Já falei anteriormente que, se você correr para o empório
mais próximo e pedir uma indicação de fruit lambic, pode acabar saindo com uma
fruit beer xoxa, teoricamente feita “para o paladar feminino” (por homens que
subestimam profundamente suas mulheres) e que não tem nada de selvagem – como
uma Floris ou uma Mongozo. OK, talvez isso seja um exagero – se você for
atendido por alguém um pouco mais qualificado, não será vítima de um erro tão grosseiro.
Mas mesmo profissionais com conhecimento sobre cervejas (já vi ocorrer com
gente gabaritada...) podem cometer um outro equívoco semelhante: chamar de
fruit lambic qualquer cerveja selvagem ou sour ale com frutas.
“Sour ales? Pois não! Estão todas naquele
cantinho
sujo que ninguém olha lá atrás!”
Mas nem por isso são todas iguais entre si...
Fonte:
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Mas não é tudo a mesma coisa? De jeito nenhum! No misterioso
e encantador universo das cervejas selvagens da Bélgica, não são apenas os
produtores de lambics que adicionam frutas às suas receitas. Também as
cervejarias de Flandres, produtoras de Flanders red e brown ales, usam frutas
para criar variações de suas cervejas. E as diferenças entre essas cervejas com
frutas de Flandres e as lambics com frutas não podem ser subestimadas! A
degustação de dois rótulos de Flandres – que felizmente temos no Brasil de
forma bem acessível, naquela faixa ainda suportável dos R$ 20-25 pela garrafa pequena – nos dará a oportunidade de explorar melhor a questão.
Malte x Bretta
Vamos retomar algumas informações importantes que já abordamos
aqui nesta série de matérias, de forma a ilustrar melhor essas diferenças. Como já vimos, uma das características das lambics maduras é a superatenuação,
causada pelo longo trabalho fermentativo das leveduras selvagens do gênero Brettanomyces, que consumem virtualmente
todos os açúcares (tanto do malte quanto da fruta) e deixam a cerveja sequinha,
sequinha, com corpo de modelo de lingerie. Se uma lambic de frutas é adocicada,
é porque recebeu adoçantes artificiais e/ou açúcar depois de ser pasteurizada.
O produto tradicional nunca é doce.
As Flanders red/brown ales já tem um perfil diferente. Em
primeiro lugar, os maltes tostados da receita conferem sabores caramelados e
achocolatados inexistentes nas lambics. Em segundo lugar, Flanders red e brown
ales resultam de uma mistura entre cervejas envelhecidas, mais secas, e
cervejas jovens, ainda cheias de doçura de malte. Como resultado, tanto a doçura
quanto o sabor do malte podem ser sentidos de forma muito mais clara numa
cerveja de Flandres, em comparação com uma lambic. Sabe aquela doçura que, nas
lambics comerciais, é adicionada artificialmente (e normalmente desequilibra a
cerveja)? Pois é, numa selvagem de Flandres, ela é o resultado natural do blend
e mostra-se mais harmônica e agradável. Flanders red e brown ales com frutas,
portanto, são mais doces do que fruit lambics tradicionais. Essa doçura
equilibra a acidez e faz com que elas “assustem” menos o paladar dos
consumidores desabituados com cervejas selvagens.
Também os aromas frutados mostram-se distintos nos dois
casos. As lambics têm aromas frutados mais frescos do que a maioria das ales
belgas – no lugar das tradicionais bananas, ameixas, maçãs vermelhas ou cerejas,
entram as uvas verdes, limão, maracujá, abacaxis frescos. Até por serem mais
delicados e sutis, esses aromas normalmente acabam encobertos pelo peso da
fruta adicionada nas lambics com frutas. Já as Flanders red e brown ales ainda
têm uma forte presença dos aromas frutados “clássicos” das ales fortes belgas,
o que dá outra cara ao produto final. As cervejas de Flandres, apesar da pegada
selvagem, ainda têm um pouco da cara das ales fortes belga “de abadia”.
Vejamos na prática como isso funciona, a partir de duas
cervejas selvagens de Flandres feitas com adição de cerejas: a Verhaeghe Echt
Kriekenbier (uma Flanders red ale, da porção ocidental de Flandres) e a
Liefmans Cuvée Brut (uma Flanders brown ale, da parte oriental). Ficará claro
como elas não são a mesma coisa que uma kriek lambic.
Aparência:
belíssima e profunda coloração, entre o rubi e o roxo, brilhante e com bom
creme. Muito convidativa na taça.
Aromas: surpreendentemente
assertivos e complexos, com a fruta (cereja) convivendo equilibradamente com o
malte adocicado (caramelo e açúcar queimado), uma rusticidade de fermentação
espontânea (terroso, vinagre balsâmico, acetona, suaves traços animais), uvas
roxas e uma impressionante e encantadora presença de amêndoas cruas e canela.
Paladar: ela
entra intensamente ácida na boca, mas logo se abre uma doçura de malte,
finalizando com doçura levemente predominante sobre a acidez.
