Os oponentes nos cantos do ringue!
Fonte:
acervo
pessoal |
A matéria desta quinzena será dedicada ao comparativo, que
tive a honra de fazer recentemente, entre duas lendárias cervejas belgas de
conotações monásticas: Trappist Westvleteren 12 e St. Bernardus Abt 12. O
surpreendente resultado da degustação me levou a uma pesquisa sobre os dois
rótulos, cujos resultados compartilho aqui com meus leitores.
Tudo o que se relaciona à Westvleteren 12, produzida pela abadia
trapista de São Sisto de Westvleteren, está envolto em uma aura de mistério.
Para quem não a conhece, trata-se da cerveja de distribuição comercial mais
restrita entre aquelas produzidas em monastérios da ordem trapista, e foi
eleita pelo site norte-americano RateBeer como a melhor cerveja do mundo (posto
que também ocupa no ranking brasileiro do Brejas). Em teoria, ela é vendida
apenas às portas do monastério, no interior da Bélgica, em quantidades
limitadas, e o comprador recebe um aviso de que não deve revendê-la. Isso não
significa, contudo, que não exista um verdadeiro mercado paralelo para esta que
é talvez a mais cobiçada cerveja do mundo. Sua alta qualidade, aliada à
dificuldade de obtê-la e à sua posição nos rankings internacionais, fez com que
a Westvleteren 12 se tornasse um mito cervejeiro de proporções muito maiores do
que os monges da abadia de São Sisto poderiam imaginar.
E há também a St. Bernardus Abt 12. Por questões
administrativas e legais vinculadas aos produtos trapistas, essa cerveja tem
uma íntima conexão histórica com a Westvleteren 12. Em 1946, a fim de impedir
que a produção da cerveja interferisse no cotidiano monástico, a abadia de São
Sisto fez um acordo com a cervejaria St. Bernard para que esta produzisse e
comercializasse os rótulos da Westvleteren sob licença. Quando a Igreja
católica decidiu impor um maior rigor às regras para a produção de produtos
trapistas e exigiu que eles fossem produzidos no interior dos respectivos
monastérios, a abadia de São Sisto modernizou suas instalações produtivas e
retomou a produção em 1989. Desde então, a cervejaria St. Bernard deixou de
poder usar a marca Westvleteren, mas manteve em seu portfolio parte das
receitas originais da linha. A antiga Westvleteren 12 passou, então, a ser
comercializada sob o nome de St. Bernardus Abt 12.
A comparação
Quer dizer que a St. Bernardus Abt 12, de ampla distribuição
internacional, e que pode ser encontrada até em supermercados brasileiros por
preços dentro da média das cervejas belgas, é exatamente igual à arquicobiçada
Westvleteren 12, cujas garrafas, nas ocasiões em que aparecem no mercado
paralelo brasileiro, são disputadas a tapa a preços que frequentemente
ultrapassam os R$ 200? Foi justamente essa dúvida que me levou a este
comparativo. Levando em conta o histórico das cervejarias, eu tinha a intuição
de que as duas cervejas seriam, pelo menos, extremamente parecidas, de modo que
apenas a aura de raridade da trapista explicaria a diferente percepção dos
consumidores a respeito de ambas. Vejamos o que encontrei na degustação.
Fonte: bradfest.org |
Estilo: Belgian
dark strong ale
Teor alcoólico:
10.2%
Aparência: coloração
mogno avermelhada, de boa transparência e ótima espuma, volumosa e bem
persistente, formando “rendas” na lateral do copo
Aromas: uma
excelente complexidade de frutas e especiarias advindas do fermento, com um
interessante perfil de maturidade como complemento. A doçura do malte e do
açúcar queimado se traduzem em uma sensação caramelada, ao lado de ésteres
frutados que remetem a maçãs vermelhas, uvas passas, vinho tinto e mamão
papaya. As especiarias trazem aromas claros de pimenta-do-reino e toques
discretos de cravo, alcaçuz e sementes de coentro, além de uma sensação de
acetona que não destoa do conjunto. Sentem-se ainda notas florais e um herbal
lupulado característico ao final. Finalmente, toques licorosos lembrando mel
lhe conferem um aroma maduro.
