Sim, é verdade que esta série de matérias sobre as cervejas
selvagens pode estar parecendo um teste de paciência para os meus leitores.
Afinal de contas, quando vamos “provar” juntos as lambics de que estamos
falando há tanto tempo? Calma, chegaremos lá no momento adequado! Se você acha
que está esperando demais, pense em todo o tempo durante o qual o produtor de
uma lambic fica aguardando pacientemente até que ela fermente, mature e atinja
o ponto ideal – o que, como vimos, pode facilmente ultrapassar três anos! Nossa série durará (ligeiramente) menos que isso!
Mas, mesmo depois de todo esse tempo, o trabalho do produtor
não terminou. E é justamente no final que a intervenção dele se faz mais
necessária. Veremos, então, o que é preciso para finalizar uma boa lambic para
que ela chegue perfeita ao seu copo!
Provar e blendar
É nessa fase que entra, de forma determinante, a perícia do
produtor para garantir a boa qualidade do produto final. Cada barril fornece um
ambiente físico-químico diferente, e cada brassagem produzirá um mosto com
composição microbiológica distinta, de modo que as lambics de dois barris
diferentes irão evoluir de maneiras completamente divergentes. Algumas se
tornam intensamente ácidas, outras ganham aromas e sabores acentuados da
madeira, outras ainda exibem sinais de oxidação mais evidentes, enquanto em outras
as Brettanomyces imprimem aromas
frutados e animais mais intensos. Enquanto algumas desenvolvem mais “caráter”
(aromas e acidez elevados), outras parecem ficar mais neutras.
Prova de barris na
cervejaria Belle Bue.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen) |
É fundamental que o produtor prove constantemente o produto
de cada barril para determinar quando a cerveja está no ponto para ser usada.
Alguns barris se prestam melhor para serem blendados jovens, alguns são
propícios para receberem a adição de frutas, outros já exibem mais potencial
para envelhecerem bem durante três anos e contribuírem com uma gueuze de grande
complexidade. Ao final do processo, o produtor precisará decidir se vai servir
a lambic pura, sem blendar, ou se vai realizar uma mistura de vários barris
para produzir uma gueuze ou uma lambic de frutas. Nesse caso, quais barris serão
misturados a quais outros, e em que proporções? Essas decisões dependem do seu
faro e da sua experiência como blender.
Hoje em dia, apenas uma pequena porção das lambics
produzidas (aproxidamente 10%) é vendida sem blendar, de modo que a maioria irá
ser misturada. A blendagem, portanto, é uma parte crucial do processo de
produção das lambics. Ela não é exclusiva da produção de lambics, podendo ser
empregada para se produzir qualquer estilo cervejeiro com três principais
objetivos. Em primeiro lugar, blendar pode ajudar a atenuar ou disfarçar
defeitos e problemas de produção. No caso de uma lambic, um barril que tenha
ficado excessivamente acético pode resultar em um produto equilibrado se for
misturado a outros barris menos ácidos, por exemplo. Em segundo lugar, o blend
resultante combina características de vários barris, de modo que o produto
final se torna mais complexo e interessante do que cada um dos barris
separadamente. Se tivermos um barril extremamente frutado, outro bem
amadeirado, outro mais terroso, e por fim um fortemente animal, a mistura
resultante terá uma intrigante complexidade.
Por fim, a blendagem é empregada de forma a garantir a
consistência do produto final. A fermentação das lambics e a maturação em
madeira são procedimentos de resultados imprevisíveis. É possível detectar
variações perceptíveis em safras ou mesmo em lotes diferentes de uma mesma lambic.
Contudo, o produtor precisa obter alguma regularidade em sua cerveja, para que
seus consumidores não estranhem variações excessivas e possam reconhecer sempre
a “marca” de cada produtor. Isso requer muita habilidade e experiência para
selecionar os barris de forma a conseguir enfatizar consistentemente as mesmas
características. Claro que o terroir
de cada cervejaria vai tender a produzir cervejas com um determinado perfil;
contudo, uma blendagem competente é essencial para trazer à tona e explorar da
melhor maneira possível esse terroir
dentro da identidade que o produtor procura para a sua lambic. Um produtor pode
querer uma cerveja mais ou menos ácida, com aromas mais animais, ou talvez mais
frutados, quem sabe com um toque cítrico ou amadeirado. É sua perícia com a
blendagem que vai garantir que sua lambic mostre isso ano após ano.
