Na última parte desta nossa viagem pelo mundo da selvageria
cervejeira, falamos sobre microcervajarias da chamada “revolução artesanal” que
começaram, a partir dos anos 1990, a sair da barra da saia das Saccharomyces (as tradicionais leveduras
cervejeiras usadas para produzir ales e lagers) e flertar com as ariscas Brettanomyces, Lactobacillus e Pedioccocus.
Foi assim com muitas cervejarias dos EUA, Dinamarca e Holanda. Mas e o Brasil,
terra de natureza exuberante e colossal? Aposto como aqui a selvageria
cervejeira também poderia encontrar uma expressão grandiosa, não?
Produção do cauim de
milho entre os araweté do Pará.
Fonte: http://pib.socioambiental.org/ |
Pois é, por enquanto, não. Não que não haja antecedentes
históricos. Todo o território brasileiro – aliás, toda a América do Sul –,
antes da expansão desenfreada da pecuária e da agricultura pelo interior do
continente, era habitado por diversos povos indígenas que produziam vários
tipos de fermentados selvagens – seja na forma do caium, fermentado de mandioca,
algarobo ou milho, seja na forma do hidromel, feito do mel, seja na forma de
bebidas que misturavam essas matérias-primas. Em todo o litoral sul do Brasil,
área de grupos tupinambás, bem no Centro-Oeste, essas ricas tradições de fermentados
naturais (cada qual com inúmeras variações nas técnicas de produção) conviviam
entre si. Portanto, o Brasil tem uma baita bagagem histórica para a produção de
bebidas alcoólicas com fermentação natural. Se a Bélgica é o país das lambics e
Flanders red/brown ales, o Brasil é um continente inteiro de selvageria.
Mas – convém lembrar o leitor – estamos falando do Brasil.
É, esse Brasil eurocêntrico, tacanho, colonizado, que fica macaqueando modas
estrangeiras e joga fora o que teve e tem de melhor em nome de uma imitação de
segunda categoria do que é “fino” lá fora. Poderíamos ter uma rica interlocução
entre produtores industriais e nossas tradições culturais autóctones, mas
preferimos simplesmente enfiar frutas tropicais aleatórias como aditivos exóticos
em meio a bebidas produzidas seguindo tintim por tintim as técnicas do
“Primeiro Mundo”. Enfim. Apesar de se um país com uma rica tradição histórica
de fermentados “selvagens” de fontes de amido, o Brasil parece estar quase
completamente alheio às cervejas selvagens.
As dificuldades
técnicas
Mas vamos com calma. Alguns fatores explicar essa relutância
dos produtores nacionais em se aventurar no “lado negro” da selvageria
cervejeira. Não estou nem falando em resgatar e adaptar industrialmente
técnicas indígenas e autóctones de fermentação espontânea – o que seria o ápice
de uma verdadeira contribuição nacional ao cenário cervejeiro global. Isso
seria um segundo – e ambicioso – passo, que demandaria pesquisa etnográfica,
etnohistórica, arqueológica e etnocientífica numa escala que o Brasil
simplesmente não está acostumado a fazer, além do desenvolvimento de novas
tecnologias de produção e de uma regulamentação jurídica junto aos órgãos
oficiais. Sim, eu gosto de sonhar alto, por que não?
Mas, por enquanto, vamos falar simplesmente em produzir, em
solo tupiniquim, cervejas selvagens baseadas nas tradições europeias e nas sour ales da “nova geração”. A primeira dificuldade é o acesso às criaturinhas que fazem a mágica acontecer: Brettanomyces,
Lactobacillus e Pediococcus são leveduras e bactérias que só recentemente passaram
a ter boa disponibilidade para produtores nacionais, na forma de culturas
laboratoriais especificamente adaptadas para a produção cervejeira. Para
piorar, esses microorganismos (em especial as Brettanomyces) podem ser bastante agressivos e, uma vez que se
instalem num determinado ambiente, são muito, mas muito difíceis de serem
extirpados. Ocorre que, para quase todos os estilos de cerveja fora do mundo
das sour ales, sua influência é considerada um defeito. Muitos produtores
evitam convidar esses monstrinhos para suas fábricas com medo de comprometer a
produção de suas cervejas mais “convencionais”.
Infestação de fungos: o
pesadelo
secreto de todo produtor de
cerveja.
