É chegada a hora de finalizar nossa longa viagem pelo
continente da selvageria cervejeira. E faremos isso olhando para o presente e
para o futuro dessas que são as mais antigas cerveja do mundo – as lambics.
Desde a década de 1990, na esteira da chamada “revolução artesanal”, o mercado
de lambics tem passado por um salutar reaquecimento, com a revalorização
internacional dos exemplares tradicionais do estilo, que não são pasteurizados
e nem adoçados e seguem os métodos produtivos cristalizados no século XIX (a
maior parcela dos quais já era praticada há pelo menos 5 séculos). Os sinais
desse reaquecimento são claros. Surgiram novos produtores, como é o caso da
Tilquin, e ressurgiram das cinzas alguns outrora extintos, como a Oud Beersel.
Alguns blenders, como a 3 Fonteinen, conseguiram heroicamente começar a pôr a
mão na massa e brassar sua própria cerveja, sem depender do mosto produzido por
outras cervejarias. Diversas cervejarias de porte relativamente grande (considerando-se
as dimensões diminutas dos produtores de lambics) começaram recentemente a
reapresentar exemplares tradicionais, denominados “oude” ou “vieille” de acordo
com a legislação europeia.
O que pode ser mais legal
do que a mistura
entre anacronismo e modernidade?
Fonte: |
Um pouco desse novo experimentalismo dos produtores belgas
tem chegado ao Brasil desde o final de 2013, sobretudo pelas mãos da
importadora Hors Concours, mas nem sempre a preços muito amigáveis. Gostaria de
acreditar que o espaço das cervejas selvagens tenderá a crescer no Brasil nos
próximos anos, levando a uma certa normalização dos preços. Mas, por outro lado,
a produção limitada das cervejas do estilo e a dificuldade em firmar acordos de
exportação ainda constituem um convite à especulação e à maximização dos lucros
de importadores com contratos exclusivos. É uma pena.
Peripécias recentes da 3 Fonteinen
A primeira das lambics experimentais de que falaremos é uma
gueuze produzida pela 3 Fonteinen, uma das mais respeitadas produtoras de
lambic da Bélgica. A cervejaria passou por uma série de turbulências nos
últimos 5 anos. Até 1999, a 3 Fonteinen era apenas e tão-somente um blender
autônomo, comprando o mosto de outras cervejarias para fermentar e blendar suas
lambics. A partir de então, o proprietário Armand Debelder alugou um
equipamento produtivo de segunda mão da gigante Palm e passou a brassar seu
próprio mosto. Ocorre que, em 2009, o prazo contratual expirou e uma outra cervejaria
comprou o equipamento antes que Armand pudesse renovar o contrato, deixando a 3
Fonteinen de volta ao estado de mero blender. Apenas em 2013 a cervejaria
conseguiu adquirir e inaugurar um novo equipamento produtivo, e voltou a
fabricar seu próprio mosto no inverno de 2013-2014. As primeiras gueuzes feitas
exclusivamente com lambics brassadas pela 3 Fonteinen, portanto, devem chegar
ao mercado apenas em 2017.
Isto é, se tudo der certo. Porque a 3 Fonteinen tem tido
pouca sorte. Em 2009 (mesmo ano em que
expirou o contrato do equipamento de brassagem), a cervejaria enfrentou o que
provavelmente foi a maior tragédia de sua história. O proprietário Armand
Debelder é conhecido por ser um dos produtores mais rigorosos com o controle de
qualidade de suas cervejas, o que o havia levado a tomar uma medida inédita:
instalar um equipamento de climatização em sua cave para controlar a
temperatura das lambics durante toda a sua longuíssima maturação. Ocorre que,
na madrugada de 16 de maio de 2009, o equipamento falhou e a temperatura se
elevou para 60º C na área de refermentação das garrafas. Como resultado, 5 mil
garrafas simplesmente explodiram
durante a noite, e mais 80 mil ficaram imprestáveis. Debelder se recuperou
produzindo um destilado a partir das cervejas deterioradas, e começou a
produzir vários novos produtos para arrecadar dinheiro e recuperar
financeiramente a marca, entre os quais a linha Armand’4, produzida apenas com lambics brassadas dentro da 3
Fonteinen, antes da perda do equipamento produtivo arrendado da Palm.
