Assim que comecei a escrever esta série de artigos sobre
guias de estilo, já sabia que eu queria que ela terminasse com uma análise da
Colorado Indica à luz dos dois guias que analisamos. Foi com um sentimento
positivo de surpresa que eu soube do lançamento da mais nova cerveja da
Colorado, a Vixnu, enquanto estava no processo de escrita. Trata-se da muito
aguardada IPA imperial da cervejaria de Ribeirão Preto, elaborada a partir de
uma extrapolação da receita da nossa Indica. A ideia era tentadora: terminar
esta matéria falando da Colorado Vixnu em relação à Indica. É o que faremos,
pois.
Bebi a Vixnu pela primeira vez no final de 2010, quando ela
ainda era chamada simplesmente de Double Indica. Os lamentáveis, mas não
inabituais imbróglios burocráticos com o MAPA, o Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento, acabaram adiando o lançamento comercial para 2012. De
lá para cá, a receita passou por alguns ajustes, mas o espírito da receita de
2010 ainda se manteve no lançamento comercial.
Como seu nome inicial
já prefigurava, ela usa como base a receita da Indica, mas com maior quantidade
de ingredientes: mais lúpulo para um aroma e amargor mais intensos, mais malte
para um teor alcoólico, corpo e doçura mais proeminentes, e mais rapadura para
– bem, para ainda mais brasilidade! O rótulo, com um inusitado urso de quatro
braços à moda do deus indiano Vixnu, também segue a mesma linha, exagerando o
tom já decididamente lisérgico da Indica.
Fonte:
brejas.com
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Colorado Vixnu
Aparência: coloração acobreada com tons
alaranjados e avermelhados, transparente, com creme persistente, de volume
mediano. Muito bonita na taça!
Aromas: como na
Indica, um duelo de titãs entre as percepções do lúpulo e do malte/rapadura. O
lúpulo é proeminente (como pede o estilo), ostentando uma enorme gama de aromas
de variedades norte-americanas: o maracujá predomina e, aliado à doçura, cria
uma intensa impressão de mousse de maracujá, acompanhado de capim-cidreira,
lavanda, manga, leve apimentado e uma nuance apimentada. Excelente
complexidade, muito além do maracujá já classicamente associado ao lúpulo
Amarillo. O malte vem com força logo atrás: caramelo intenso, torradas e leve
toque tostado/queimado ao final. A doçura do malte e o frescor dos lúpulos se
unem criando uma forte impressão de geleia ou compota de frutas. Aparecem
ésteres frutados remetendo a banana para arrematar o conjunto.
Paladar: uma
forte doçura de geleia e o amargor do lúpulo duelam do início ao fim. O gole
começa bem doce na língua, mostra bom amargor, finaliza mais uma vez puxando à
doçura maltada e deixa um residual mais amargo e perene na garganta. Ao longo
de toda a degustação, ambas as sensações ficam rentes uma à outra, cada qual
prevalecendo apenas brevemente sobre o seu contrário.
Sensação na boca:
muito denso e viscoso, com uma gostosa e melada sensação de geleia que atenua o
aquecimento alcoólico. Até por conta desse corpo acentuado, não tem muita
drinkability – é uma cerveja pesada.
Veja aqui a avaliação completa.
Em todos os sentidos, a Colorado Vixnu passa a sensação de
ser algo como o “irmão mais velho” da Indica, sendo mais corpulenta, forte e
intensa que ela. As mesmas características de nascença, mas todas elevadas
alguns graus acima. A mesma alegria e tropicalidade se expressam na convivência
do frutado/floral com o caramelado, a mesma indulgência se impõe na forte
doçura de geleia de frutas. Uma
transposição perfeita do “espírito” da Indica para o estilo das IPAs imperiais.
Lembro-me de que, quando esta cerveja foi lançada pela
primeira vez, eu estava numa fase de descoberta do estilo. Havia acabado de
degustar várias IPAs imperiais norte-americanas e não pude deixar de perceber
que a da Colorado se diferenciava bastante dos exemplares clássicos do estilo,
que apresentam corpo mais leve, sensação mais limpa e doçura bem mais suave. Na
época, leviana e apressadamente, julguei essa discrepância como um defeito ou
uma espécie de desvantagem da Vixnu. Hoje, percebo que esse é exatamente o charme
desta cerveja, seu diferencial em relação ao estilo. É exatamente o que faz com
que a Vixnu tenha, em relação às IPAs imperiais, a mesma colocação que a Indica
tem em relação às IPAs americanas.