Fonte: |
Há outros detalhes. Quase todas as sour ales exigem o uso de barris de madeira, técnica complexa, quase esotérica, que está longe de ser
dominada pelas cervejarias nacionais. E um barril usado para fermentar e
maturar sour ales não pode depois ser usado para mais nada além de outras sour
ales. Lembra que eu disse que as Brettanomyces
eram invasoras praticamente inexpugnáveis? Pois é, e a madeira é seu habitat preferido. Há ainda as questões
legais. A legislação sul-americana de produção cervejeira ainda não está
preparada para lidar com as complexas questões sanitárias que envolvem a
produção de alguns tipos de sour ales. Se até na União Europeia os produtores
de lambics precisam brigar para serem deixados em paz pelos órgãos sanitários,
imagine então como seria a regulamentação de uma cerveja de fermentação
espontânea no Brasil.
E, por último, resta a questão dos preços. Sour ales demoram
para serem fabricadas, pois exigem longos períodos de maturação em madeira. Se
as cervejarias brasileiras acham que podem cobrar R$ 20-30 reais numa long neck
de qualquer nova cerveja um pouco mais ousada e/ou alcoólica, quanto custaria
uma sour? Essa questão eu me abstenho de comentar, e deixo para a consideração
dos meus leitores.
Dois experimentos
brazucas
A despeito de tudo isso, existem aqui e ali alguns
experimentos. A maior parte deles, hoje, é feita ou por cervejeiros caseiros,
ou na condição de lotes experimentais, sem intenção comercial, de cervejarias
estabelecidas. Eu mesmo tive a honra de provar uma ótima “lambic” com amoras
feita em casa um velho amigo, que estava com apenas um 1 de maturação e ainda
exibia uma boa dose de açúcares residuais, bem como uma extraordinária
“Flanders red ale” da Wäls que resultou da maturação da Quadruppel em barris de
uísque (sobre a qual falei aqui). Mas, nas prateleiras, ainda reina a escassez.
Apesar disso, começam a aparecer lentamente alguns rótulos de distribuição
comercial, e espero que continuem a aparecer mais no futuro próximo. Falarei
sobre dois com uma forte pegada de brasilidade.
A primeira sour ale produzida no Brasil provavelmente foi a Falke Vivre Pour Vivre (“viver para
viver” em francês, título de um filme de Claude Lelouch). Da mesma forma que
ocorreu com a primeira cerveja americana a faturar medalha na categoria
“lambic” nos campeonatos gringos, consta que essa Falke teve sua origem em um
erro, uma contaminação bacteriana numa tentativa de produzir outra cerveja. Diz
a lenda que a Falke teve uma contaminação lática em um dos lotes de sua Tripel Monasterium
e, em vez de jogar a cerveja azedada ralo abaixo, o proprietário Marco Falcone decidiu
adicionar suco de frutas e mais leveduras nas garrafas, para refermentar. O
resultado agradou Falcone de uma tal forma que inspirou a Falke a produzir uma
sour ale.
Fonte: |
A fruta escolhida para adicionar à cerveja-base foi a
nacionalíssima jabuticaba, cujos tons terrosos e a leve acidez casaram bem com
as características selvagens da fermentação. A cerveja, com teor alcoólico de
4.5% (bem mais baixo que o da Monasterium, e mais próximo daquele das lambics
belgas) passa por uma fermentação primária com Saccharomyces e uma segunda fermentação lática, com um longo
período de maturação de 3 anos, segundo a cervejaria. Aparentemente, a
maturação ocorre em tanques de inox, e não em madeira. Depois, as jabuticabas
são adicionadas para ocasionar uma terceira fermentação. A cerveja foi lançada
pela primeira vez em 2009, mas ainda sem distribuição comercial, podendo ser
degustada apenas por aqueles que foram honrados com uma garrafa oferecida pelo
próprio Marco Falcone (ou por aqueles que, como eu, estão longe de fazer parte
da “nobreza cervejeira” brasileira, mas têm generosos amigos dentro dela!).
Mais tarde, salvo engano em 2011, ela entrou em distribuição comercial pela
espantosa cifra de R$ 200 pela garrafa de 750ml, desincentivando completamente os
consumidores a apoiarem essa nascente, e quase natimorta, “revolução selvagem”
brasileira.
A Falke Vivre Pour Vivre é frequentemente comparada às fruit lambics belgas, mas a comparação
não me parece muito precisa. A começar pelo fato de que não se trata de uma
cerveja de fermentação espontânea, mas de uma ale inoculada com fermento e que
posteriormente recebe uma segunda inoculação com bactérias láticas. Ademais, lambics
belgas se caracterizam pela ação das Brettanomyces
(recebidas pelo ar durante a fermentação espontânea e potencializadas pela
maturação em madeira), adquirindo uma inclemente secura e aromas animais, sendo
que essas características são bastante suaves na Vivre Pour Vivre, que não recebe
leveduras do ar e não matura em madeira. O pouco que há de Brettanomyces, ao que tudo indica, entra apenas na fase final,
junto com as jabuticabas, imprimindo traços suaves à cerveja. Tudo isso me faz
pensar nela como algo mais na linha das sour ales da nova geração.
