar isso!

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