Um dos novos rótulos lançados nesse contexto foi a 3 Fonteinen Oude Geuze Golden Blend, blendado
uma única vez em 2011. Enquanto uma gueuze regular leva em sua composição
lambics de até 3 anos de idade, o Golden Blend é produzido utilizando também
25% de uma lambic mais velha, de 4 anos de idade (ao lado de proporções
desconhecidas de lambics de um, dois e três anos). O produto é vendido por um
preço muito superior à gueuze convencional (€10-15 na Bélgica, mais que o dobro
da gueuze comum), o que Armand Debelder justifica afirmando que a lambic de 4
anos sofre muitas perdas devido à evaporação ao longo de mais um ano adicional.
Mas eu acredito que boa parte do preço (como no caso de outros rótulos da
marca) se justifique pela necessidade de recuperação financeira da empresa. A
cerveja chegou ao Brasil custando R$ 100 pela meia garrafa (375 ml) – caro, mas
proporcional ao preço na origem, o que nem sempre ocorre no mercado nacional de
lambics. De qualquer modo, o resultado dessa inovação é um predomínio de
sofisticados traços de maturação e envelhecimento no blend, bem como uma suavização
da forte acidez das lambics da marca, deixando o blend mais “redondo”, elegante
e suave ao paladar. Vale a torcida para que a cervejaria incorpore o blend à
sua linha regular por um preço mais acessível.
Aparência: a cor
é um âmbar-alaranjado, talvez um pouco mais escuro do que a gueuze convencional
da marca, bem transparente e com creme impecável – muito alto e fofo, deixa uma
camada muito perene depois de baixar.
Aromas: ela não
tem a potência aromática da gueuze convencional, sobretudo nos aromas animais
(estábulo e couro cru), mais suaves aqui, deixando-a mais “limpa” e menos
rústica. Em compensação, sobressaem-se os traços apimentados, de palha seca,
florais e elegantes notas minerais e de amêndoas cruas denotando o
envelhecimento mais longo. Os ésteres mostram um caráter menos cítrico e mais
de “solvente”, framboesas maduras e limão, mas a baunilha característica da 3
Fonteinen ainda está bem evidente. Pão doce, sálvia, acético e uma lembrança de
salame terminam de compor o enorme caleidoscópio aromático. Em resumo: menos
rústico e animal, o aroma mostra-se menos potente mas permite vislumbrar uma
sutil e sóbria complexidade.
Paladar: a acidez
predomina, mas de uma forma um pouco menos implacável e agressiva do que na
gueuze convencional da marca – parece ter sido “arredondada” pela maturação
mais longa. O amargor também está presente, e sente-se uma suave doçura
secundária no final longo, estruturado e mineral, impecável.
Sensação na boca:
o corpo é mediano devido à estrutura proporcionada pelos taninos evidentes, mas
com textura crocante, mineral e seca como deve ser uma boa lambic. A
carbonatação é altíssima.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
O Golden Blend mostrou algumas características típicas da 3
Fonteinen, como a acidez implacável e os taninos vigorosos, bem como os traços
abaunilhados, advindos do carvalho, que são uma das marcas de Armand Debelder.
O perfil frutado cítrico parece ter sido acentuado em um caráter mais de
“solvente”, mas não desagradável. As principais mudanças trazidas pela
maturação mais longa parecem ter sido uma atenuação na força da acidez (menos
agressiva e mais redonda que na gueuze normal, tornando-a mais elegante) e uma
diminuição na rusticidade animal do aroma, abrindo espaço para um sofisticado
mineral, amendoado e apimentado. Tudo isso converge no sentido de tornar o Golden
Blend menos marcante e impactante, mas mais elegante do que a gueuze
convencional. Cada um tem suas vantagens; mas a verdade é que o preço muito
mais elevado torna o Golden Blend pouco atrativo. No Brasil, por outro lado, a
distorção de preços da importação fez com que ele se tornasse uma opção
factível diante do infladíssimo preço da Oude Geuze convencional da cervejaria.