Paladar: na boca,
se você espera a gentil doçura de alguns exemplares do estilo, vai se
surpreender com um amargor rústico e assertivo, que rapidamente sobrepuja o
doce inicial e se prolonga num final longo, seco e picante. Sóbrio e austero,
como os monges de São Sisto.
Sensação na boca:
a secura destacada para o estilo a deixa com um corpo apenas mediano, mas com
sensação licorosa e um aquecimento alcoólico e picante bem-vindo ao final do
gole. Afinal, você não esperava muita gentileza da cerveja mais robusta da
abadia, não é mesmo?
Clique aqui para ver a avaliação completa.
A Trappist Westvleteren 12 é uma interpretação tipicamente trapista
do estilo que as abadias católicas consagraram: você sente aquela doçura
caramelada que é característica do estilo, mas logo se nota que quem predomina
é o amargor seco e austero da lupulagem assertiva. Frutas e especiarias estão
lá com uma excelente complexidade, ao lado de sensações licorosas e maduras.
Tudo muito bem integrado. Ela não chega a ser totalmente surpreendente; antes,
é precisamente tudo o que você espera de uma ótima dark strong ale belga. Mas é
claro que o posto de “melhor cerveja do mundo” reflete muito mais a sua
história, sua tradição e a dificuldade em obtê-la do que, efetivamente, o
conteúdo da garrafa.
Fonte: www.tumblr.com |
Estilo: Belgian dark strong ale
Teor alcoólico:
10%
Aparência:
praticamente idêntica à Westvleteren, com cor mogno avermelhada, boa
transparência e excelente creme volumoso e persistente que forma rendas no
copo.
Aromas: aqui as
diferenças em relação à trapista evidenciaram-se claramente. O malte ganha
muito mais destaque e mostra um sabor mais macio e assertivo: além daquela
doçura de caramelo característica do estilo, nota-se muito claramente algo de
panificação (lembrando pão-de-ló) e uma indulgente sensação de bala toffee. O
frutado mostra-se menos complexo e vigoroso, com o aroma de vinho tinto que encontramos
na Westvleteren, mas também com notas de banana que não identifiquei na
trapista. As especiarias (pimenta-do-reino e alcaçuz) também estão aqui, mas de
forma menos intensa e menos complexa. A licorosidade de mel da trapista se
repete, e o floral é complementado por um herbal lupulado menos rústico,
lembrando mentol. Em resumo: mais malte e menos frutas e especiarias que na
Westvleteren.
Paladar: aqui as
diferenças são gritantes e se impõem claramente. Enquanto a trapista trazia
aquela secura amarga e sóbria, a St. Bernardus Abt 12 apresentou indulgente e
envolvente doçura inicial, que apenas depois de engolir deu lugar a um amargor
mais discreto, revelando no entanto a mesma picância num final de
extraordinária longevidade e vivacidade.
Sensação na boca:
a doçura mais acentuada traduz-se claramente em um corpo mais intenso e uma
textura mais cremosa, além de um aquecimento alcoólico mais suave e
equilibrado. A carbonatação também é menos evidente na boca.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
A St. Bernardus Abt 12 é uma ótima interpretação do estilo
na linha das cervejarias comerciais “laicas”: macia, envolvente e indulgente,
com um gostoso perfil de maltes e uma sensação de toffee. A cervejaria afirma
usar maltes escuros na receita, o que explica essa característica (que não
encontrei na Westvleteren). As sensações frutadas e de especiarias estão lá,
como manda o estilo, mas assumem segundo plano, perdendo em vivacidade e em
complexidade.
O gráfico abaixo sumariza as principais diferenças encontradas na degustação:
O gráfico abaixo sumariza as principais diferenças encontradas na degustação:
Afinal de contas, é
ou não é a mesma cerveja?