A comparação com uma IPA imperial arquiclássica ajudará a
esclarecer isso. Na última parte desta matéria, comparamos a IPA da Colorado
com a Blind Pig, da californiana Russian River. Nada mais justo, portanto, que
compararmos a Vixnu com o “irmão mais velho” da Blind Pig: a lendária Pliny,
the Elder.
Fonte: edurecomenda.blogspot.com |
Russian River Pliny, the Elder
Aparência: o líquido
mostra coloração alaranjada clara e intensa, com uma opacidade que é comum em
cervejas com muito lúpulo (os americanos chamam-na de “hop haze”). A espuma não
tem muito volume, e nem tampouco persistência acentuada.
Aromas:
uma paulada de lúpulos, com perfil herbal incrivelmente intenso e perfumado
acompanhado de cítricos e condimentados em bom equilíbrio. Predomina o herbal
remetendo a capim-cidreira, extremamente fragrante, acompanhado de ervas finas,
tangerinas, pimenta-do-reino, erva-doce e um tiquinho de grama seca só para dar
uma lembrança de rusticidade. A complexidade só não impressiona mais do que a
vivacidade desses aromas no nariz e na boca. O malte aparece discretamente com
sabor de mel e uma lembrança tostada ao final, ocupando o palco apenas pelo
tempo suficiente para preparar a audiência para o show virtuoso dos lúpulos. Há
ainda uma certa doçura frutada remetendo a laranja ou abacaxi que amarra bem o
frescor lupulado.
Paladar: mais uma
vez, o lúpulo é quem comanda o show, mas com um elenco de coadvujantes bem
afinado. A doçura do malte pode ser sentida inicialmente de forma discreta, mas
suficiente para preparar a boca e a garganta para a intensidade do amargor que
vem na sequência. Esse amargor persiste na boca e na garganta, mas mostra-se
limpo e gentil, sem aspereza nenhuma. Esta cerveja impressiona especialmente
pela forma como o amargor é, ao mesmo tempo, muito intenso e muito bem
equilibrado.
Sensação na boca:
o corpo é mediano para leve, fácil de beber, mas com agradável textura cremosa
que lhe dá riqueza e interesse sem tirar-lhe a drinkability. A sensação
alcoólica é diabolicamente ocultada: mal se sente o aquecimento dos seus 8% de
álcool. Tudo isso contribui para torna-la perigosamente fácil de beber.
Veja aqui a avaliação completa.
O mais impressionante da Pliny, the Elder é o quanto ela é,
ao mesmo tempo, intensa e leve, marcante e fácil de beber. Por ser uma cerveja
de estilo “imperial”, extrema, com considerável teor alcoólico, a gente já vai
esperando uma porrada nos nossos sentidos. Ao contrário disso, ela se mostra
elegante, sóbria, gentil e extremamente redonda. Uma lady. Não é à toa que se
tornou um clássico dentro do seu estilo.
Um dado interessante salta à vista quando comparamos cada
uma das cervejas da mesma cervejaria. Tecnicamente, a intensidade de amargor
das IPAs imperiais é maior do que a das IPAs americanas (65-100 contra 50-70 IBUs,
ou unidades de amargor, segundo o guia da Brewers Association). Ou seja, do
ponto de vista estritamente quantitativo, a Vixnu e a Pliny, the Elder são
cervejas mais amargas do que a Indica e a Blind Pig, respectivamente. Contudo,
isso não se confirma no paladar. Na nossa percepção, a Indica mostra uma
sensação de amargor maior do que a Vixnu, e a Blind Pig também provoca uma
sensação de amargor muito mais acentuada que a Pliny, the Elder. Isso porque,
se as IPAs imperiais têm mais amargor, também têm muito mais doçura residual do
malte e sensação adocicada do álcool para equilibrar o amargor na nossa
percepção. As IPAs americanas, as “caçulas”, podem até ter menos IBUs, mas
também são bem mais secas, aumentando a percepção organoléptica do amargor. Fica
a indicação: por mais contraintuitivo que possa parecer, se você está procurando
uma cerveja mais amarga, aposte nas IPAs (pelo menos no caso dessas duas
cervejarias).
Com a Pliny, the Elder, eu aprendi que uma cerveja pode ser
extremamente marcante sem ser cansativa, pesada ou impactante. Daí veio meu
espanto ao beber a Vixnu pela primeira vez: quando eu estava esperando a
leveza, a delicadeza e a elegância da Pliny, the Elder, a Colorado me recebeu
festiva e espalhafatosamente com uma sonora saudação e um abraço apertado e
caloroso. À moda brasileira, diga-se de passagem. Como se ela me dissesse: “por
que escolher entre o amargor e a doçura? por que não se deliciar com tudo ao
mesmo tempo?”
