segunda-feira, 1 de abril de 2013

Trappist Westvleteren 12 x St. Bernardus Abt 12: Comparativo de um mito belga

Os oponentes nos cantos do ringue!
Fonte: acervo pessoal

A matéria desta quinzena será dedicada ao comparativo, que tive a honra de fazer recentemente, entre duas lendárias cervejas belgas de conotações monásticas: Trappist Westvleteren 12 e St. Bernardus Abt 12. O surpreendente resultado da degustação me levou a uma pesquisa sobre os dois rótulos, cujos resultados compartilho aqui com meus leitores.

Tudo o que se relaciona à Westvleteren 12, produzida pela abadia trapista de São Sisto de Westvleteren, está envolto em uma aura de mistério. Para quem não a conhece, trata-se da cerveja de distribuição comercial mais restrita entre aquelas produzidas em monastérios da ordem trapista, e foi eleita pelo site norte-americano RateBeer como a melhor cerveja do mundo (posto que também ocupa no ranking brasileiro do Brejas). Em teoria, ela é vendida apenas às portas do monastério, no interior da Bélgica, em quantidades limitadas, e o comprador recebe um aviso de que não deve revendê-la. Isso não significa, contudo, que não exista um verdadeiro mercado paralelo para esta que é talvez a mais cobiçada cerveja do mundo. Sua alta qualidade, aliada à dificuldade de obtê-la e à sua posição nos rankings internacionais, fez com que a Westvleteren 12 se tornasse um mito cervejeiro de proporções muito maiores do que os monges da abadia de São Sisto poderiam imaginar.

E há também a St. Bernardus Abt 12. Por questões administrativas e legais vinculadas aos produtos trapistas, essa cerveja tem uma íntima conexão histórica com a Westvleteren 12. Em 1946, a fim de impedir que a produção da cerveja interferisse no cotidiano monástico, a abadia de São Sisto fez um acordo com a cervejaria St. Bernard para que esta produzisse e comercializasse os rótulos da Westvleteren sob licença. Quando a Igreja católica decidiu impor um maior rigor às regras para a produção de produtos trapistas e exigiu que eles fossem produzidos no interior dos respectivos monastérios, a abadia de São Sisto modernizou suas instalações produtivas e retomou a produção em 1989. Desde então, a cervejaria St. Bernard deixou de poder usar a marca Westvleteren, mas manteve em seu portfolio parte das receitas originais da linha. A antiga Westvleteren 12 passou, então, a ser comercializada sob o nome de St. Bernardus Abt 12.

A comparação

Quer dizer que a St. Bernardus Abt 12, de ampla distribuição internacional, e que pode ser encontrada até em supermercados brasileiros por preços dentro da média das cervejas belgas, é exatamente igual à arquicobiçada Westvleteren 12, cujas garrafas, nas ocasiões em que aparecem no mercado paralelo brasileiro, são disputadas a tapa a preços que frequentemente ultrapassam os R$ 200? Foi justamente essa dúvida que me levou a este comparativo. Levando em conta o histórico das cervejarias, eu tinha a intuição de que as duas cervejas seriam, pelo menos, extremamente parecidas, de modo que apenas a aura de raridade da trapista explicaria a diferente percepção dos consumidores a respeito de ambas. Vejamos o que encontrei na degustação.


