Até agora, nesta série de matérias sobre cervejas selvagens,
temos falado praticamente (para não dizer exclusivamente) sobre a Bélgica, o
paraíso dos amantes de sour ales. Mas não foi só lá que existiu uma tradição de
cervejas selvagens. Um dia no passado, toda
cerveja era fermentada espontaneamente e era mais ou menos azeda – ou seja,
toda cerveja era “selvagem”, de um modo ou de outro. Foi na Idade Média que começou
o hábito sistemático de recolher a espuma que se formava no topo das cervejas
em processo de fermentação, e que consistia basicamente de leveduras do gênero Saccharomyces. Essa espuma era então
adicionada ao mosto recém-produzido para acelerar a fermentação, dando origem à
prática de inocular fermento e criando aquilo que hoje se denomina ales (cervejas de fermentação no alto).
As cervejas de fermentação espontânea de outrora foram sendo gradualmente
substituídas pelas novas ales. Mas
será que só na Bélgica elas chegaram aos nossos dias?
Como quase todas as invenções da humanidade, as
ales
devem ter surgido de uma ideia de jerico. Ou você
realmente pensaria em
jogar essa espuma nojenta
na sua cerveja recém-brassada?
Fonte:
|
É verdade que a Bélgica tem uma tradição histórica de sour
ales mais forte que qualquer outra parte do mundo, tendo perpetuado e
desenvolvido estilos como as lambics, Flanders red ales e oud bruin - já falamos de todas estas aqui.
Mas, mesmo na ultraconservadora Alemanha, berço das lagers e da lei de pureza
da Baviera de 1516, certos estilos selvagens sobreviveram até a modernidade
como remanescentes excêntricos de um tempo passado. Uma dessas excentricidades
é um raro estilo conhecido como Gose,
composto por cervejas de trigo caracterizadas pela alta acidez e pela adição de
sal marinho e sementes de coentro. As Gose são tão excêntricas que nem sequer
possuem um verbete próprio no bastante completo Oxford Companion to Beer, muito embora sejam reconhecidas pelo guia
de estilos da Brewers Association.
Uma breve história do
estilo
As Gose não são um estilo isolado. Elas são um dos ramos de
uma grande família de cervejas de trigo ácidas outrora produzidas no norte da
Europa, numa faixa que se estendia dos Países Baixos até a região de Berlim. Na
Bélgica, lambics e witbiers são alguns dos desenvolvimentos mais modernos desse
grande grupo. Na Alemanha, além da Gose, ainda existem até hoje as Berliner
Weisse, cervejas de trigo do norte do país, que se diferenciam das clássicas Weissbiere
da Baviera pela alta acidez lática. Antigamente, um estilo especialmente
disseminado eram as Breyhan ou Broyhan, cervejas de trigo ácidas
originárias da região de Hannover (no século XVI), e que podiam ser encaradas
como variações da Altbier produzidas com trigo. É provável que a Gose tenha surgido como uma variação da Broyhan.
Antigo rótulo de uma Broyhan de Hannover.
Fonte:
|
O nome “Gose” (que se pronuncia de forma notavelmente
semelhante a “gueuze”), a fermentação lática, o uso do trigo na receita, tudo
isso nos faz pensar imediatamente em um parentesco direto entre a Gose de
Leipzig e as lambics engarrafadas conhecidas como gueuze. Contudo, uma
derivação etimológica direta é improvável. O nome Gose provavelmente advém do
riacho de Gose, na cidade de Goslar, onde o estilo se desenvolveu provavelmente
ainda durante a Idade Média. As Gose se tornaram populares na cidade de Leipzig
e, em 1800, eram consideradas como uma espécie de “estilo oficial” da cidade,
de forma que começaram a ser produzidas lá mesmo.
As Gose nunca foram cervejas exatamente populares, nem mesmo
em Leipzig. Eram complicadas para se produzir e vender, já que precisavam ser
consumidas com muita rapidez antes de estragarem, e atingiam preços mais altos.
