Na parte anterior desta matéria, vimos que o mosto de uma
lambic é cuidadosamente preparado a partir de uma mistura de malte de cevada e
trigo não-malteado, e que recebe generosas doses de lúpulos envelhecidos e
oxidados. Depois de um complicado processo de brassagem, obtém-se um líquido de
aspecto leitoso, com uma variada composição de carboidratos, que irão nutrir as
diversas gerações de microorganismos responsáveis pela fermentação da cerveja.
Vejamos agora quais os métodos empregados pelos produtores para garantir o bom
andamento dessa fermentação.
A “inoculação
espontânea”
Assim que o mosto é preparado e termina de ferver, ele
precisa ser resfriado antes que a fermentação de qualquer cerveja se inicie; em
caso contrário, os microorganismos que deveriam realizar a fermentação iriam
morrer! Cervejarias convencionais empregam para isso equipamentos que realizam uma
troca de calor entre o mosto e a água fria, agilizando o processo e evitando o
contato com o ar e a contaminação do líquido. No caso das lambics, porém, é
essencial que o resfriamento ocorra “ao natural”, deixando o mosto em contato
com o ar para que ele receba os microorganismos responsáveis pela fermentação,
já que não será inoculado deliberadamente pelo cervejeiro.
O fotógrafo Andrew Verschetze flagrou o momento
exato em que
o mosto fumegante começa a ser bombeado para o
enorme koelschip
da cervejaria Timmermans.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef
Van den Steen) |
Para isso, o mosto é bombeado para o koelschip (ou “coolship”, como costuma ser chamado em inglês), um
recipiente muito largo e raso à semelhança de uma piscina de pequena
profundidade. O nome koelschip
significa algo como “barco de resfriamento” e provavelmente é uma referência a
técnicas medievais de produção cervejeira, nas quais o mosto era resfriado em
grandes toras ocas de madeira, semelhantes a canoas. Esse tipo de equipamento
já foi usado para a produção de quaisquer cervejas antes do século XIX, mas
hoje sobrevive apenas entre os produtores de alguns estilos de cervejas
selvagens, sendo essencial apenas na fabricação de lambics. Uma vez
transportado ao koelschip, o mosto
fica resfriando naturalmente durante várias horas ao longo da noite, até
atingir uma temperatura ideal de cerca de 20º C.
Tradicionalmente, as lambics são produzidas apenas durante
as estações frias do ano, para aproveitar as baixas temperaturas da noite e
agilizar o resfriamento do mosto, minimizando a atuação de bactérias
indesejadas. O koelschip normalmente
se localiza na parte mais alta do edifício, perto do teto, e diversas janelas e
aberturas permitem a entrada abundante do ar noturno. O vapor do líquido quente
se condensa no teto e goteja de volta, carregando hordas de microorganismos.
Durante esse longo resfriamento, as bactérias e leveduras residentes no
edifício e trazidas pelo ar externo irão se depositar e se instalar no mosto,
inoculando-o. O recinto onde se localiza o koelschip
é normalmente tido como “sagrado” devido ao delicado equilíbrio da microflora
local, que não deve ser perturbado nunca. Quando a Cantillon reformou o teto do
edifício, acima do koelschip, tive o
cuidado de não mexer nas vigas de madeira onde colônias de leveduras estão
instaladas.
Diante disso tudo, não é difícil perceber que chamar a
inoculação de uma lambic de “espontânea” é, de certa forma, uma simplificação.
É verdade que o fermento e as bactérias não são adicionados deliberadamente
pelo produtor, mas ele prepara cuidadosamente todas as condições para que a
magia aconteça. Na manhã seguinte, normalmente o mosto já se encontra na
temperatura ideal e é drenado para um tanque a partir do qual é feito o
embarrilamento de toda a produção.
Os barris
Quando pensamos em cervejas com maturação em barris, as
famigeradas e prestigiadas “barrel-aged beers”, quase sempre nos vêm à mente
estilos como old ales ou stouts imperiais. Pouca gente pensa imediatamente em
lambics; contudo, o envelhecimento em barris é uma parte fundamental do
processo. Segundo Frank Boon, proprietário da cervejaria Boon, uma lambic
normalmente recebe uma boa quantidade de bactérias e leveduras do gênero Saccharomyces pelo ar, mas depende em
grande medida dos barris para receber as Brettanomyces
necessárias. Isso porque essas leveduras se instalam profundamente em materiais
porosos como a madeira, resistindo a todos os processos de higienização pelos
quais os barris são submetidos, e de lá passam ao líquido em fermentação dentro
dos barris. Não há lambic tradicional sem madeira.