Sensação na boca:
o corpo é mediano e os taninos são perceptíveis. O líquido tem uma textura
levemente terrosa na boca (mas não seca), como a Flanders red ale da cervejaria.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
A Echt Kriekenbier é produzida a partir de um blend em que
entram Flanders red ales de diferentes idades (partes jovens, com um e com dois
anos de envelhecimento em carvalho), maturadas com adição de cerejas frescas da
região de Sint-Truiden. Impressiona pela forma como a fruta, muito bem
adicionada ao conjunto, consegue aparecer de forma clara sem ofuscar a
rusticidade assertiva da cerveja de base, com aquele toque balsâmico e químico
que sentimos, por exemplo, na Duchesse de Bourgogne. Talvez por serem usadas
apenas cerejas frescas e inteiras na receita, elas também adicionam uma
encantadora complexidade aromática mineral e de especiarias. Excelente exemplo
de uma Flanders red ale com cerejas, em que a fruta, a rusticidade e o malte
caminham de mãos dadas.
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Aparência: coloração
vermelha viva e escura, com nuances rosadas, de boa transparência e bom creme
rosado.
Aromas: tem boa
complexidade de aromas terciários e de maturação, mas o foco mesmo é o dueto
afinado entre as cerejas (vívidas, lembrando também morango maduro) e o malte,
acastanhado e amadeirado. Baunilha, amêndoas cruas e toques animais indicam a
longa maturação, e toques florais e herbais (pinheiro) a complementam.
Paladar: ela
entra doce na boca, mas depois mostra uma forte acidez mais seca. A doçura
retorna após engolir, deixando um amigável final adocicado.
Sensação na boca:
o corpo é leve para mediano, e ela é bastante seca, muito mais do que a oud bruin da cervejaria, com
adstringência mediana de taninos.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
A Liefmans Cuvée Brut é uma cerveja com cerejas que usa como
base a oud bruin produzida pela
Liefmans. Antigamente, esta cerveja usava a corpulenta Goudenband, mas seu teor
alcoólico acabava ficando alto demais após a fermentação das frutas, de modo
que o álcool da cerveja-base foi diminuído. Ela resulta de um blend entre
tanques da oud bruin com cerejas (13 kg
de frutos e 200 ml de suco a cada 100 litros de cerveja), maturados longamente
durante 18 a 36 meses, o que faz com que seja bem mais seca que a Goudenband,
por exemplo, ressaltando sua apetitosa acidez lática. Como a cerveja-base é uma
oud bruin, os traços selvagens são um
pouco menos marcantes no aroma, deixando em primeiro plano o malte e a fruta
(cujo aroma é ressaltado pelo uso de suco, além da fruta inteira). É
interessante notar que, apesar de não haver maturação em madeira, senti
delicados traços animais de Brettanomyces
(atípicos nas oud bruin puras),
provavelmente trazidas pelas cascas das cerejas. A cervejaria ainda produz uma
versão mais comercial, adocicada e com sucos de outras frutas vermelhas.
Trata-se de duas cervejas bem diferentes entre si, ambas
ótimas a seu modo. Enquanto a Echt Kriekenbier se mostra mais marcante, pesada
e exótica em seus aromas selvagens, a Liefmans Cuvée Brut tem mais delicadeza, alegria
e um aroma mais limpo, em que a fruta brilha mais ao lado do malte. Mas o que
me interessa aqui não é destrinchar as diferenças entre as duas, mas sim
ressaltar de que forma ambas, conjuntamente, se afastam das clássicas lambics
de frutas. A despeito de suas diferenças, ambas possuem uma doçura natural e
espontânea, ausente nas lambics, para amenizar o impacto da acidez, e trazem
mais aromas e sabores lembrando ales belgas, como caramelo, frutas maduras,
apimentado etc. Além dessas semelhanças naturais com outras cervejas belgas,
elas ainda possuem a presença familiar e reconfortante das cerejas.
Por todos esses motivos, parecem menos “esquisitas” aos
olhos de um bebedor que não esteja familiarizado com cervejas selvagens, e
constituem um ótimo ponto de partida para a longa jornada para dentro do “dark
side” – ops, digo, para os injustiçados encantos da selvageria cervejeira.
Lembre-se delas da próxima vez que alguém questioná-lo, com honesta
perplexidade, como é que você pode realmente gostar dessas cervejas azedas!
Estou me deliciando com seus ensinamentos, tenho acompanhado a algum tempo e na medida do possivel venho experimentando as cervejas por voce avaliadas.
ResponderExcluirSeus comentarios sobre a Deus no Brejas beira a algo escrito por Camões. Parabéns.
Olá! Agradeço os elogios, e espero que você tenham experiências tão boas com as cervejas indicadas no blog quanto eu tive ao escrever os textos! Quanto ao nosso amigo lusitano, é uma pena que ele provavelmente não bebesse tanta cerveja quanto vinho, não é? Quem sabe não nos brindaria com alguns versos sobre Ninkasi, em vez de falar apenas em Baco? :-D
ResponderExcluirAbraços,
Alexandre A. Marcussi