O experimentalismo incessante da Cantillon
A Cantillon é um dos produtores que mais têm se destacado na
produção de novas receitas experimentais. Além de suas lambics com adição de
frutas pouco convencionais (usando uvas Muscat e Merlot e damascos) e até de
flores de sabugueiro, a cervejaria ainda é uma das únicas que engarrafa uma
lambic sem blendar, como a incrível Grand Cru Bruocsella (da qual falamos aqui).
Também produz lambics de 2 anos, sem blendar, com adição de açúcar e
refermentação na garrafa (a linha Lou Pepe). Além disso, a Cantillon produz uma
lambic intitulada Iris, que segue uma
receita puro-malte e emprega lúpulos frescos (em vez de usar trigo e lúpulos
envelhecidos), e ainda faz uma das lambics mais deliciosamente inusitadas que
já tive a honra de provar: a Cantillon Cuvée
Saint-Gilloise.
A Cuvée Saint-Gilloise foi criada para homenagear o Royale
Union Saint-Gilloise, time de futebol de Bruxelas para o qual a família Van Roy
(proprietária da Cantillon) torce há gerações. A cerveja havia sido
originalmente batizada de Cuvée des Champions, ou seja, “a cuvée dos campeões”,
mas, devido ao fraco desempenho do time nos últimos anos, o termo “champions”
teve de ser forçosamente abandonado. A Cuvée Saint-Gilloise é produzida usando
os mesmos métodos de uma fruit lambic, só que, no lugar das frutas, a
cervejaria usa lúpulos em flor da variedade alemã Hallertauer. A lambic matura
durante dois anos em barris antes de receber a adição de lúpulos em flor, que
permanecem na cerveja durante 3 semanas, fazendo com que ela seja uma espécie
de lambic com dry-hopping! Depois, é blendada com uma lambic jovem e engarrafada,
sofrendo segunda refermentação na garrafa. Como resultado, temos uma cerveja em
que os aromas de base da fermentação espontânea são complementados pelo frescor
floral, cítrico e herbal do Hallertauer, ganhando também um pouco mais de
amargor. Como outros experimentos da Cantillon, é uma cerveja de distribuição
restrita, mas pode ser encontrada no Brasil numa faixa de preços bem salgada,
ali pelos R$ 150 pela garrafa grande. Recentemente veio em chopes, cujo preço
ainda era alto (R$ 35), mas pelo menos permite provar.
Aparência: a coloração
é amarela escura, opaca (provavelmente devido ao “hop haze” advindo da
adição de lúpulo), com creme branco impecável, alto, denso e persistente.
Aromas: uma
piração completa! De cara se sente uma explosão de frescor mentolado, frutado e
cítrico do lúpulo: muita hortelã fresca, raspas de limão, um surpreendente
tutti-frutti perfumado, rosas, um toque apimentado. É muito difícil sentir uma
presença tão complexa e fresca de lúpulos nobres europeus, de fazer inveja a
qualquer IPA. Depois começam a ganham corpo os aromas, mais rústicos, da
fermentação espontânea: animal, couro cru, mofo e mostarda, depois ésteres
frutados lembrando uvas verdes, complementando de forma muito interessante o
frescor do Hallertauer.
Paladar: a acidez
da fermentação espontânea disputa com o delicado amargor do lúpulo (que a torna
um pouco mais amarga que uma lambic tradicional). Ela começa mais ácida e
finaliza na boca com um amargor perene, seco e refrescante.
Sensação na boca: o
corpo é muito leve, facílimo de beber, bem refrescante, com uma textura seca
que combina os taninos da lambic com a adstringência do lúpulo.
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Que surpresa esta lambic com dry-hopping de Hallertauer! A
combinação do frescor lupulado com a rusticidade das Brettanomyces é irresistível. Sabe aquelas IPAs com Brettanomyces que têm sido produzidas
hoje em dia, com um toquezinho animal se insinuando por trás do lúpulo (como a
Mikkeller/Grassroots Wheat is the New Hops)? Esta Cuvée Saint-Gilloise faz algo
parecido, mas mostra os traços animais e terrosos de Brettanomyces com muito mais vigor e força, criando um resultado
ousado e cheio de personalidade que parece misturar o que há de melhor nas IPAs
e nas lambics. A complexidade e o vigor dos aromas lupulados é algo difícil de
se ver em outras cervejas que empregam o Hallertauer. A acidez seca da lambic
se mistura a um amargor que a torna ainda mais refrescante. Fico imaginando
quão interessantes poderiam ser lambics produzidas com outras variedades de
lúpulos ou outras ervas aromáticas!
