A arte do bem explorar a
“mala amiga” é a
maior arma do cervejeiro de baixa renda.
Fonte: www.turbosquid.com |
Parece incrível, mas já faz quase um ano que temos falado
ininterruptamente aqui neste blog sobre cervejas selvagens. É hora de soarem os
acordes finais da sinfonia, e para isso vou voltar às cervejas com as quais
começamos esta viagem: as lambics. Eu poderia ter escrito esta e a próxima
matéria na época em que estávamos falando sobre lambics, mas preferi esperar
chegarem às minhas mãos duas preciosas garrafas trazidas direto da Europa por
um primo meu – fica aqui meu agradecimento! Que elas sirvam, portanto, de
balizas finais no itinerário desta longa viagem. A matéria desta quinzena será
dedicada à evolução de uma lambic ao longo do tempo, comparando uma versão
jovem com uma versão plenamente madura da mesma lambic. De quebra, teremos a
oportunidade de falar sobre o último – e mais antigo – estilo de cerveja
selvagem que abordaremos aqui: as straight
lambics.
A longa maturação das
lambics
Nas partes anteriores, eu fiz questão de ressaltar os longos
tempos de maturação das lambics. De fato, após serem naturalmente inoculadas pelos microorganismos do ar, essas cervejas são embarriladas e chegam a passar
até três anos dentro de barricas ou tonéis de carvalho antes de serem
engarrafadas. Por que tanto? Recapitulemos resumidamente o que já vimos antes:
uma lambic sofre 3 fermentações antes de ser engarrafada. A primeira, com
leveduras cervejeiras comuns, do gênero Saccharomyces,
dura em torno de 3-4 meses e produz álcool. A segunda, com bactérias do gênero Pediococcus, termina entre o 7º e o 11º
mês a partir do início do processo e produz ácido lático. A terceira, com
leveduras do gênero Brettanomyces,
começa a partir daí e se estende pelo menos até o 18º mês. Um ano e meio de
fermentação ininterrupta, no mínimo. E pensar que, para quase todos os outros
estilos de cerveja, a fermentação se encerra em uma semana.
A lambic é considerada apta para ser servida e consumida
assim que termina a segunda fermentação – ou seja, quando ela tem quase um ano
de idade. No passado, a maior parte da lambic produzida por uma cervejaria era
vendida neste ponto de sua maturação, diratamente dos barris e sem envasar. Ainda não existia a gueuze, que surgiu no
final do século XIX – quando se fala que as lambics são um estilo com séculos
de idade, é nessas versões jovens que se pensa. Hoje, a lambic ainda é servida
dessa forma, mas ela corresponde à menor parcela da produção, em torno de 10%.
O restante é usado em blends para se produzir as versões engarrafadas: as
lambics com frutas e as gueuze. No blend de uma gueuze, entram tradicionalmente
lambics de um, dois e três anos de idade, que são misturadas em proporções
variáveis para se atingir o resultado desejado pelo produtor.
A lambic jovem
Os litros e litros de
lambic jovem de
antigamente hoje se reduziram para
dar espaço aos blends e
lambics
engarrafadas. Na imagem, lambic
jovem sendo servida à farta na
tela
“Casamento camponês” (1568),
de Pieter Brueghel.
Fonte: http://www.ibiblio.org |
Mas exatamente o que muda ao longo desse tempo? Se a lambic
pode ser servida com um ano de idade, por que esperar três? No primeiro caso,
após finalizar as duas primeiras fermentações, a lambic ainda não exibe traços
muito marcantes de Brettanomyces, que
se desenvolvem plenamente apenas na terceira fermentação. Os aromas animais
ainda são suaves, bem como o frutado fresco associado às “Bretta”. Ela já tem
aquela acidez característica, uma vez que passou pela fermentação lática, mas
ainda não tem o paladar seco de uma lambic madura. A esta altura, 80% dos
carboidratos originais do mosto já terão sido consumidos e convertidos em
álcool e ácido lático nas duas primeiras fermentações, mas ela ainda terá 20%
de açúcares restantes, que só as Brettanomyces
serão capazes de metabolizar. Isso significa que a lambic jovem, com um ano de
idade, ainda exibe uma certa doçura residual, resultando em uma bebida um pouco
menos agressiva ao paladar para quem não está acostumado com lambics.
Quando é servida neste estágio de seu desenvolvimento, a
lambic é usualmente classificada como “straight lambic”, ou lambic sem blendar,
sendo muito mais difícil de encontrar hoje em dia do que as versões
engarrafadas. A “raridade” relativa do produto, neste caso, não significa que
ele seja de alguma forma superior. Na verdade, a lambic sem blendar é
considerada o produto menos elaborado da cervejaria, já que não teve tempo para
desenvolver um perfil maduro de Brettanomyces.