A doçura dos açúcares ainda é bem evidente e chega até a se
sobrepôr à acidez lática em alguns momentos, sobretudo no final adocicado e
macio, com sabor de malte, lembrando os estilos de Flandres. A parca presença
de Brettanomyces explica essa alta
dose de açúcares residuais, que torna a cerveja bastante palatável. Há ainda
uma boa dose de salgado. O aroma é rústico, predominando os tons terrosos,
lembrando mofo, tamarindo e casca de batata, sobre sabores de frutas vermelhas
(penso em morangos desidratados). Há amêndoas cruas, um acento animal suave e
um final docinho em que o malte mostra mel e castanhas. O corpo é médio e
sedoso. É uma sour ale com frutas mais adocicada, que não assusta quem não está
acostumado, mas que não chega a ser enjoativa e nem perde em complexidade. Veja aqui a avaliação completa. Boa
criação nacional, mas a comparação com as fruit lambics é descabida. O preço é
impraticável, e acredito que seja motivado pela maturação de 3 anos após a
fermentação lática. Uma maturação de 3 anos é comum em lambics, mas eu fico me questionando
se ela realmente é necessária neste caso, tendo em vista a pequena importância
das Brettanomyces. A despeito de todo
esse tempo, a Vivre Pour Vivre parece uma sour ale de maturação curta.
Tenho a impressão de que, assim como a Falke foi inspirada por
um erro, a segunda cerveja selvagem a ser comercializada no Brasil também
acabou ficando ácida quase “sem querer”. Provando que, às vezes, errar é bem mais interessante do que acertar. Injustamente pouco comentada no meio
cervejeiro nacional, ela é uma das coisas mais interessantes que já saíram das
cervejarias brazucas, não propriamente porque seja uma cerveja perfeitinha e
sem arestas, mas porque realmente é um produto único, que partiu da tradição
alemã (a principal origem de nossa tradição cervejeira no Brasil) para criar
algo totalmente inédito. Refiro-me à Bamberg St. Michael, uma sazonal de luxo da cervejaria Bamberg lançada pela
primeira vez no final de 2010 para comemorar os 5 anos da cervejaria. Trata-se
de uma Weizenbock escura que passa por dry-hopping com variedades alemãs de
lúpulo, matura durante 6 meses em barris de carvalho usados para produção de
vinho tinto e refermenta na garrafa com leveduras de espumante. As leveduras e
bactérias selvagens não são inoculados, mas afetam a cerveja durante o estágio
em madeira, transformando-a em uma espécie de “sour Weizenbock”.
Fonte: http://cervejariabamberg.blogspot.com.br/ |
A acidez lática e sobretudo acética potencializam a acidez
natural da cerveja de base, uma Weizen (e a Bamberg realmente puxa bastante na
acidez de suas cervejas de trigo), criando um efeito interessante sem
descaracterizar seu perfil de Weizenbock. Um perfume de lúpulo alemão (bem
floral com um toque de limão), abre espaço para as frutas (banana-passa,
ameixas secas, morango) e o caramelado do malte. O cravo se atenuou e deu
origem a interessantes notas defumadas. Vinagre, terroso, amadeirado e tostado anunciam
a passagem pelo barril. Na boca ela se mostra bem elegante, com um ataque ácido
intenso conduzindo a um final mais suave, em que aparece uma leve doçura de
malte, nada pesada, bem elegante. O corpo é mediano, seco para seu alto teor
alcoólico de 8.2%, avolumado pela espantosa carbonatação, e levemente
adstringente como deve ser uma sour ale. No final, ela sintoniza bem os toques
frutados e de especiarias e a refrescante acidez de uma Weizenbock com a acidez
e a rusticidade da fermentação espontânea, tornando-se ao mesmo tempo menos
pesada e mais complexa que uma Weizenbock tradicional. Como se o malte desse um
passo atrás e a complexidade das fermentações pudesse mostrar seu brilho. Veja aqui a avaliação completa.