A história da Oud Beersel, blender autônomo de lambics, é um
testemunho eloquente do tipo de devoção que as cervejas selvagens são capazes
de suscitar. Fundada pela família Vandervelden, a Oud Beersel blendava sua
própria lambic desde 1882 e a vendia em uma café próprio. Em 2002, o produtor
Danny Draps representava a quarta geração da família à frente da Oud Beersel
quando decidiu mudar de ramo e fechar a cervejaria e o café. Uma grande
reviravolta ocorreria por causa de dois jovens fãs da cervejaria recém-graduados
da universidade de Bruxelas, Roland de Bus e Gert Christiaens. Na época, Roland
e Gert foram informados pelo dono do café onde regularmente bebiam a gueuze da
Oud Beersel que aquelas eram as últimas garrafas daquela cerveja, cuja produção
fora descontinuada.
E o impossível aconteceu. Se a sua cerveja preferida está
para fechar, qual a atitude mais racional e sensata a se fazer? Comprar a
marca, claro! Em 2003, eles buscaram formação e qualificação para produzir
cervejas. Para conseguir o financiamento necessário, elaboraram um plano de
negócios que incluía uma tripel produzida sob licença, a Bersalis Tripel, como
elemento que geraria capital de giro. Em 2005, a Oud Beersel reabriu as portas,
e as primeiras garrafas chegaram ao mercado em 2007. O mosto é produzido pela
Boon de acordo com uma receita exclusiva, que emprega lúpulos envelhecidos por
um período menor de tempo, resultando em um amargor ligeiramente mais acentuado
e aromas lupulados perceptíveis, o que é muito raro em lambics. Gert
Christiaens dedicou-se à Oud Beersel como sua opção prioritária de carreira,
mas, para seu colega Roland de Bus, a cervejaria ainda era apenas um hobby.
Contando com “paitrocínio”, Gert conseguiu comprar a parte de Roland em 2007 e
agora é o único responsável pela cervejaria, que hoje produz um volume quase
três vezes superior ao da época da família Vandervelden.
O espírito arrojado de Gert Christiaens logo o levou a um
ambicioso projeto: a produção de uma lambic que passasse pelo método tradicional
de produção de vinhos espumantes desenvolvido na França, na região de Champagne
(que é chamado de método champenoise
quando nos referimos aos espumantes produzidos em Champagne). Se as gueuzes são
frequentemente referidas como “os champagnes da cerveja”, por que não levar a
metáfora ao pé da letra? O que, uma bière brut que é uma lambic? Isso mesmo! Em
2009, a Oud Beersel associou-se a um casa belga produtora de vinhos espumantes
da região de Limburg, chamada Domaine Optimbulles, bem como ao clube de vinhos
Domus ad Fontes. O resultado, lançado pela primeira vez em 2012, é a Oud Beersel Bzart Lambiek.
O primeiro lote da Bzart Lambiek usou como base uma lambic
jovem, de 14 meses de idade, que foi engarrafada com leveduras de espumante e
maturou na garrafa por mais 13 meses. Ao final desse período, passou pelas
etapas de rémuage e dégorgement, que consistem no
congelamento e retirada do depósito de leveduras pelo gargalo, para a obtenção
de uma bebida delicada e cristalina. A Bzart Lambiek não recebeu nada de açúcar
após esse processo, no licor de expedição (adicionado para completar o volume
da garrafa após a remoção das leveduras), da mesma forma como ocorre com as
gueuzes tradicionais e com os espumantes denominados brut nature (expressão que a cerveja ostenta no rótulo). De
produção limitadíssima, é vendida apenas em alguns restaurantes top da Bélgica e em poucas lojas
selecionadas, a preços de champagne. Não espere pagar menos de €20 euros por
uma garrafa. Tive o privilégio de provar uma garrafa da primeira safra, trazida
para mim na mala por um primo.