É usualmente vendida no entorno das cervejarias produtoras, ou seja, na região
de Bruxelas, e é servida em barris nos bares e cafés da capital belga. Alguns
poucos produtores, como a Girardin e a Oud Beersel, envasam a lambic jovem em
sacos plásticos de 5 litros (o bag-in-box), semelhantes àqueles usados por
algumas vinícolas. Além disso, é tradicional que a cervejaria venda a lambic
jovem “a granel”, por litro, na porta da fábrica, em vasilhames trazidos pelos
próprios consumidores. Ela advém de um único barril e, por não ser blendada e
padronizada, demonstra profunda variação sensorial de barril para barril. Como
não é engarrafada, não sofre refermentação na garrafa e não produz espuma: ela
vem ao copo totalmente sem carbonatação, tal qual um vinho.
Um bom exemplo de lambic sem blendar é a Cantillon Lambic. Quando a bebi, na
própria fábrica (veja aqui meu relato sobre essa extraordinária visita), era
verão e ela já tinha quase um ano e meio de idade (a Cantillon só inicia a
produção de sua lambic no inverno), mas preservava as principais
características da lambic jovem. Servida de jarros de cerâmica – como manda a
tradição, aliás –, não formou nenhuma espuma, apenas algumas bolhas grandes
produzidas pela viscosidade do líquido ao ser servido. A doçura e o sabor do
malte eram bem perceptíveis, atenuando a percepção da acidez. Notava-se um
equilíbrio interessante entre o doce, o ácido e uma forte adstringência de
taninos, ainda um pouco “rude” devido à pouca idade, conduzindo a um final em
que o amargor tânico predominava. No aroma, mostrou-se menos complexa e
refinada do que a gueuze da cervejaria. Como já tinha um ano e meio de idade, o
aroma animal estava bem desenvolvido, junto com o terroso típico do terroir da Cantillon. O malte deu as
caras com sabor de mel, junto com sensações licorosas de plástico e xarope
causadas pela oxidação. Um caráter acético a complementou, mas, de forma geral,
apresentou menor complexidade aromática. O corpo era leve, mas não tão seco
quanto o de uma lambic madura, com uma certa viscosidade oleosa e adstringente.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
Os benefícios da
idade
E entre o final do primeiro ano e o final do terceiro
(quando a lambic atingiu maturidade plena), o que acontece? No segundo ano
acontece a terceira fermentação, feita pelas Brettanomyces. Todos os açúcares residuais da cerveja são
consumidos e convertidos em álcool, deixando a lambic totalmente seca e
acentuando a percepção da acidez. O aroma animal e frutado das Brettanomyces se desenvolve. Durante o
terceiro ano, não resta mais nada a fermentar, mas as Brettanomyces continuam vivas e a cerveja matura até atingir seu
ápice. Os aromas animais e principalmente frutados se abrem plena e
profusamente, atingindo aquele caráter de vinho Chardonnay, cheio de fruta
madura, que os produtores buscam em suas lambics. A acidez e os taninos se
amaciam com o tempo, tornando-se mais elegantes e austeros, menos “nervosos”.
Uma certa licorosidade vínica se desenvolve, junto com elegantes traços de
evolução e oxidação, lembrando mel aromático, mineral e amêndoas cruas.
A lambic plenamente madura, com 3 anos de idade, raramente é
servida sozinha. O mais comum é que ela seja usada como parcela nobre do blend
de uma gueuze, adicionando complexidade e vivacidade aromática. Mas, para nossa
sorte, alguns poucos produtores – mais especificamente, a Cantillon e a De Cam
– engarrafam suas lambics de 3 anos. Ao contrário do que ocorre com a lambic
jovem, a de 3 anos pode perfeitamente ser engarrafada sem desenvolver
carbonatação, pois ela praticamente não tem mais açúcares residuais a serem
fermentados. É verdade que os relatos sobre garrafas muito antigas dessas
lambics atestam que uma leve carbonatação pode se desenvolver com o passar do
tempo, mas nada próximo do nível de uma gueuze.
A lambic madura da Cantillon, sem blendar, é vendida sob a
denominação de Cantillon Grand Cru Bruocsella Lambic Bio, e oferece uma ótima comparação com a lambic jovem,
para entendermos os efeitos desses dois anos adicionais sobre a cerveja. A
Grand Cru Bruocsella Lambic Bio 2009 (a safra indica o ano de brassagem, e não
de envase) não apresenta carbonatação, mas forma um discreto anel de creme na
lateral da taça. Na boca, mostra uma surpreendente, mas discreta, doçura
licorosa na entrada e ao engolir, sobrepujada por uma elegante acidez, mais
suave do que na gueuze. A profundidade aromática é vertiginosa: o aroma animal
e de couro cru ainda está presente, mas já foi ultrapassado por uma avalanche
de frutas frescas e maduras (pêssegos, nectarinas, tangerinas, damascos,
framboesas, lima-da-Pérsia), baunilha e alguma madeira. Terroso, apimentado e
mineral lhe dão elegância precisa para equilibrar as frutas e a doçura da
baunilha e do mel aromático. O corpo é leve e suavemente tânico – para meu
paladar, os taninos são até suaves demais, deixando-a um pouco desestruturada
diante da gueuze. Veja aqui a avaliação
completa. Este é um rótulo caro e de distribuição muito restrita, mas que temos
o privilégio de ter no Brasil desde o final de 2013. Vale o alto preço para
quem é fã de lambics.
