Pesquise em cinco fontes diferentes, e você corre o risco de
ter cinco formas de entender a separação entre os dois estilos selvagens da
região de Flandres: as Flanders red ales, por um lado, e as Flanders brown ales
ou oud bruin, por outro. A confusão é
tão grande que o guia da Brewers Association simplesmente unifica os dois
estilos sob uma única denominação: “Belgian-style Flanders oud bruin or oud red
ales”. Outras fontes fazem distinção entre os estilos com critérios levemente
diferentes. Sobre as red ales já falamos antes aqui nesta série de matérias
sobre cervejas selvagens. Portanto, agora falaremos sobre suas menos conhecidas
primas, as oud bruin.
Uma questão de
definição
A tripartição do Império Carolíngio no tratado de
Verdun. A fronteira entre as porções rosa e
verde, no extremo norte, é o rio
Escalda.
Fonte: http://commons.wikimedia.org |
Num primeiro nível, a fronteira que separa as Flanders red
ales das brown ales é geográfica, e localiza-se na cidade de Oudenaarde. Mais
especificamente, no rio Escalda (em flamengo, Schelde). Ocorre que o Escalda é o marco divisório entre as duas
províncias de Flandres Ocidental (domínio das Flanders red ales) e Flandres
Oriental (lar das oud bruin). O Escalda
foi um importante marco geopolítico da região pelo menos desde o final do
Império Carolíngio em 843, quando o tratado de Verdun estabeleceu no rio a
fronteira entre a Francia Ocidental e a Francia Central. O Escalda continuou
exercendo papel demarcatório por muito tempo, demarcando a fronteira entre o
reino da França e o chamado Sacro Império Romano-Germânico. Como se poderia
prever, a influência latino-francesa do lado ocidental e a influência germânica
do lado oriental acabaram por influenciar a produção de cerveja, fazendo com
que o uso do lúpulo e de modernas técnicas de produção, mais semelhantes às das
lagers alemãs, se disseminassem com mais rapidez no lado oriental de Flandres.
O resultado é que, enquanto as Flanders red ales têm um
caráter selvagem mais acentuado, bem acético e animal, as oud bruin mostram-se mais limpas, com acidez mais suave e perfil de
maltes mais acentuado. O método produtivo guarda muitas semelhanças com as Flandres
red ales: um mosto pouco lupulado, com maltes escuros, é fermentado por uma
cultura mista que inclui leveduras do tipo Saccharomyces
cerevisiae (ou seja, da variedade ale) e bactérias láticas dos gêneros Lactobacillus e Pediococcus. Aliás, na mais tradicional produtora de oud bruin, a Liefmans, a cultura
original deriva daquela obtida com a Rodenbach, tradicional produtora de Flandres red ales. Ou seja, Flanders red e browns
compartilham boa parte de seu DNA. A cerveja fermenta por uma semana,
normalmente em tanques abertos, e depois é maturada por até um ano, período
durante o qual se torna mais ácida. A porção envelhecida é então blendada com uma
ale jovem antes de engarrafar, exatamente como se faz com as Flanders red ales.
Então o que faz com que sejam diferentes? O segredo está em
como a cerveja evolui durante a maturação. Derek Walsh considera que o estilo
pode ser maturado em madeira; contudo, para o guia do BJCP e para Jeff Sparrow,
é distintivo das oud bruin a
maturação em tanques de aço inox. E por que isso a torna tão diferente? Ora,
lembremo-nos de que a cultura mista com a qual se fermentam as cervejas
selvagens de Flandres não inclui Brettanomyces. No caso das Flanders red
ales, as Brettanomyces habitam os
tonéis de madeira, e é durante a maturação que a cerveja sofre sua influência
crucial. Tanques de aço inox, por sua vez, são ambientes cuja rigorosa assepsia
e ausência de porosidade impedem a proliferação e infiltração de Brettanomyces. Como resultado, a cerveja
não desenvolve traços associados a estes microorganismos – nomeadamente, os
aromas animais (estábulo, couro cru) e a superatenuação (consumo de quase todos os açúcares residuais). Secundariamente,
também não adquirem aromas e sabores amadeirados e abaunilhados, comuns nas
Flanders red ales. Por fim, não sofrem micro-oxigenação, minimizando a produção
de ácido acético.
Os tanques de inox onde a Liefmans matura suas
oud bruin comportam impressionantes 700
hl.
Fonte: belgianbeerspecialist.blogspot.com |
Isso significa que as oud
bruin, em seu conjunto, parecem menos “selvagens” que suas primas
ocidentais. Não têm uma pegada acética perceptível (que nas Flanders red
frequentemente remete a vinagre balsâmico) e não exibem os aromas animais tão
associados às cervejas selvagens. Como resultado, os sabores caramelados do malte
se destacam, e os ésteres pendem decisivamente para o lado das frutas passas
(uvas passas, ameixas, figos etc.). Os traços de oxidação tornam-se mais limpos
e licorosos. De fato, ao beber uma oud
bruin, às vezes se tem uma sensação mais semelhante à de uma dubbel do que aquela
sensação “selvagem” a que nos habituamos ao beber Flanders red ales e lambics.
