sábado, 15 de junho de 2013

Cervejas selvagens - Parte V: O mosto de uma lambic


Na última parte desta matéria, tivemos a oportunidade de analisar em detalhes o longo ciclo microbiológico que torna a fermentação das lambics um dos mais complexos processos de produção cervejeira do mundo – senão o mais complexo! O vale do rio Senne, pequena região na Bélgica que compreende a capital Bruxelas e a área rural a oeste dela, levou o processo à perfeição ao longo de muitas gerações, desenvolvendo toda uma gama de métodos para garantir seu sucesso. Para se produzir uma boa lambic, não basta deixar o mosto à ação da natureza e rezar para tudo dar certo: é preciso tomar cuidados que passaremos a analisar agora e nas próximas partes desta matéria.

Esses cuidados começam pela própria composição do mosto. O mosto, base a partir da qual qualquer cerveja é produzida, é preparado a partir da fervura de água com grãos (principalmente, mas não exclusivamente, o malte de cevada) e lúpulo. Ao final da fervura, obtém-se uma solução rica em carboidratos extraídos dos grãos, que serão posteriormente fermentados pelas leveduras. Há um ditado que diz que o cervejeiro não faz cerveja; ele faz mosto. Quem faz a cerveja são as leveduras. O adágio não poderia ser aplicar mais adequadamente às lambics, já que, nelas, o cervejeiro nem sequer inocula o mosto com as leveduras: ele apenas prepara o banquete e espera que os microorganismos se instalem e se fartem dos nutrientes disponíveis. Para que isso funcione bem, é preciso selecionar os ingredientes e prepará-los tendo em vista as peculiaridades do ciclo fermentativo que a cerveja irá sofrer. Vejamos, então, como é preparado o mosto de uma lambic.

Trigo e malte de cevada: a dupla dinâmica

Da esquerda para a direita, 
espigas de trigo e cevada.
Fonte: www.inforural.com.mx
As lambics belgas empregam apenas dois tipos de grãos em sua produção: malte de cevada (do tipo “pilsner”, ou seja, o mais claro) e trigo não malteado. A proporção de trigo na receita pode chegar a 40% (em relação ao total de carboidratos), embora normalmente fique em torno de um terço. Essas quantidades relativas parecem vir de longuíssima data. Um regulamento de 1137 já dava aos produtores de cerveja da região privilégios para a moagem do trigo (além do malte de cevada), e um relato de 1559 das cervejas da área descreve uma proporção de trigo para malte de cevada idêntica à que ainda se observa até hoje.

A importância do trigo na receita de uma lambic nos autoriza a categorizar o estilo entre as “cervejas de trigo”, portanto. Mas por que o trigo não-malteado? Além das witbiers, as lambics são o único estilo cervejeiro que ainda emprega o trigo “cru” até hoje, e em enormes quantidades. Não seria mais eficiente usar o trigo malteado (como nas demais cervejas de trigo), que fornece mais açúcares fermentáveis para uma produção mais eficiente de álcool? Aí é que mora a particularidade do mosto de uma lambic: enquanto qualquer produtor busca compor o seu mosto de modo a facilitar uma fermentação rápida, o produtor de lambics precisa atingir uma composição variada de carboidratos, um verdadeiro labirinto de açúcares, nem todos fermentáveis pelas leveduras cervejeiras convencionais. Como vimos, a primeira fermentação alcoólica de uma lambic é realizada pelas leveduras do gênero Saccharomyces (como em qualquer outra cerveja), mas ainda há outras etapas importantes depois disso. Para que elas ocorram, é preciso que sobrem nutrientes o bastante depois da ação das leveduras convencionais, e a única maneira de fazer isso é lotar o mosto de açúcares que as Saccharomyces não conseguem fermentar.

Um mosto que, em qualquer ale ou lager, resultaria em uma cerveja doce demais, com muitos açúcares residuais não fermentados pelas leveduras, é perfeito para um ciclo fermentativo tão longo quanto o da lambic, com microorganismos capazes de consumir todo tipo de carboidrato e realizar a superatenuação. O trigo cru fornece uma alta quantidade de amido, que as leveduras comuns são incapazes de metabolizar e que, por isso, irá permanecer no mosto até o momento em que começará a ser consumido pelas Brettanomyces, quase um ano depois do início da fermentação. Além disso, o trigo não-malteado melhora a estabilidade da cerveja, o que é importante para um produto que precisa de até três anos de maturação antes do engarrafamento.

A mostura túrbida

O mosto de uma lambic é obtido por um complicado processo de infusão dos grãos conhecido como “mostura túrbida” (turbid mash). Normalmente, uma mostura convencional (“de infusão”) é feita infundindo-se os grãos moídos em água quente com uma ou duas pausas em temperaturas pré-determinadas. Já nas lambics, o processo começa adicionando-se uma pequena quantidade de água, relativamente fria, aos grãos moídos. Então se retira parte dessa água (as tinas de mostura dos produtores de lambic são equipadas com discos perfurados que facilitam a separação da água e dos grãos), que é levada a outro recipiente para aquecer até quase ferver, e depois retornada para o recipiente com os grãos, aumentando a temperatura da mistura. Esse procedimento é realizado várias vezes até se atingir a temperatura adequada. O processo, típico da escola belga, foi provavelmente motivado por uma lei holandesa de 1822 que fixava os impostos a serem pagos pelas cervejarias com base na capacidade de sua tina de mostura. Como resultado, os cervejeiros eram incentivados a incluir a maior quantidade possível de grãos nas menores tinas possíveis, adicionando e retirando a água aos poucos.