Definitivamente, não é a mesma cerveja. Essa foi a
estarrecedora conclusão a que a degustação horizontal me levou, o que me fez
buscar mais informações sobre as cervejarias para solucionar o mistério. Durante
essa pesquisa (na qual Stan Hieronymus, autor de Brew Like a Monk, foi uma fonte preciosa de informação), descobri
alguns fatos interessantes e esclarecedores.
A abadia de São Sisto mantém um intercâmbio técnico muito
próximo com outra abadia trapista belga, a de Westmalle. Durante o período em
que a St. Bernard produziu a Westvleteren sob licença, São Sisto continuou
produzindo cerveja para consumo dos monges e visitantes, e introduziu mudanças
importantes no processo produtivo. Em primeiro lugar, mudou sua cepa de
leveduras, adotando a mesma usada na abadia de Westmalle. Até hoje, a levedura
da Westvleteren é fornecida pela Westmalle. Isso significa que a levedura
empregada pela St. Bernard pode ser a levedura original da Westvleteren, mas não
é a mesma que o mosteiro usa atualmente. Ademais, St. Bernard emprega uma
segunda cepa, diferente da primeira, na refermentação na garrafa.
O irmão Jos operando a nova tina de
brassagem da abadia de São Sisto.
Fonte:
Brew
Like a Monk (Stan Hieronymus) |
Em segundo lugar, as receitas podem ter sofrido uma série de
mudanças desde 1946, quando a St. Bernard começou a produzir as cervejas da
Westvleteren. A St. Bernard afirma usar maltes escuros “para dar estabilidade”,
enquanto os monges trapistas declaram usar apenas maltes pilsen e pale (o caramelo,
presumivelmente, é responsável pela coloração escura). Ademais, a linha St.
Bernardus é pasteurizada antes de ser exportada para muitos países (entre os
quais, suponho, o Brasil), o que interfere na maturação na garrafa. Do lado dos
trapistas, todo o equipamento produtivo da abadia de São Sisto foi renovado sob
supervisão dos técnicos de Westmalle (antes, o monastério usava fermentadores
de madeira, e hoje emprega tanques de inox), o que possivelmente acarretou
mudanças no processo e na receita. Stan Hieronymus cita pelo menos mais uma
diferença crucial aferida por medições técnicas: enquanto a St. Bernardus Abt
12 possui 22 unidades de amargor (IBU), a Trappist Westvlereten 12 ostenta
potentes 38 IBUs, o que explica sua poderosa sensação de amargor. Sabendo-se
que o estilo tradicionalmente admite entre 20 e 35 IBUs segundo o BJCP (e entre
20 e 50 IBUs segundo o mais modernizado guia da Brewers Association), isso
atesta de forma eloquente as diferenças entre as duas.
O veredito inevitável a que fui impelido por meus sentidos e
minhas leituras é o de que as duas não são, definitivamente, a mesma cerveja. É
verdade que diferenças na safra, na refermentação na garrafa ou no tempo
transcorrido entre o envase e o consumo poderiam produzir pequenas alterações
no aroma, sabor e sensação. Mas acho que estamos diante de algo que vai além
disso, envolvendo diferenças nas cepas de levedura (que são a alma das cervejas
belgas), nos maltes e nos índices de amargor. Isso inclusive ajudaria a
explicar as diferentes percepções da cerveja pelo público norte-americano, que
entronizou a Trappist Westvleteren 12 como melhor cerveja do mundo. Entre todas
as dark strong ales trapistas, a Westvleteren exibe o maior índice de amargor
(seguida de perto pelos 35 IBUs da Chimay Azul), o que bate em cheio com o
gosto pelas cervejas amargas do público norte-americano.
Duas perguntas não querem calar: a Westvleteren é mesmo a
melhor cerveja do mundo? Entre a St. Bernardus e a Westleteren, qual é melhor?
