Em 1964, o célebre antropólogo francês
Claude Lévi-Strauss abriu uma de suas mais importantes obras com as seguintes
palavras: “O objetivo deste livro é mostrar de que modo categorias empíricas,
como as de cru e de cozido, de fresco e de podre, de molhado e de queimado,
etc., [...] podem servir como ferramentas conceituais para isolar noções
abstratas e encadeá-las em proposições.” O nome do livro era O cru e o cozido, e constituía o
primeiro volume de um monumental estudo sobre as mitologias indígenas
americanas que mudou definitivamente a forma como a Antropologia encara o
estudo dos mitos.
Representação esquemática das ideias de Lévi-Strauss: o “triângulo
culinário” opõe formas naturais e culturais de tratar os alimentos.
Fonte:
Com Ciência |
A partir de uma análise sistemática
e rigorosa, Lévi-Strauss mostrou como as ideias de cru, cozido, podre,
queimado, alto, baixo, seco, úmido, água, fogo, perfumado, malcheiroso – entre
outros – são noções usadas pelos ameríndios em suas mitologias para codificar
uma verdadeira filosofia a respeito das relações entre o homem o a natureza. O diagrama acima apresenta os principais valores associados às formas de apresentação dos alimentos: cru, cozido e podre, como formas de simbolizar as transformações da natureza e da cultura sobre o alimento. Por
dar ênfase à culinária como uma maneira de enxergar o mundo, o livro tornou-se
referência obrigatória para todos os interessados em pensar a gastronomia e a
relação do homem com os alimentos. O premiado chef brasileiro Alex Atala, por
exemplo, já ensaiou alguns comentários a respeito da tripartição
cru/cozido/podre proposta pelo antropólogo francês.
Em outra de suas obras, ao analisar o
fenômeno do totemismo (a identificação entre grupos humanos e certos animais)
em várias sociedades, Lévi-Strauss afirmou que alguns animais são “bons para
comer”, enquanto outros são “bons para pensar”. Com isso queria dizer que nós
usamos a simbologia associada a certos animais para pensar qualidades das
pessoas e dos grupos. Por exemplo, quando dizemos que alguém é “uma cobra”, é
óbvio que não estamos pensando nas características biológicas da cobra, mas sim na simbologia que associa o
animal à perfídia, à traição e ao perigo, em oposição à coragem e à força do
leão, por exemplo. Se quisermos seguir o rebuscado e preciso vocabulário lévi-straussiano, trata-se de categorias empíricas (animais) funcionando como ferramentas
conceituais para isolar e encadear proposições abstratas (valores, sentimentos,
hierarquias, papéis).
Bom, de qualquer forma, este é um blog
sobre cervejas, certo? O que isso tudo tem a ver com cerveja? Nada – e tudo.
Lévi-Strauss, infelizmente, não estudou nosso precioso fermentado de cevada,
muito embora a “cerveja” de mandioca produzida pelos índios brasileiros figure
em uma determinada passagem de O cru e o
cozido (mas esse é assunto para um outro post). Apesar disso, o que eu pretendo
é mostrar que cervejas não são boas apenas para beber, mas também são boas para
pensar. As características objetivas, “empíricas”, de nossas cervejas favoritas
(aromas, cores, sabores) podem ser os ingredientes de um imenso e delicioso
simbolismo a partir do qual definimos nossas relações com os alimentos, conosco
mesmos e com os outros. Antes de mais nada, cerveja é cultura. Basta lembrar
que a cerveja é a bebida por excelência de povos agrícolas, ligada
inextricavelmente ao cultivo dos cereais, e que a palavra “cultura” deriva da
mesma raiz que “cultivo”.
É conhecida a paixão que o grande
especialista em cervejas Michael Jackson devotava às lambics belgas, cervejas
produzidas por intermédio de leveduras ditas “selvagens”. Uma paixão intensa o
suficiente para render descrições como esta, extraída de seu já clássico Great beers of Belgium: “É esta
qualidade não-domesticada que faz das Lambics as mais desafiadoras e emocionantes
dentre todas as cervejas. Elas são as mais belgas das cervejas; as mais
incomuns do mundo; e também as mais desinibidamente naturais. Não são nem
fortes e nem agressivas, mas têm uma certa vinosidade firme e seca que pode
chocar no primeiro gole – e que pode também seduzir a ponto da obsessão
qualquer um que realmente ame a exploração sensorial. A selvageria, por
definição, é sedutora. Cerveja selvagem é música ao vivo versus som gravado em estúdio. A fermentação espontânea erupciona,
borbulha e explode como um solo improvisado: um riff de Django Reinhardt, um
gostinho de Toots Thielemans. E muito mais. Bebop versus barroco.”