Fonte:
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Aparência: coloração
dourada clara e muito radiosa, com uma leve turbidez que não era esperada
diante do fato de passar pelo método tradicional, e com creme de volume mediano
e boa permanência.
Aroma: sofisticado,
elegante e cheio de sutileza sem perder em caráter. Notas animais são
presentes, mas não predominam, dando espaço para um amplo perfil de frutas
brancas e cítricas (pêssego, tutti-frutti, limão, damasco). Os aromas de lúpulo
típicos da lambic da Oud Beersel se misturam à refermentação na garrafa para
produzir sensações florais (gerânios, rosas) e apimentadas. As leveduras de
champagne adicionam toques típicos de espumantes, como amêndoas torradas e
torradas integrais. Mel, amêndoas cruas e mineral mostram sua elegante
maturação.
Paladar:
versátil, não tão ácida quanto uma gueuze, nem tão doce quanto uma lambic
jovem. A acidez é apetitosa e se faz acompanhar o tempo todo de uma suave
doçura secundária, conduzindo a um final tendente ao neutro (como ocorre com a
gueuze da Oud Beersel).
Sensação na boca:
o corpo é leve e delicado, com uma gostosa textura cremosa semelhante à de bons
espumantes e com taninos suaves. Facílima de beber, e não se adivinham nem de
longe os 8% de álcool.
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A Bzart Lambiek é uma lambic singularíssima: com acidez mais
contida e com aromas em que se sobrepõem frutas, flores, animal, tostados,
especiarias e mineral, ela transita com naturalidade e versatilidade entre os
universos da lambics, das ales belgas e dos vinhos espumantes e agrada
inclusive quem costuma fazer careta para lambics tradicionais (verdade, eu fiz
o teste empírico!). Já para quem está acostumado com lambics marcantes,
tânicas, ácidas, ela pode parecer um pouco decepcionante, mas é preciso entendê-la
como uma bebida híbrida, singular e inovadora, com uma proposta um pouco
diferente, menos austera e mais versátil e delicada.
A Bzart Lambiek já ganhou uma segunda safra em 2013, junto
com uma irmã: a Bzart Kriekenlambiek, feita com adição de cerejas – essencialmente,
uma kriek lambic que passa pelo método tradicional de produção de espumantes. A
sede de inovação parece estar só crescendo entre os produtores de lambics!
Enquanto isso, em
Flandres...
Ao revisar essa série de matérias sobre lambics, eu me dei
conta de que não comentei uma das cervejas selvagens mais interessantes, e com
melhor custo-benefício, que encontramos no mercado brasileiro (rivalizando com
a Boon Oude Geuze Mariage Parfait nesse quesito). Como se trata também de uma
cerveja inovadora, decidi incluí-la aqui. Quando Michael Jackson, o finado beer hunter, visitou a cervejaria Bavik,
em Flandres, pediu para experimentar a cerveja mais antiga da fábrica, direto
do barril. Tratava-se de uma ale clara, fermentada e maturada longamente no
padrão das Flanders red ales. Ela era usada para blendar com cervejas jovens,
mais escuras, para a produção da Petrus Oud Bruin, uma Flanders red ale bem
amadeirada e terrosa, mais seca do que o habitual para o estilo.
Antigamente, a cervejaria Bavik comprava a cerveja
envelhecida diretamente da Rodenbach para empregar em seu blend. Contudo, à
medida que a produção decaiu, a Rodenbach passou a vender volumes cada vez menores,
obrigando a Bavik a comprar grandes tonéis de carvalho para maturar sua própria
cerveja. A cervejaria adicionou lambic para “condicionar” os tonéis e, com a
microflora devidamente instalada, começou a maturar sua própria cerveja lá. Foi
esta cerveja que Michael Jackson provou lá em 2000. Maravilhado, ele propôs que
a cervejaria engarrafasse aquela cerveja envelhecida sem blendar. A princípio,
o lançamento limitado foi oferecido apenas pelo Clube de Cervejas Raras mantido
por Jackson nos EUA, sob a denominação Petrus
Aged Pale Grand Reserve. Contudo,
a cerveja conquistou os connaisseurs
norte-americanos, o que, para nossa felicidade suprema, convenceu a Bavik a
colocar o rótulo em linha.