Fonte: bradfest.org
Estilo: Belgian dark strong ale
Teor alcoólico: 10.2%
Aparência: coloração mogno avermelhada, de boa transparência e ótima espuma, volumosa e bem persistente, formando “rendas” na lateral do copo
Aromas: uma excelente complexidade de frutas e especiarias advindas do fermento, com um interessante perfil de maturidade como complemento. A doçura do malte e do açúcar queimado se traduzem em uma sensação caramelada, ao lado de ésteres frutados que remetem a maçãs vermelhas, uvas passas, vinho tinto e mamão papaya. As especiarias trazem aromas claros de pimenta-do-reino e toques discretos de cravo, alcaçuz e sementes de coentro, além de uma sensação de acetona que não destoa do conjunto. Sentem-se ainda notas florais e um herbal lupulado característico ao final. Finalmente, toques licorosos lembrando mel lhe conferem um aroma maduro.
Paladar: na boca, se você espera a gentil doçura de alguns exemplares do estilo, vai se surpreender com um amargor rústico e assertivo, que rapidamente sobrepuja o doce inicial e se prolonga num final longo, seco e picante. Sóbrio e austero, como os monges de São Sisto.
Sensação na boca: a secura destacada para o estilo a deixa com um corpo apenas mediano, mas com sensação licorosa e um aquecimento alcoólico e picante bem-vindo ao final do gole. Afinal, você não esperava muita gentileza da cerveja mais robusta da abadia, não é mesmo?

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Trappist Westvleteren 12 é uma interpretação tipicamente trapista do estilo que as abadias católicas consagraram: você sente aquela doçura caramelada que é característica do estilo, mas logo se nota que quem predomina é o amargor seco e austero da lupulagem assertiva. Frutas e especiarias estão lá com uma excelente complexidade, ao lado de sensações licorosas e maduras. Tudo muito bem integrado. Ela não chega a ser totalmente surpreendente; antes, é precisamente tudo o que você espera de uma ótima dark strong ale belga. Mas é claro que o posto de “melhor cerveja do mundo” reflete muito mais a sua história, sua tradição e a dificuldade em obtê-la do que, efetivamente, o conteúdo da garrafa.


Fonte: www.tumblr.com
Estilo: Belgian dark strong ale
Teor alcoólico: 10%
Aparência: praticamente idêntica à Westvleteren, com cor mogno avermelhada, boa transparência e excelente creme volumoso e persistente que forma rendas no copo.
Aromas: aqui as diferenças em relação à trapista evidenciaram-se claramente. O malte ganha muito mais destaque e mostra um sabor mais macio e assertivo: além daquela doçura de caramelo característica do estilo, nota-se muito claramente algo de panificação (lembrando pão-de-ló) e uma indulgente sensação de bala toffee. O frutado mostra-se menos complexo e vigoroso, com o aroma de vinho tinto que encontramos na Westvleteren, mas também com notas de banana que não identifiquei na trapista. As especiarias (pimenta-do-reino e alcaçuz) também estão aqui, mas de forma menos intensa e menos complexa. A licorosidade de mel da trapista se repete, e o floral é complementado por um herbal lupulado menos rústico, lembrando mentol. Em resumo: mais malte e menos frutas e especiarias que na Westvleteren.
Paladar: aqui as diferenças são gritantes e se impõem claramente. Enquanto a trapista trazia aquela secura amarga e sóbria, a St. Bernardus Abt 12 apresentou indulgente e envolvente doçura inicial, que apenas depois de engolir deu lugar a um amargor mais discreto, revelando no entanto a mesma picância num final de extraordinária longevidade e vivacidade.
Sensação na boca: a doçura mais acentuada traduz-se claramente em um corpo mais intenso e uma textura mais cremosa, além de um aquecimento alcoólico mais suave e equilibrado. A carbonatação também é menos evidente na boca.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A St. Bernardus Abt 12 é uma ótima interpretação do estilo na linha das cervejarias comerciais “laicas”: macia, envolvente e indulgente, com um gostoso perfil de maltes e uma sensação de toffee. A cervejaria afirma usar maltes escuros na receita, o que explica essa característica (que não encontrei na Westvleteren). As sensações frutadas e de especiarias estão lá, como manda o estilo, mas assumem segundo plano, perdendo em vivacidade e em complexidade.

O gráfico abaixo sumariza as principais diferenças encontradas na degustação:


Afinal de contas, é ou não é a mesma cerveja?