A 3 Fonteinen é um blender
independente que começou a fazer
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef
Van den Steen)a transição para uma cervejaria. |
A importância da blendagem é tão grande que existem
produtores que realizam exclusivamente essa parte do processo. Existem na
Bélgica, hoje em dia, apenas 10 cervejarias que produzem suas próprias lambics
desde a brassagem até o engarrafamento. Além delas, existem 5 “blenders”
independentes, que não possuem a estrutura para a produção e a inoculação do
mosto, e que apenas o compram, recém-brassado, de produtores estabelecidos para
fermentá-los e maturá-los em seus próprios barris e realizar a blendagem.
Apenas três produtores ainda vendem seu mosto excedente hoje em dia: a Boon, a
Lindemans e a Girardin. Misturando o produto dessas três cervejarias, os
blenders independentes conseguem obter lambics que mesclam as características
do terroir de cada uma.
Finalizando uma gueuze
A gueuze é possivelmente o subestilo mais festejado e
prestigiado entre os produtores e amantes de lambics. É na gueuze que um
produtor ou blender normalmente exibe seu virtuosismo e todo o caráter de sua
cerveja. Uma gueuze é o produto da
refermentação em garrafa de um blend entre lambics puras (isto é, sem adição de
frutas) de diferentes idades, tendo a parte mais antiga pelo menos três anos de
idade. O mais comum é que sejam misturadas lambics de um, dois e três anos. A
proporção entre as partes varia de acordo com cada produtor: pode ser de 50% de
lambic jovem, ou três partes iguais, ou mesmo um predomínio da lambic mais
velha.
Em qualquer outro estilo cervejeiro, a refermentação é
realizada adicionando-se novas leveduras e um pouco de açúcar na garrafa junto
com a cerveja, o que reinicia a fermentação. O mesmo não ocorre com as lambics,
que não recebem nem um, nem outro. Como vimos, a fermentação de uma lambic se
estende por até dois anos, de modo que uma lambic de um ano de idade ainda
possui uma certa quantidade de açúcares residuais a serem fermentados. Quando
uma lambic jovem (de um ano de idade) e uma madura (de dois ou três anos) são
misturadas, as leveduras “dormentes” da lambic velha irão encontrar na jovem
mais açúcares para fermentar, e darão início a uma nova fermentação
alcoólica. Como a garrafa é vedada, o gás carbônico produzido não tem para onde
escapar e se dilui no líquido, dando origem à altíssima carbonatação que é
típica de uma gueuze. Essa última fermentação normalmente demora por volta de
seis meses após o engarrafamento, e apenas então a cerveja pode ser
comercializada. Desde a produção do mosto até o consumo, portanto, a parte mais
velha da lambic terá passado por pelo menos 3 anos e meio de fermentação e
maturação.
A gueuze refermenta nas garrafas
na cervejaria
Cantillon.
Fonte: acervo pessoal |
A lambic jovem é essencial para fornecer açúcares
fermentáveis, enquanto as lambics velhas fornecem uma boa concentração de
leveduras do gênero Brettanomyces,
resultando em aromas mais maduros e desenvolvidos. Uma gueuze tradicional, para
atingir a sua enorme profundidade aromática, deve levar em sua composição uma
parte de lambic que tenha maturado durante pelo menos três anos em barris de
madeira – mais do que em qualquer outro estilo cervejeiro conhecido. O produtor
normalmente separa para isso os barris que tenham desenvolvido mais “caráter”,
ou seja, maior complexidade de aromas e acidez mais bem acabada.
Frutas
“Mas lambic não é aquela cerveja com cereja ou framboesa?
Estamos falando do assunto há tanto tempo e não ouvi uma palavra sequer sobre
as frutas!” É, muitas pessoas associam as lambics imediatamente às cervejas com
frutas, o que é um equívoco. Existem muitas lambics sem frutas, assim como
existem cervejas de frutas que não são lambics e nem mesmo selvagens!
Na realidade, as frutas só entram na última etapa da
preparação de uma lambic de frutas. Até o século XIX, as frutas eram adicionadas apenas
pelo café ou estabelecimento que vendia a lambic aos consumidores finais, como
forma de diversificar sua “carta” de cervejas numa época em que a cervejaria de
cada região produzia e vendia uma única cerveja. Hoje em dia, porém, as
próprias cervejarias passaram a assumir essa responsabilidade e preparar suas
próprias lambics com frutas. O sucesso das fruit lambics foi tão grande que,
atualmente, sua produção e consumo ultrapassa o das lambics “puras”!