A Petrus Aged Pale Grand Reserve é uma Flanders red ale
singular. A começar pelo fato de que ela não é “red”, sendo feita apenas com
malte pilsen e, portanto, tendo coloração clara. Além disso, é generosamente
lupulada (33 IBUs), tornando-se mais amarga que outras do estilo. Por fim, não
é blendada, sendo engarrafada pura depois de 20 meses de maturação em carvalho.
Ela vem a se somar à tendência, recente, de Flanders red ales que não são
blendadas com cervejas jovens. E o melhor de tudo, para nós brasileiros: ela
chega às nossas prateleiras numa confortável faixa de preços, abaixo dos R$ 20
em algumas lojas – ótimo para uma cerveja desse calibre!
Fonte: www.porchdrinking.com
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Aparência: tem
uma coloração amarelada com uma nuance esverdeada, com levíssima opacidade e um
creme de desempenho mediano.
Aroma: a ausência
dos maltes caramelizados dá a esta Flanders red ale um aroma peculiar, mais
próximo daquele de uma lambic. Brilham as notas animais, de couro cru e
estábulo, acompanhado de um forte frutado remetendo a uvas verdes e um toque de
banana. O malte mostra castanhas, e a base mais delicada deixa entrever uma
certa tosta da madeira. Mel, amêndoas cruas e um toque acético denunciam a
longa maturação. Aroma vigoroso, cheio de caráter.
Paladar: a acidez
predomina com intensidade, mas conduz a um final em que a doçura, menos intensa
do que em outras do estilo, a equilibra com sutileza. Percebe-se um amargor intermediário
acentuado para o estilo, que lhe dá pegada. Mais seca que uma Flanders red
tradicional, mas ainda com aquela riqueza de maltes do estilo.
Sensação na boca:
o corpo é leve para mediano, com adstringência tânica perceptível, mas não
exagerada, que complementa seu vigor na boca.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
A Petrus Aged Pale Grand Reserve é uma boa opção, bem
acessível, para quem quer conhecer “mais a sério” o mundo das cervejas
selvagens. Um pouco mais vigorosa do que uma Flanders red ale tradicional, com
malte mais discreto, mas ainda não tão seca quanto uma lambic, e com um custo
bem mais acessível que a torna uma boa opção intermediária, “de transição”
entre os exemplares mais doces e os mais secos. Terá ela inaugurado um novo estilo
das “Flanders pale ales”? O fato é que a Cuvée de Ranke tem uma proposta
razoavelmente parecida com a desta “aged pale”, o que pode sinalizar uma
tendência embrionária.
Com esse raro achado do nosso restrito mercado brasileiro de
cervejas selvagens, encerro esta longa série de matérias. Meu esforço e
envolvimento em pesquisas e leituras só foi superado pela satisfação do
aprendizado que obtive nessa longa viagem, e que espero ter conseguido
transmitir em parte aos meus leitores. Pelo menos, espero que essas matérias
sirvam de inspiração para ajudar a despertar no público brasileiro a
consciência de que existe todo um universo cheio de planetas a explorar no ramo
das cerveja selvagens. Eu ofereço um itinerário: a viagem tratará de oferecer
suas próprias recompensas.
O final desta série também sinaliza uma mudança de perfil
nas postagens deste blog. Meus leitores se habituaram a um formato de matérias
seriadas, com aprofundamento em temas restritos e com um certo caráter
exaustivo. Creio que esta série sobre cervejas selvagens levou esse formato ao
seu limite. A partir de agora, quero voltar a escrever matérias um pouco mais
pontuais, talvez mais acessíveis para o público geral, mas sem deixar de
levantar e explorar questões que sejam instigantes para quem já detém conhecimento
cervejeiro. Talvez eu comece a intercalar postagens nesse formato de “dossiê” com
outras mais curtas, que me permitam registrar e compartilhar preocupações mais
pontuais. Vejamos como funcionará!
Parabéns por essa série, muito elucidativa! Vai deixar saudades mas será uma ótima fonte de pesquisa e consultas. Abracos
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