Definitivamente, não é a mesma cerveja. Essa foi a estarrecedora conclusão a que a degustação horizontal me levou, o que me fez buscar mais informações sobre as cervejarias para solucionar o mistério. Durante essa pesquisa (na qual Stan Hieronymus, autor de Brew Like a Monk, foi uma fonte preciosa de informação), descobri alguns fatos interessantes e esclarecedores.

A abadia de São Sisto mantém um intercâmbio técnico muito próximo com outra abadia trapista belga, a de Westmalle. Durante o período em que a St. Bernard produziu a Westvleteren sob licença, São Sisto continuou produzindo cerveja para consumo dos monges e visitantes, e introduziu mudanças importantes no processo produtivo. Em primeiro lugar, mudou sua cepa de leveduras, adotando a mesma usada na abadia de Westmalle. Até hoje, a levedura da Westvleteren é fornecida pela Westmalle. Isso significa que a levedura empregada pela St. Bernard pode ser a levedura original da Westvleteren, mas não é a mesma que o mosteiro usa atualmente. Ademais, St. Bernard emprega uma segunda cepa, diferente da primeira, na refermentação na garrafa.

O irmão Jos operando a nova tina de 
brassagem da abadia de São Sisto.
Fonte: Brew Like a Monk (Stan Hieronymus)
Em segundo lugar, as receitas podem ter sofrido uma série de mudanças desde 1946, quando a St. Bernard começou a produzir as cervejas da Westvleteren. A St. Bernard afirma usar maltes escuros “para dar estabilidade”, enquanto os monges trapistas declaram usar apenas maltes pilsen e pale (o caramelo, presumivelmente, é responsável pela coloração escura). Ademais, a linha St. Bernardus é pasteurizada antes de ser exportada para muitos países (entre os quais, suponho, o Brasil), o que interfere na maturação na garrafa. Do lado dos trapistas, todo o equipamento produtivo da abadia de São Sisto foi renovado sob supervisão dos técnicos de Westmalle (antes, o monastério usava fermentadores de madeira, e hoje emprega tanques de inox), o que possivelmente acarretou mudanças no processo e na receita. Stan Hieronymus cita pelo menos mais uma diferença crucial aferida por medições técnicas: enquanto a St. Bernardus Abt 12 possui 22 unidades de amargor (IBU), a Trappist Westvlereten 12 ostenta potentes 38 IBUs, o que explica sua poderosa sensação de amargor. Sabendo-se que o estilo tradicionalmente admite entre 20 e 35 IBUs segundo o BJCP (e entre 20 e 50 IBUs segundo o mais modernizado guia da Brewers Association), isso atesta de forma eloquente as diferenças entre as duas.

O veredito inevitável a que fui impelido por meus sentidos e minhas leituras é o de que as duas não são, definitivamente, a mesma cerveja. É verdade que diferenças na safra, na refermentação na garrafa ou no tempo transcorrido entre o envase e o consumo poderiam produzir pequenas alterações no aroma, sabor e sensação. Mas acho que estamos diante de algo que vai além disso, envolvendo diferenças nas cepas de levedura (que são a alma das cervejas belgas), nos maltes e nos índices de amargor. Isso inclusive ajudaria a explicar as diferentes percepções da cerveja pelo público norte-americano, que entronizou a Trappist Westvleteren 12 como melhor cerveja do mundo. Entre todas as dark strong ales trapistas, a Westvleteren exibe o maior índice de amargor (seguida de perto pelos 35 IBUs da Chimay Azul), o que bate em cheio com o gosto pelas cervejas amargas do público norte-americano.

Duas perguntas não querem calar: a Westvleteren é mesmo a melhor cerveja do mundo? Entre a St. Bernardus e a Westleteren, qual é melhor? Quanto à primeira pergunta, acho que minha posição já deve ter ficado clara ao longo deste artigo. Quanto à segunda, digamos apenas que “melhor” ou “pior” não dependem inteiramente de uma avaliação objetiva, esbarrando sempre em critérios e preferências que são, pelo menos em parte, pessoais. Eu gosto mais da complexidade aromática da Westvleteren, mas não posso negar que o perfil maltado da St. Bernardus é mais sedutor, para quem prefere esse aspecto. Aí vai de cada um: quando tiver a oportunidade de por suas mãos em uma das cobiçadas garrafinhas sem rótulo da trapista, não deixe de bebê-la tendo ao lado um copo da sempre companheira St. Bernardus e tire suas próprias conclusões!