Uma garrafa de Gose podia facilmente estragar e virar vinagre em apenas 3
semanas. O século XX trouxe o golpe de misericórdia: depois de uma interrupção
temporária da produção da Gose durante a II Guerra Mundial, seu público
declinou irreversivelmente. O último lote foi produzido em 1966. Todos os
produtores fecharam as portas ou foram comprados por grupos maiores,
desinteressados na produção de uma especialidade regional tão complicada. Para
piorar, perderam-se todas as anotações contendo os métodos tradicionais de produção
da Gose.
O estilo teria se perdido nos anais da história cervejeira não
fosse o entusiasmo revivalista de Lothar Goldhahn, que decidiu voltar a
fabricar o estilo depois de revitalizar o Ohne
Bedenken, um dos mais tradicionais bares de Leipzig que serviam a Gose nos
tempos áureos. Ele conseguiu contatar um antigo funcionário de uma cervejaria produtora
de Gose, que ainda tinha consigo anotações a respeito dos métodos de produção.
Como não havia estrutura em Leipzig para recriar a receita, ele buscou uma
parceria com a Schultheiss, uma
produtora de Berliner Weisse localizada em Berlim. O primeiro lote de teste foi
produzido em 1985, e a produção comercial iniciou-se no ano seguinte. A Gose
havia renascido das cinzas!
A Rittergutsbrauerei Döllnitz,
tradicional cervejaria
do século XIX,
era a última produtora de Gose de
Leipzig quando foi fechada
durante a II Guerra Mundial.
Fonte:
|
Seguiram-se várias dificuldades enfrentadas por Goldhahn
para continuar fabricando sua Gose sob licença, mas a mensagem havia sido dada.
Hoje em dia, Leipzig conta com duas cervejarias produzindo regularmente o
estilo: a Bayerischer Bahnhof e a Ernst Bauer. Mais importante que isso: a
Gose ultrapassou as fronteiras de sua região natal e ganhou o gosto de
cervejeiros contemporâneos, sobretudo nos EUA, que reinterpretaram o estilo,
transformando-o numa bebida de verão, mais leve, mais refrescante e menos “selvagem”
que o estilo original.
Características do
estilo
Como ocorreu com todos os estilos cervejeiros, a Gose passou
por várias transformações durante os vários séculos de sua história. Registros do
século XVIII mostram que, nessa época, as Gose ainda não recebiam adição de
fermento, sendo produzidas por um método de fermentação espontânea
possivelmente análogo ao das lambics belgas. É provável que a cerveja fosse
extremamente ácida e tivesse uma presença considerável de microorganismos
nocivos ligados à deterioração de alimentos (como as enterobactérias). Uma
enciclopédia de 1773 descreve a Gose como tendo um gosto doce a princípio, e
depois como o do vinho (ou seja, ácido), e ressalta suas propriedades laxativas
– o que é um possível indício de considerável presença enterobacteriana.
No século XIX, a cerveja já passara a ser inoculada,
recebendo inclusive a adição de bactérias láticas para desenvolver seu gosto
ácido. Além disso, recebia adições de sal marinho e sementes de coentro – por ser
considerada uma especialidade regional, a Gose não segue as diretrizes da lei
de pureza da Baviera. O método e momento precisos de inoculação das bactérias
eram um dos segredos mais bem-guardados da produção. A cerveja fermentava
brevemente em barris e era vendida aos cafés e bares ainda antes de finalizar a
fermentação (portanto, sem a longa maturação que caracteriza os estilos
selvagens belgas). Daí se explica uma diferença crucial entre a Gose e todas as
lambics: enquanto estas desenvolvem um acentuado perfil de Brettanomyces (aromas animais) advindos de longa maturação em
madeira, a Gose era finalizada antes que as Brettanomyces
pudessem se desenvolver a ponto de influenciar decisivamente a cerveja. Ela
mantinha certa doçura residual e não desenvolvia os aromas animais de leveduras
selvagens.