A minha impressão é que o Alexandre Bazzo, proprietário da
germanófila Bamberg, tentou criar uma cerveja intensa com maturação em barris
(como fazem os norte-americanos com suas colossais imperial stouts e barley
wines) e escolheu para isso um dos estilos de maior teor alcoólico e
complexidade da escola alemã. Contudo, a baixa lupulagem e a acidez natural da
cerveja de trigo fizeram com que a maturação em barris levasse a cerveja para o
lado de uma sour ale. Sorte a nossa. Minha impressão sobre a safra 2011 (a
única que provei) foi que a cerveja poderia talvez ter uma personalidade
selvagem mais definida, com acidez mais elevada, mas mais para o lado lático e
menos para o acético, que acabou sendo muito acentuado. Adoraria ver a Bamberg
realmente assumir o lado “sour” dessa cerveja, sem tentar mascarar a acidez e a
ação dos microorganismos selvagens. De qualquer forma, acredito que ela tenha
aberto um caminho muito promissor. O Brasil tem uma longa tradição de produzir
cervejas alemãs, e eu acho salutar que nossos cervejeiros aproveitem essa
experiência para usar os estilos alemães como trampolins para novos
experimentos.
Trata-se de dois rótulos de acidez ainda pouco ousada, o que
é compreensível diante da quase inexistência de paralelos no mercado nacional e
do restrito universo de comparação que tínhamos, mesmo entre as importadas, até
o ano passado. E é só isso? Não exatamente. Em 2013, a cervejaria Abadessa
lançou sua Gose, mas a produção foi relativamente limitada e eu não consegui
ter acesso a ela. Não sei dizer qual o grau de “selvageria” dessa cerveja,
ainda mais levando-se em conta que o estilo Gose tem sido recentemente
reinterpretado com acidez atenuada. Só sei que ela sai de novo agora em 2014 e
eu não pretendo perder desta vez!
2013 foi um ano muito interessante para os amantes de
cervejas selvagens no Brasil. Quando comecei a escrever sobre o assunto, em
abril, tínhamos pouquíssimos rótulos disponíveis no mercado. Passaram a ser
importadas as cervejas daqueles que talvez sejam os dois mais importantes
produtores de lambic da atualidade – a Cantillon e a 3 Fonteinen. Novas marcas
de Flandres red ales chegaram ao país. As cervejas selvagens ganharam mais
notoriedade e conquistaram paladares de cervejeiros que antes faziam careta
para todo esse “azedume”. Gosto de pensar que esse blog desempenhou pelo menos
um pequeno papel nesse despertar de interesses. Os preços ainda não ajudam quem
é curioso, e as cervejarias nacionais parecem ainda não ter acordado muito para
essa nova tendência, mas o brasileiro parece finalmente estar levando as
cervejas selvagens a sério. Quem sabe o cenário não melhore ainda mais em 2014?
Nas próximas partes, finalizaremos esta longa série sobre as
cervejas selvagens voltando a falar sobre lambics. Na próxima parte, quero
ilustrar a evolução de uma lambic ao longo do tempo com 4 degustações, e depois
pretendo finalizar falando sobre novos experimentos e o novo horizonte aberto
aos produtores belgas. Acompanhe!
Muito bom esse post, parabéns. Creio que a jabuticaba pudesse ser mais utilizada em cervejas a la sour ales. Na minha infância aqui no interior do RJ, lembro que faziam um licor de jabuticaba colocando-as em um vasilhame as enterrando para fermentar. abraços
ResponderExcluirO Brasil tem várias frutas que têm a proporção perfeita de doçura, acidez e taninos para uma sour de matar! Sempre penso em carambola e pitanga, por exemplo. O seu comentário sobre licor de jabuticaba é perfeito - acho que são essas técnicas tradicionais de fermentação que deveriam estar sendo experimentadas pelas cervejarias, e não só as novas variedades de lúpulo americano.
ExcluirAlexandre, com certeza este Blog mudou meu pensamento sobre espontâneas, hoje sou um avido degustador (tanto de cervejas, quanto de literatura deste estilo). não é meu estilo preferido ,mas é top Five.A Vivre é nuito legal,ousada, harmonica, competente, só acho que não vale o custo beneficio. Um forte abraço
ResponderExcluirJá provou a Catarina Vintage da Basement? Dá pra chamar de sour? No paladar ela tem azedo razoável, pelo menos, e se bem me lembro é bem seca.
ResponderExcluirOlá, Edson! Ainda não provei a Catarina Vintage. Pelo que vi das descrições comerciais da cerveja, quaisquer traços selvagens devem ter sido provavelmente inesperados. Mas vou tentar achar ainda uma garrafinha, valeu pela dica!
ExcluirSe eu tivesse lido teu artigo antes, não teria jogado no vaso sanitário 72 garrafas de um lote que contaminou com acético... coisas de cervejeiro, coisas desse imenso universo das cervejas. Abraço!
ResponderExcluirO lance é SEMPRE guardar e ir provando, nem que sejam guardadas por anos! hehehe!
Excluirmas se pegou muito acetico eh complicado mesmo.