Quanto à primeira pergunta, acho que minha posição já deve ter ficado clara ao
longo deste artigo. Quanto à segunda, digamos apenas que “melhor” ou “pior” não
dependem inteiramente de uma avaliação objetiva, esbarrando sempre em critérios
e preferências que são, pelo menos em parte, pessoais. Eu gosto mais da
complexidade aromática da Westvleteren, mas não posso negar que o perfil
maltado da St. Bernardus é mais sedutor, para quem prefere esse aspecto. Aí vai
de cada um: quando tiver a oportunidade de por suas mãos em uma das cobiçadas
garrafinhas sem rótulo da trapista, não deixe de bebê-la tendo ao lado um copo
da sempre companheira St. Bernardus e tire suas próprias conclusões!
Alexandre
ResponderExcluirGostaria de saber se você tem o conhecimento de quanto a ORVAL possui de IBU?
Olá, Danilo,
ExcluirA Orval tem os mesmos 38 IBUs da Westvleteren 12, mas tem uma água com teor mais alto de bicarbonato, o que acentua a sensação de amargor. Você consegue essas e outras informações sobre as trapistas no livro do Stan Hieronymus, Brew Like a Monk.
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
Pode baixar este livro em PDF aqui:
Excluirhttp://beersfan.ru/upload/userfiles/7/brew-like-a-monk-trappist-abbey-and-strong-belgian-1.pdf
Abs
Excelente texto!
ResponderExcluirMuito bom mesmo.
Valeu Alexandre...
Muito bom e informativo o texto Marcussi.
ResponderExcluirUma coisa me chama atenção, além da pasteurização da St Bernardus e das diferenças nas receitas. O transporte e armazenagem delas até chegar em suas mãos. Com certeza a Westy12 veio embaladinha em plástico bolha e de avião, ja a Abt12 se é que veio refrigerada duvido que tenha tido essa regalia entre o porto e nossos revendedores. Eu tenho sérias restrições a logística das cervejas por aqui. As Rochefort 10 são um exemplo que gosto de usar pois sei como ela é maravilhosa e como ela chega até mim aqui no Brasil. São brejas distintas...l
Minha Westy veio na minha bagagem pessoal mesmo, embalada numa meia! :-D As belgas importadas ao Brasil vêm em contâiner comum (não-refrigerado), mas abaixo da linha da água, o que minimiza a variação de temperatura. Se elas vêm pelo porto de Santos, têm proteção contra sol e calor no porto; se vêm pelo ES, não.
ExcluirUma coisa que matava as belgas fortes até uns 2 ou 3 anos atrás é que elas tinham rotatividade muito baixa. Essas cervejas têm prazos longos de validade, entre 3 e 5 anos, e ficavam tempo demais em estoque. Lembro que antigamente eu sempre tomava Chimay e Rochefort com sinais nítidos de envelhecimento; mas hoje já consigo achar garrafas bem mais frescas, pelo menos aqui em Sampa. A St. Bernardus que eu tomei nessa degustação estava relativamente fresca; tinha um ano de garrafa e não evidenciou sinais nítidos de oxidação.
Muito bom seu post! No início do ano estive em Barcelona em um bar especializado em cervejas belgas. O dono dese bar (belga, é claro) me contou essa história que você descreveu, e disse se tratava de cervejas muito semelhantes, mas com a mesma receita. Trouxe uma Westvleteren 12, agora é só experimentar. abs!
ResponderExcluirDe preferência, com uma St. Bernardus Abt 12 ao lado para dar o seu veredito! :-) Depois você me conta o que achou!
ExcluirAbraços,
Alexandre A. Marcussi
Quanto custa a Westvleteren 12 na Europa em média? Compensa comprar uma garrafa por R$ 180,00 aqui no Brasil?
ResponderExcluirPaula, a Westvleteren 12, na porta do mosteiro (aonde não é nada fácil chegar), custa em torno de 2 euros. Nas lojas e bares belgas, onde você a encontra com alguma facilidade, atinge uma média de 10-12 euros.
ExcluirEu nunca comprei e não compraria uma garrafa com os atravessadores brasileiros, que costumam cobrar entre R$ 100 e R$ 200. A não ser que você realmente esteja na fissura para prová-la. Se não, vale a pena esperar uma oportunidade de ir à Europa e comprar por lá (pode até ser nas lojas virtuais).
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
Obrigada!
ExcluirMuito bom artigo, parabéns!!!!!
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