12 comentários:

  1. Alexandre

    Gostaria de saber se você tem o conhecimento de quanto a ORVAL possui de IBU?


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    1. Olá, Danilo,
      A Orval tem os mesmos 38 IBUs da Westvleteren 12, mas tem uma água com teor mais alto de bicarbonato, o que acentua a sensação de amargor. Você consegue essas e outras informações sobre as trapistas no livro do Stan Hieronymus, Brew Like a Monk.
      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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    2. Pode baixar este livro em PDF aqui:
      http://beersfan.ru/upload/userfiles/7/brew-like-a-monk-trappist-abbey-and-strong-belgian-1.pdf
      Abs

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  2. Excelente texto!
    Muito bom mesmo.
    Valeu Alexandre...

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  3. Muito bom e informativo o texto Marcussi.
    Uma coisa me chama atenção, além da pasteurização da St Bernardus e das diferenças nas receitas. O transporte e armazenagem delas até chegar em suas mãos. Com certeza a Westy12 veio embaladinha em plástico bolha e de avião, ja a Abt12 se é que veio refrigerada duvido que tenha tido essa regalia entre o porto e nossos revendedores. Eu tenho sérias restrições a logística das cervejas por aqui. As Rochefort 10 são um exemplo que gosto de usar pois sei como ela é maravilhosa e como ela chega até mim aqui no Brasil. São brejas distintas...l

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    1. Minha Westy veio na minha bagagem pessoal mesmo, embalada numa meia! :-D As belgas importadas ao Brasil vêm em contâiner comum (não-refrigerado), mas abaixo da linha da água, o que minimiza a variação de temperatura. Se elas vêm pelo porto de Santos, têm proteção contra sol e calor no porto; se vêm pelo ES, não.

      Uma coisa que matava as belgas fortes até uns 2 ou 3 anos atrás é que elas tinham rotatividade muito baixa. Essas cervejas têm prazos longos de validade, entre 3 e 5 anos, e ficavam tempo demais em estoque. Lembro que antigamente eu sempre tomava Chimay e Rochefort com sinais nítidos de envelhecimento; mas hoje já consigo achar garrafas bem mais frescas, pelo menos aqui em Sampa. A St. Bernardus que eu tomei nessa degustação estava relativamente fresca; tinha um ano de garrafa e não evidenciou sinais nítidos de oxidação.

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  4. Muito bom seu post! No início do ano estive em Barcelona em um bar especializado em cervejas belgas. O dono dese bar (belga, é claro) me contou essa história que você descreveu, e disse se tratava de cervejas muito semelhantes, mas com a mesma receita. Trouxe uma Westvleteren 12, agora é só experimentar. abs!

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    1. De preferência, com uma St. Bernardus Abt 12 ao lado para dar o seu veredito! :-) Depois você me conta o que achou!

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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  5. Quanto custa a Westvleteren 12 na Europa em média? Compensa comprar uma garrafa por R$ 180,00 aqui no Brasil?

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    1. Paula, a Westvleteren 12, na porta do mosteiro (aonde não é nada fácil chegar), custa em torno de 2 euros. Nas lojas e bares belgas, onde você a encontra com alguma facilidade, atinge uma média de 10-12 euros.

      Eu nunca comprei e não compraria uma garrafa com os atravessadores brasileiros, que costumam cobrar entre R$ 100 e R$ 200. A não ser que você realmente esteja na fissura para prová-la. Se não, vale a pena esperar uma oportunidade de ir à Europa e comprar por lá (pode até ser nas lojas virtuais).

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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