Mostura túrbida na cervejaria De Troch, 
que produz a linha Chapeau.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
Eis aí um caso em que a tributação foi grandemente responsável pelo sucesso de um estilo cervejeiro. O procedimento, inicialmente motivado por razões econômicas, era perfeito para a produção das lambics, pois resultava em cervejas com uma composição muito variada de carboidratos e altas quantidades de amido e açúcares não fermentáveis pelas leveduras convencionais – um banquete para os estágios finais da fermentação. Isso ocorre porque a fervura precoce de partes da água desnatura as enzimas do malte e as impede de decompor totalmente o amido em carboidratos menores e mais simples. A mostura túrbida produz grandes quantidades de um precipitado de textura borrachuda que é descartado junto com o bagaço dos grãos. Depois que essa sopa de grãos é filtrada, obtém-se um líquido de aspecto leitoso, rico em amido.

Muito ou pouco lúpulo?

A sensação amarga de uma lambic clássica é bastante sutil, e os principais guias cervejeiros apontam um índice de amargor muito baixo, de no máximo 20 IBUs, mas normalmente bem abaixo disso. Para efeitos de comparação, uma pale ale belga pode atingir os 30 IBUs, e uma cerveja de lupulagem assertiva, como uma India pale ale norte-americana, pode chegar a ter até 70 IBUs. Isso tudo nos levaria a crer que as lambics recebem pequenas quantidades de lúpulo, já que a erva é a principal responsável pelo amargor de uma cerveja. Certo?

Errado. Na verdade, o mosto de uma lambic é pesadamente lupulado, até seis vezes mais do que uma ale belga de teor alcoólico comparável. O lúpulo não adiciona apenas amargor e aromas à cerveja – mais que isso, e historicamente talvez até mais importante – ele melhora a estabilidade do produto, agindo como antibacteriano natural e impedindo a proliferação de microorganismos gram-positivos indesejados. É esse efeito antibacteriano que os produtores de lambics buscam no lúpulo, em especial para inibir o crescimento das Enterobacter (bactérias nocivas que atuam no primeiro momento da fermentação das lambics) e dos Lactobacillus. Uma cerveja não inoculada, exposta ao ar livre, que fermentará e maturará durante três anos antes de ser engarrafada precisa de algum tipo de proteção, e o lúpulo fornece o recurso ideal. O objetivo desse controle é garantir que o nível de acidez da cerveja não fique excessivo e desequilibrado – já que uma boa lambic não é simplesmente a mais ácida, mas sim a mais harmônica.

Mas como é que se preserva o potencial antibacteriano do lúpulo sem que ele imprima amargor à cerveja? Para isso, os produtores de lambics empregam apenas e tão-somente lúpulo envelhecidos durante dois ou três anos. As cervejarias podem comprar os lúpulos em flor ainda jovens e deixá-los envelhecer, ou comprar dos produtores lúpulos de safras antigas que não tenham sido vendidos. Ao longo desse tempo, o lúpulo oxida, e os ácidos alfa perdem seu potencial de produção de amargor, mas preservam sua capacidade antibacteriana. Como resultado, a cerveja fica com as propriedades bactericidas, com os taninos e com os polifenóis do lúpulo, mas não fica mais amarga por causa disso. Qualquer variedade de lúpulo é adequada (frequentemente em flor, já que o lúpulo oxida mais rapidamente dessa forma), mas normalmente se empregam variedades belgas, e ocasionalmente inglesas, alemãs ou tchecas, de preferência com baixos índices de ácidos alfa, ou seja, os chamados “lúpulos de aroma”, que já produzem pouco amargor naturalmente.

Lúpulos em flor envelhecidos, prontos para serem 
adicionados ao mosto de uma lambic.
Fonte: Gueuze & Kriek (Jef Van den Steen)
Além de perder seu potencial de amargor, o lúpulo envelhecido também perde seus óleos aromáticos, de modo que não transfere aromas tipicamente lupulados à cerveja. Dessa forma, uma lambic é, curiosamente, uma cerveja altamente lupulada, mas sem aroma nem amargor de lúpulo. Com o tempo, porém, os lúpulos envelhecidos adquirem aromas desagradáveis que podem remeter a palha e principalmente a queijo e mofo, e que se transferem inevitavelmente ao mosto. Essas características não devem estar presentem em quantidades relevantes no produto final: idealmente, elas irão gradualmente se dissipar durante a longa fermentação ou serão encobertas e mascaradas pelos intensos aromas típicos das lambics.

O mosto obtido com esses ingredientes e esse peculiar procedimento de brassagem ainda enfrenta uma longuíssima fervura de até seis horas contínuas antes de ser posto para fermentar. No passado, com fontes de calor e recipientes menos eficientes, a fervura de uma lambic chegava a durar até 12 horas, mas hoje tem progressivamente sido reduzida a quatro horas. Todo esse tempo é essencial para precipitar a imensa quantidade de proteínas e taninos do mosto. Assim que o mosto termina de ferver, precisa ser resfriado para dar início à instalação dos microorganismos e à fermentação. Depois disso, inicia-se todo um novo conjunto de cuidados para garantir o bom andamento da fermentação, que analisaremos na próxima parte desta matéria. Não perca!

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