Gert Christiaens brinda com sua gueze ao lado
de
seus imponentes tonéis de carvalho
na Oud Beersel.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef
Van den Steen) |
Um barril novo pode demorar até atingir as condições
adequadas e o equilíbrio microbiológico perfeito para a fermentação das
lambics. Os produtores quase sempre preferem empregar barris já usados para
maturar outras bebidas (como vinho, uísque, conhaque etc.), não só por eles
serem mais baratos, mas também porque a madeira nova imprime sabores muito
intensos à cerveja, que devem ser evitados nas lambics tradicionais. Contudo,
um barril tem uma certa vida útil: depois de ser usado muitas vezes, ele pode
começar a adquirir uma acidez acética excessiva, impossível de ser
completamente neutralizada, e pode ter de ser substituído para que se obtenha
um produto mais harmônico e equilibrado. Por isso, as cervejarias produtoras de
lambics estão constantemente repondo seus enormes estoques de barris, o que
obviamente acarreta altos custos.
Além da ocorrência das Brettanomyces
na madeira, os barris ainda oferecem uma segunda vantagem importante para a
produção de lambics: sua porosidade. Barris propiciam uma micro-oxigenação do
mosto em seu interior, permitindo a entrada de pequenas quantidades de
oxigênio. O oxigênio normalmente é tido como inimigo da produção de cervejas,
mas é essencial para a produção de lambics. Isso porque estamos falando de um
processo de fermentação que se estende por até dois anos – durante esse tempo
todo, as leveduras aeróbicas precisam de uma fonte de oxigênio para continuarem
ativas. Isso vale especialmente para as Brettanomyces,
que são leveduras oxidativas e precisam de oxigênio para seu metabolismo.
Contudo, oxigênio em excesso propicia o crescimento de bactérias acéticas que
podem arruinar uma boa lambic. A madeira fornece o grau ideal de proteção, não deixando
entrar oxigênio demais, nem de menos.
O tamanho do barril também é uma preocupação importante para
os produtores. Quanto menor o barril, maior a área de contato entre o líquido e
a madeira. Isso acelera a fermentação, mas também aumenta a oxigenação e pode
trazer o risco de acetificação excessiva do mosto. Por isso, alguns produtores
preferem os foudres ou foeders, imensos tonéis de madeira com
vários metros de altura e/ou largura e uma espantosa capacidade de até 20 mil
litros. Alguns tonéis chegam a precisar de várias brassagens para serem completamente
preenchidos! Tonéis desse porte podem trazer algumas desvantagens e riscos: a
fermentação demora mais para ser finalizada e, se algo sair do controle no
processo, o produtor corre o risco de perder uma quantidade fabulosa de
cerveja! O tamanho mais frequentemente empregado pelos produtores de lambics é
o dos barris de vinho, com capacidade para 300 litros.
A própria espuma da fermentação,
ao secar, tratou
de vedar
o respiro do barril.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef
Van den Steen) |
Assim que o mosto devidamente resfriado e naturalmente
inoculado é transferido para os barris, ainda demoram alguns dias para
iniciar-se a fermentação. Ao longo desse primeiro período, o orifício de respiro
do barril, na parte superior, é deixado aberto. Se tudo correr bem, em mais ou
menos uma semana inicia-se a fermentação alcoólica, mas esse tempo pode variar:
a Cantillon já reportou casos de barris que demoraram seis meses para começarem
a fermentar! A fermentação alcoólica produz grandes quantidades de espuma
devido à concentração das Saccharomyces
no topo do líquido. Essa espuma normalmente extravasa para fora do respiro e,
quando seca, forma uma camada que veda naturalmente o barril. Alguns produtores,
porém, preferem tampar o respiro assim que percebem que uma diminuição na
intensidade da fermentação.
Como vimos, a fermentação de uma lambic dura até dois anos,
e sua maturação plena precisa de pelo menos três anos. Após permanecer o tempo
adequado nos barris, a lambic estará madura e pronta para ser consumida pura,
ser engarrafada ou receber a adição de frutas. Contudo, isso não significa que
o trabalho do produtor tenha acabado. Na verdade, uma das etapas mais
importantes de todo o processo vem só ao final: a prova e blendagem dos barris
para produzir a lambic perfeita. É exatamente o que analisaremos na próxima
parte desta matéria!
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