Alguém falou em sedução?
associar cerveja a categorias culturais.
Fonte: Ladies of Craft Beer
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Emoção, sedução, desinibição,
selvageria, música, jazz. Estamos
falando de cerveja, ainda? Claro que sim, mas também é claro que não – ou não
só. A cerveja é o pretexto para falar de algo infinitamente mais interessante:
a alma humana. É o veículo por meio do qual essa alma se expressa, sonha,
anseia e se sacia. Se a cerveja fosse apenas e tão-somente um líquido dentro de
um copo, capaz de matar a sede e nutrir, dificilmente renderia descrições tão
apaixonadas quanto a que Michael Jackson dedicou às lambics. É justamente
porque ela pode ser bem mais do que isso que nos envolvemos tanto com ela, nos
deixamos seduzir por seus encantos, à primeira vista prosaicos. Não dizemos às
vezes que uma cerveja é “elegante”, “sedutora”, “alegre” ou “introspectiva”? Não nos imaginamos
imediatamente sorvendo este ou aquele rótulo à beira da água numa tarde quente,
ou ao pé da lareira numa noite fria, ou talvez sozinhos encarando o horizonte
durante um pôr-do-sol nublado? Há cervejas simpáticas, que levamos ao almoço de
família, e há aquelas tão obscenas que não ousamos abri-las senão a dois, na
intimidade. Sem sombra de dúvida, em todos esses casos, o que estamos fazendo é codificando nossas
experiências humanas – sociais, afetivas, emocionais, estéticas, filosóficas –
por meio do que esperamos obter, sensorialmente, das cervejas. O melhor que as
mais excelentes cervejas são capazes de nos fornecer é um retrato fiel de nossas
experiências. Ou antes: um retrato agradável, que reflete talvez menos a
realidade e mais a forma como gostaríamos de nos imaginar em cada situação. As
boas cervejas nos dão uma imagem lisonjeira de nós mesmos.
Lévi-Strauss chamou essa capacidade
universalmente humana – a de elaborar ideias complexas por meio de objetos e
imagens – de “pensamento selvagem”. Selvagem como as lambics belgas. Assim como
nos pareceu a partir da descrição de Michael Jackson, talvez pareça, em alguns
momentos, que este blog já deixou de falar de cervejas para abordar outros
assuntos ligados à cultura, à sociedade, à história, à arte. Parti de uma reflexão
breve a respeito da Antropologia e do estudo dos mitos ameríndios para chegar
às cervejas, e meu desejo é continuar digredindo deliciosamente por todos os
caminhos que as maravilhosas (ou as não tão maravilhosas) ales, lagers e
lambics em nossos copos nos levarem.
A princípio, este não deixa de ser “mais
um” blog sobre cervejas, desses que pipocaram aos montes nos últimos dois anos
com o crescimento do interesse por cervejas artesanais no Brasil. Não pretendo,
contudo, que este seja apenas mais um espaço onde você encontrará avaliações de
rótulos, receitas e harmonizações. Já temos excelentes sites com essa proposta
na blogosfera. Meu interesse principal é unir a cerveja a algumas das minhas
outras grandes paixões: história, cultura, arte e pensamento. Não que eu não vá
trazer eventuais avaliações de cervejas (uma boa e rigorosa descrição sensorial
é o primeiro passo para traduzir em palavras as experiências culturais em torno
de uma cerveja), mas espero que, na maior parte das vezes, elas sejam apenas o
pontapé inicial para uma troca de experiências ainda mais gostosa do que o
líquido em si.
Seja bem vindo Marcussi.
ResponderExcluirCom certeza a união de suas 2 paixões trará ótimos frutos.
Abraço.
Realmente estou encantado com este Blog! Você. Alexandre, talvez seja a pessoa que conseguiu melhor traduzir o que eu realmente penso da cerveja e compartilho a ideia de que toda cerveja é uma obra de arte , de melhor ou pior qualidade, mas uma obra de arte. Fiquei encantado na Belgica com o carinho e o respeito que eles tem por esta iguaria , independente de preço, marketing, fama, sabor.Parabens. Realmente voce ganhou um fã!
ResponderExcluirOlá, Ricardo, tudo bem?
ExcluirFico contente que tenha gostado deste espaço! Boas degustações para você!
Abraços,
Alexandre A. Marcussi