A produção de lambics com frutas começa de forma exatamente
igual à de uma lambic pura. A diferença é que, num dado momento do ciclo
fermentativo, o produtor adiciona frutas ao barril (ou a um tanque de aço para
onde desloca a cerveja), resultando em uma cerveja com cor, aroma e sabor da
fruta escolhida. As frutas só entram em uma lambic quando ela já está pronta
para servir ou blendar, o que ocorre entre um e dois anos após o início da
fermentação. O produtor escolhe criteriosamente os barris que levarão frutas.
Normalmente, ele evita lambics muito amargas, que não combinam bem com o sabor
das frutas, bem como as muito ácidas, que podem encobrir a fruta. As cervejas
de maior profundidade aromática também costumam ser reservadas para a produção
de gueuze.
A fruta é tradicionalmente adicionada inteira, com casca e
caroço. A casca é uma importantíssima fonte de leveduras selvagens que ajudarão
a diversificar ainda mais o “mix microbiológico” da lambic, enquanto os caroços
fornecem taninos e aromas peculiares que enriquecem uma fruit lambic. O ideal é
usar a fruta fresca, mas, diante da escassez de pomares na região de Bruxelas,
os produtores têm apelado cada vez mais para frutas congeladas ou, pior ainda,
para polpa ou suco pasteurizado. A quantidade de frutas adicionada a uma lambic chega a
até 30% da mistura total, em volume, o que normalmente garante uma excelente
concentração dos aromas da fruta.
O blender Karel Goddeau adiciona cerejas
para fazer
sua Oude Kriek na De Cam.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen) |
É ideal que a fruta tenha um bom balanço entre acidez e
doçura. A acidez complementa de forma harmônica a própria cerveja, enquanto os
açúcares da fruta são essenciais para darem início a uma nova fermentação. Sim,
pois, quando a lambic recebe frutas, as leveduras têm à disposição um novo
suprimento de açúcares para fermentar e transformar em álcool. Essa nova
fermentação alcoólica (a terceira!) aumenta ainda mais a complexidade do
produto. Mais de 95% dos açúcares originais da fruta são consumidos pelas
leveduras, o que significa que a cerveja se torna seca novamente. No barril,
sobram apenas os caroços. É um erro acreditar que lambics de frutas são
docinhas: as que de fato possuem doçura acentuada receberam açúcar ou aspartame
ao serem engarrafadas. Uma lambic de frutas tradicional é apetitosamente seca e
ácida.
Após a introdução das frutas, o produtor ainda espera entre
6 e 9 meses para que essa nova fermentação se complete. Só depois disso a fruit
lambic é engarrafada, seguindo o mesmo princípio da gueuze: lambics jovens,
com açúcares residuais, são blendados com fruit lambics mais secas e velhas, e
a mistura resultante sofre refermentação na garrafa (o que demora mais 6
meses), secando completamente e adquirindo uma típica e acentuada sensação
frisante.
Uma lambic perfeita é uma obra-prima que combina magistralmente
a ação do tempo e da tradição histórica com a competência de seu produtor. Diante
de tempos de produção tão elevados, não deve causar espanto, portanto, o fato de as lambics, muitas vezes, terem preços ligeiramente acima das demais ales belgas. Uma boa gueuze demora pelo menos 3 anos e meio para
ficar pronta, desde o dia da brassagem até a garrafa estar pronta para ser
vendida. Da próxima vez que brindar com uma boa gueuze ou fruit lambic, faça
uma respeitosa reverência a todo esse tempo durante o qual sua cerveja foi
cuidadosamente preparada para chegar ao seu copo.
A produção de lambics é um empreendimento muito arriscado, devido
ao enorme tempo de espera para o retorno dos investimentos (uma nova cervejaria
demorará pelo menos 3 anos de meio para conseguir vender sua primeira "oude gueuze" tradicional),
e economicamente pouco rentável, tanto é que boa parte dos produtores
(sobretudo os blenders independentes) se dedica a essas cervejas paralelamente
a outras atividades profissionais e ou à produção de outros rótulos mais
comerciais, que são responsáveis por pagar as contas em dia enquanto o
proprietário se diverte com sua paixão pelas cervejas selvagens!
Na próxima parte desta matéria, finalmente veremos o que todos esses procedimentos engendram no produto final. Começaremos falando sobre a acidez das lambics tradicionais para depois explorar melhor seus complexos aromas. Acompanhe!
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