A mistura perfeita
E a gueuze? Como ela se posiciona diante desses dois
extremos da lambic jovem e da lambic madura? Como sabemos, ela resulta do blend
entre lambics de um, dois e três anos de idade, em proporções variáveis, e
sofre refermentação na garrafa por mais 6 meses, ficando completamente seca.
Ela fica em algum ponto entre a juventude da lambic de 1 ano e a maturidade
plena da lambic de 3 anos, mas ganha a elegante e apetitosa secura da
refermentação na garrafa. Na verdade, o objetivo do blend é conseguir unir o
melhor dos dois mundos: a acidez e os taninos ainda vibrantes e mordazes da
lambic menos madura (com 1 a 2 anos) com a secura da refermentação e a profundidade
aromática da lambic de 3 anos. O resultado, quando saído das mãos de um blender
experiente, é uma obra-prima que preserva a complexidade da lambic madura com o
caráter mais vibrante da jovem, ao mesmo tempo em que a secura ressalta a
elegante acidez.
Mais uma vez, a Cantillon será nosso exemplo. A Cantillon Gueuze 100% Lambic Bio, que
já analisamos antes aqui, exibe um aroma em que frutas tropicais maduras e
toques animais, terrosos e minerais se equilibram. Menos complexo do que na
Grand Cru Bruocsella, mas muito mais do que na lambic jovem. Mais seca e mordaz
que ambas as versões sem blendar, com acidez mais vibrante e perceptível, e com
uma adstringência tânica intermediária que lhe dá estrutura precisa na boca,
além de uma volumosíssima carbonatação. Se tentássemos observar a evolução de
cada um de seus elementos ao longo do tempo, teríamos o seguinte:
Enquanto os taninos vão se amaciando e a complexidade
aromática vai crescendo ao longo da evolução da lambic, ambos de forma quase
linear, podemos observar que doçura e acidez encontram seus extremos no
resultado do blend que dá origem à gueuze. A doçura atinge o menor nível (para
depois voltar a aparecer sutilmente na lambic madura), enquanto a acidez atinge
um ápice de vibrante tensão (para depois voltar a se amaciar na lambic madura).
Glorioso outono
Mas e depois? A lambic continua seu caminho de transformação
depois de 3 anos? Supõe-se que sim, mas num ritmo muito mais lento. É por isso
que raramente as cervejarias envelhecem suas lambics por mais de 3 anos antes
de blendar e engarrafar. Contudo, como sabemos, gueuzes envelhecem notavelmente
bem na garrafa, então é possível degustar lambics com idade muito superior a
isso e ver o que um envelhecimento ainda maior pode fazer com a cerveja. E
adivinhe só qual cervejaria vai nos fornecer o exemplo? Acertou quem pensou, de
novo, na Cantillon!
Em 2013, tive a oportunidade de beber uma Cantillon Gueuze 100% Lambic Bio 2004 –
com 9 anos de guarda desde o momento do engarrafamento, portanto. É difícil
fazer a comparação direta com a versão fresca da gueuze, já que a Cantillon
mudou muito o caráter de suas cervejas nos últimos 10 anos. Antigamente, as
lambics da Cantillon eram intensamente acéticas e ácidas, e hoje em dia se
mostram mais equilibradas depois que a cervejaria começou a trocar de forma
sistemática seus barris velhos e demasiadamente contaminados com bactérias acéticas.
A cerveja tinha só um tiquinho de doçura, e amargor muito suave, com acidez nas
alturas do início ao fim (como era praxe nas safras mais antigas da Cantillon)
e forte sensação carnuda (umami) e salgada, indicativo claro e delicioso de
autólise de leveduras. Os aromas frutados mostraram-se mais suaves diante de
traços animais e terrosos bastante intensos e de um aroma tostado
característico de lambics muito antigas, que me lembra pipoca queimada. Toques
de vinho do Porto, molho shoyu, plástico e mel aromático mostraram nitidamente
seu glorioso envelhecimento. O corpo era levíssimo, como deve ser uma gueuze,
mas a guarda lhe deu uma textura vínica e licorosa. O aroma animal e frutado
das Brettanomyces passou a conviver
com um austero perfil de envelhecimento, e ela desenvolveu uma suave e
agradável licorosidade. Clique aqui para ver a avaliação completa. Uma
belíssima experiência, sem dúvida! Fica a sugestão para quem puder comprar
algumas garrafas de uma boa gueuze (não precisa ser a Cantillon, basta ser um
exemplar tradicional do estilo, sem adoçar e sem pasteurizar) para guardar por
uns bons anos antes de abrir. Uma boa lambic sempre nos reserva surpresas.
Na próxima – e última! – parte desta longa jornada no mundo
das cervejas selvagens, falaremos ainda sobre o tempo, mas sob outra ótica.
Quero trazer aos meus leitores algumas das inovações e dos novos experimentos
feitos pelos produtores do mais antigo e tradicional estilo de cerveja do
mundo, para provar de uma vez por todas que as lambics não pararam no tempo!
Não perca!
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