A Bayerischer Bahnhof exemplifica o
formato
tradicional da garrafa de Gose.
Fonte:
|
Assim que o barril parava de espumar, a cerveja era envasada
em peculiares garrafas de vidro, de gargalo estreito e comprido. O inusitado
formato não era fortuito: como as garrafas não eram tampadas, o gás carbônico
da fase final da fermentação escapava para o ar e a espuma (composta por leveduras)
extravasava pela boca da garrafa. Depois de seca e solidificada no estreito
gargalo, a espuma formava uma espécie de “rolha natural”, que retinha apenas
uma levíssima carbonatação residual. A cerveja pronta mantinha uma refrescante
acidez, reforçada pelo aroma fresco das sementes de coentro, com certa doçura
de malte e com uma presença de sal para equilibrá-la.
Gose tradicionais são raríssimas hoje em dia. Produzem-se
duas em Leipzig, e as inventivas cervejarias norte-americanas trataram de fazer
sua reinterpretação, transformando-as numa espécie de “sour ale light”, menos
ácida e menos impactante do que as cervejas selvagens de inspiração belga.
Algumas versões apostam mais no sal e nas sementes de coentro, com a acidez
ocupando um papel secundário, apenas para reforçar a refrescância. O mercado
brasileiro passou a receber dois rótulos do estilo no ano de 2013 –
curiosamente, nenhum dos quais é alemão ou norte-americano. Um deles é produto
nacional: trata-se da Gose produzida pela cervejaria Abadessa, do RS, em
parceria com o cervejeiro alemão Günther Thömmes. Ela teve distribuição
restrita aqui em São Paulo e, infelizmente, eu não tive a chance de prová-la.
O segundo rótulo que temos no Brasil é holandês: a De Molen Mühle & Bahnhof Barrel Aged,
produzida em parceria com Matthias Richter, mestre-cervejeiro da cervejaria
Bayerischer Bahnhof, especializada em Gose. O nome, bem à moda da De Molen, une
os símbolos das duas cervejarias: o moinho (Mühle, em alemão), e a estação
ferroviária (Bahnhof). Se uma Gose tradicional já é bastante rara, esta é
única: ela se apresenta como uma “imperial gose”, o que equivale a dizer que é
uma interpretação com mais álcool do estilo, atingindo 9.2% ABV. A mera leitura
do rótulo já nos permite inferir outras particularidades de seu método de
produção, em relação às Gose tradicionais. Em primeiro lugar, ela recebe a
adição direta de ácido lático, em vez de uma cultura de bactérias láticas.
Portanto, deve ser fermentada normalmente e depois acidificada de forma
artificial. Além disso, é maturada em barris de madeira, não sei durante quanto
tempo – certamente não o bastante para desenvolver um perfil de Brettanomyces, mas o suficiente para
absorver aromas e sabores oriundos da madeira.
Aparência: a
garrafa verte um líquido cristalino de belíssima cor de mel queimado,
semelhante a conhaque. Não há creme, apenas uma leve carbonatação que forma uma
fugaz névoa frisante, semelhante à de um vinho verde.
Aromas: diferente
de tudo o que eu já tinha provado antes. Bastante acidez volátil no nariz, e um
aroma que mistura traços de malte doce (caramelo, castanhas, mel), frutas
maduras (com destaque para uvas passas brancas, damasco seco e algo de banana e
tutti-frutti) e toques amadeirados muito sólidos, lembrando amêndoas doces,
baunilha e madeira. Há uma evidente licorosidade lembrando rum e um inusitado
aroma lembrando cloro. As sementes de coentro aparecem discretas. Percebe-se
claramente a oxidação com um aroma químico que remete a plástico, não de todo
agradável. Pela sua licorosidade e doçura, lembra uma espécie de mistura entre
um vinho do Porto branco e uma Belgian dark strong ale.