Esse abraço caloroso do ursinho de quatro braços ficou na
minha memória até março deste ano, quando finalmente tivemos acesso à versão
comercial da cerveja e eu decidi reavaliá-la à luz do que estava escrevendo
para esta matéria. Só aí que caiu minha ficha de verdade. A doçura indulgente e
melada da Vixnu não era um defeito: pelo contrário, ela era justamente sua
marca registrada, o seu parentesco de nascença com a Indica, o DNA da Colorado
no mundo das IPAs. E com que deleite desavergonhado me entreguei então ao
desfrute dessa doçura, sem culpa nenhuma! Se ampliarmos o gráfico da postagem
anterior para incluir a Vixnu e a Pliny, the Elder, essa semelhança torna-se
mais clara:
As cervejas da Colorado continuam ocupando os quadrantes
opostos às cervejas da Russian River no eixo austeridade-alegria. Enquanto a
Blind Pig mostra-se uma cerveja austera e de forte impacto, a Pliny, the Elder
demonstra mais leveza, mas ainda a mesma austeridade. A Vixnu, por sua vez,
repete o mesmo binômio “alegria-impacto” que caracteriza a Indica. Ou seja, a
Vixnu não faz senão extrapolar a vocação da Indica, mantendo-se perfeitamente
fiel à identidade da cervejaria. Se a Vixnu realmente fosse por um caminho de
secura e leveza (como normalmente vemos nos exemplares clássicos do estilo),
provavelmente não faria jus à inovação representada pela Indica no mundo das
IPAs americanas (como discutimos na parte anterior desta matéria).
Já não estaríamos extrapolando o tema desta matéria, que são
os guias de estilo? Na verdade, não. O que as duas cervejas da Colorado nos
ensinam é que, se ficarmos excessivamente presos às definições mais ortodoxas
dos guias de estilo, podemos deixar de apreciar propostas inovadoras. Ficaremos
fossilizados e petrificados. Guias de estilo precisam ser dinâmicos e adequados
aos diferentes contextos em que serão usados. Para alguns casos, a
flexibilidade da Brewers Association se mostra mais adequada, mas não supera a
precisão do BJCP, crucial em outras situações. Ambos são instrumentos
fundamentais, mas são como aquelas ferramentas que você precisa aprender a usar
com maestria para, num segundo momento, também saber esquecer delas quando
apropriado. Ou você quer perder o calor da uma apertada saudação de quatro
braços do simpático deus-ursinho da Colorado?
Maravilhoso e brilhante o post! Fico com água na boca de inveja de você provando essas Imperial IPAs que não encontro em BH de forma alguma. Mudando um pouco de assunto, essa semana provei a Wals Witte, a nova witt na mineira Wals, e digo que vale a experiência! Abraços e parabéns!
ResponderExcluirOlá, Leo, tudo bem? Não sabia que a Vixnu ainda não está chegando em BH. É uma pena. Deve ser por conta da cadeia refrigerada de distribuição. Talvez ainda não haja tudo acertadinho para garantir que ela chegue a Minas da forma como deve, mantendo-se resfriada ao longo de todo o processo. Quanto à Pliny, the Elder, realmente ela não é importada para o Brasil, e mesmo nos EUA nem sempre é fácil encontrá-la para venda. Mas certamente vale a pena o esforço de procurá-la (fresca, entenda-se) caso você viaje para lá.
ExcluirA Wäls Witte eu tive o imenso prazer de degustar acompanhado pelo Zé Felipe, que me explicou o que eles quiseram fazer com essa receita. Está realmente muito boa; tem a identidade do estilo, mas ao mesmo tempo um perfil de especiarias bem diferente e característico, e um frescor que não encontramos de jeito nenhum nas belgas que aportam aqui! Altamente recomendada!
Essas americanas eu já sabia que não aportavam aqui. O lance da Vixnu certamente é pela cadeia do frio, mas se a Green Cow chegou aqui refrigerada e ela é feita mais longe e por uma cervejaria menor, tá passando da hora da Vixnu chegar. Abração!
ResponderExcluirOlha, eu não sei como a coisa está aí em BH, mas, pelo menos aqui em Sampa, o preço das cervejas da Seasons está alto demais, mesmo considerando a cadeia fria. Eu acho mais interessante que eles consigam elaborar um sistema mais racional, mesmo que demore mais, do que ter um aumento de preço de 100% em relação ao estado de origem.
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