Uma oud bruin especial
Atualmente, tornou-se difícil encontrar cervejarias que
ainda façam cervejas que seguem fielmente o estilo. A maioria das cervejarias
na região oriental de Flandres fechou ao longo do século XX, e poucas das
remanescentes mantiveram a tradição. A maior e mais famosa delas é a Liefmans,
que pertence ao grupo Duvel-Moortgat desde 2007. Hoje em dia, as oud bruin da Liefmans são brassadas na
fábrica da Duvel, em Breendonk, e depois transportadas para a antiga fábrica em
Oudenaarde, às margens do rio Escalda, onde são fermentadas, maturadas e
blendadas.
Em sua linha, destaca-se a Liefmans Goudenband (a pronúncia é algo como "rudenband"), uma versão mais potente do estilo, com 8% de
álcool e com vocação para guarda. As oud
bruin tradicionais são cervejas de teor alcoólico mediano, em torno dos 5%,
para se beber cotidianamente, e a própria Goudenband costumava ter 5.2% antes
de ter sua receita alterada para a atual, em 1992. Hoje, mostra-se uma cerveja
intensa, com um atrevido perfil adocicado e licoroso que se equilibra
admiravelmente com a acidez do estilo. A cerveja costumava vir ao Brasil
antigamente, por preços bastante salgados, mas hoje em dia não tem sido mais
importada. O resultado é que não temos nenhuma – repito, nenhuma – representante fiel do estilo no mercado nacional. Agora
que a gigante Interfood adquiriu os direitos de importação sobre a linha da
Duvel-Moortgat, quem sabe não comecem a trazer novamente este belo rótulo?
Estilo: oud bruin / Flanders brown ale
Teor alcoólico:
8%
Aparência: bela
coloração entre o ameixa e o castanho, escura e convidativa. O creme é
volumoso, de persistência mediana.
Aromas: destaca-se
de cara o equilíbrio entre o malte (açúcar queimado e caramelo bem marcantes) e
os ésteres frutados (ameixas secas e maçãs vermelhas), tudo bastante intenso e
impactante. Couro curtido e molho de tomate, ao fundo, lhe dão aquele sóbrio ar
de “envelhecido” que se espera de uma cerveja de guarda. Nada dos aromas
animais associados às Brettanomyces –
nem adianta sair bradando que sentiu “estábulo” e “cobertor de cavalo” só para
mostrar que entende de cervejas selvagens.
Paladar:
predomina uma doçura muito intensa, lembrando licor, contrabalanceada por uma
acidez lática bem perceptível, mas suplementar. Não espere uma acidez
impactante. O amargor é suave. Em nenhum momento perde aquela sensação
agradável, bem belga, de “cerveja doce”.
Sensação na boca:
volumosa e opulenta, com textura licorosa que impõe respeito. A carbonatação é
alta, e percebe-se alguma adstringência, mas menos do que a maioria das
Flanders red ales, maturadas em madeira. O aquecimento alcoólico é bem
perceptível, mas não propriamente exagerado.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
A combinação entre a acidez lática, a doçura licorosa e os
traços oxidativos lembra alguns vinhos fortificados, como os da Madeira,
fazendo com que a Goudenband tenha vocação para digestivo, ao final de uma
refeição. É uma experiência muito interessante para fãs de cervejas selvagens,
na medida em que desvincula a acidez dos aromas rústicos, animais, produzidos
pelas Brettanomyces. Lembra um pouco
a sensação de uma barleywine ácida.
É uma pena que já não tenhamos nenhuma oud bruin no mercado brasileiro – que ainda engatinha quando o
assunto é a selvageria cervejeira. Aí talvez alguns de vocês retruquem: “Mas eu
vi no empório uma oud bruin outro dia
mesmo!” Temos algumas cervejas que estampam a expressão no rótulo (a exemplo da
Bacchus Vlaams Oud Bruin, que analisamos anteriormente, mas que são maturadas
em carvalho, o que faz com que, tecnicamente, sejam classificadas como Flanders
red ales, exibindo aquele distintivo traço animal das Brettanomyces. E não é só no Brasil que isso ocorre. Devido à sua
maior sutileza nos traços “selvagens”, as oud
bruin têm ficado relativamente negligenciadas em favor das Flanders red
ales mesmo nos países que têm se interessado por produzir cervejas selvagens,
como os EUA. Estaríamos assistindo, talvez, ao lento e silencioso crepúsculo de
um estilo? É o que o guia da Brewers Association sinaliza, ao unir as oud bruin às suas primas ocidentais.
Torçamos para que os sóbrios encantos deste estilo algo injustiçado sejam
redescobertos e revalorizados antes que ele se torne pouco mais que uma
memória!
Na próxima parte desta matéria, acabaremos de abordar as
cervejas selvagens de Flandres falando sobre as versões com frutas. E você
achava que toda fruit beer ácida era lambic? Não perca!
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