Paladar: acidez e
doçura são acentuadas, com forte salgado e praticamente sem amargor. Há uma
intensa acidez inicial que dá espaço à doçura do malte e depois termina num
final intensamente ácido e salgado, perene, um pouco “quente”, “duro” e
incômodo – possivelmente devido à acidificação artificial da cerveja.
Sensação na boca:
o corpo é bastante intenso, ao mesmo tempo bem licoroso e cremoso, e
intensificado pela adição de sal na receita, sem nenhuma carbonatação. O
aquecimento é bem perceptível, com ares de licor.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
Cerveja absolutamente peculiar. Daquelas que, mesmo depois
de já ter tomado mais de mil cervejas distintas, você pode abrir com a certeza
de que vai beber uma coisa diferente de tudo o que já conhece. A forte acidez
lática convive com uma doçura e um perfil licoroso de dark strong ales e que
lembra vinhos fortificados. A não ser pela acidez, não se parece quase em nada
com uma lambic, pois a doçura é acentuada e não se notam os traços animais
típicos das Brettanomyces, que dão
lugar a aromas de frutas passas claras. Provavelmente não reflete o caráter de
uma Gose alemã tradicional, mas é um daqueles experimentos que estendem (ainda
mais) os limites daquilo que nós podemos entender por cerveja. Uma pena que o
preço pelo qual chegou ao Brasil (em torno de R$ 80-90 a long neck) não ajude
em nada.
Cervejas selvagens já
não são exatamente os estilos mais comuns do mundo. E as Gose são ainda mais raras
e excêntricas dentro de uma família já meio “alternativa”. Apesar disso, a De
Molen nos mostra que elas não apenas podem ter lugar no cenário moderno, como
podem ainda servir de base para novos e deliciosos desenvolvimentos!
A Muhle e Bahnhof é bem dificil de se encontrar , mas com certeza,encontrando, com vai ser degustada. Parabens Alexandre, mais um belo artigo...
ResponderExcluirDe acordo com algum blog que anunciou o lançamento das De Molen no Brasil (acho que foi o All Beers), apenas uma caixa deste rótulo veio ao Brasil. Não sei se é verdade. Em todo caso, como se trata de uma cerveja muito cara, e de um estilo que não vai agradar todo mundo, acredito que ela ainda não esteja esgotada. Se você for de São Paulo, lembro de tê-la visto para vender no Empório Alto dos Pinheiros há pouco mais de um mês.
ExcluirAbraços,
Alexandre A. Marcussi
Tomei uma Morte Subita Umblended on Tap em Bruxelas e realmente ela é bem dificil, mas é otima,
ExcluirAdoro cervejas exóticas, e principalmente com muita personalidade.
Continuo contando com suas dicas (inclusive qual a sua De Molen preferida...).
Sou de São João del Rei ;MG e a maioria das minhas compras são online.
A De Molen é realmente uma cervejaria de exceção?
Segue um abraço,e aproveitando a oportunidade um grande natal para você. Sucesso e saúde,Ricardo
Olá, Ricardo,
ExcluirAinda pretendo falar sobre lambics puras (unblended) aqui no O Cru e o Maltado, então fique por aí! :-) Infelizmente, quando fui ao Mort Subite, eles não tinham a lambic unblended, apenas a gueuze tradicional (sur lies), sobre a qual já falei aqui.
Não provei toda a linha da De Molen que veio ao Brasil, e nem mesmo uma grande quantidade de rótulos, então fica complicado falar em uma "favorita". Sei que gostei bastante da Hel & Verdoemenis (uma das melhores Russian imperial stouts que já tomei) e das suas versões barrel-aged. Até agora o nível de qualidade dos rótulos da De Molen não tem deixado a desejar para mim, mas os preços estão altos demais no Brasil. Vale mais a pena comprar na Europa.
Agradeço os votos de natal e desejo-lhe o mesmo!
Abraços,
Alexandre A. Marcussi