Na última parte desta matéria, tivemos a oportunidade de
fazer um panorama dos métodos de produção e das características sensoriais das
Flanders red ales, cervejas selvagens típicas do norte da Bélgica que, por
misturarem características de ales com traços de acidez e Brettanomyces, costumam ser uma ótima primeira aproximação ao
universo das cervejas selvagens para paladares menos acostumados. Todas as
cervejas do estilo são produzidas usando o mesmo tipo de fermentação mista e
maturação em madeira, mas suas características variam muito conforme os tempos
de maturação e as proporções usadas para compor o blend final.
É o que veremos na prática a partir da comparação de sete
cervejas do estilo. As cinco primeiras são representantes mais fiéis do estilo,
com teor alcoólico mediano e obtidas por meio da mistura entre cervejas jovens
e envelhecidas, em diferentes proporções. As duas últimas – infelizmente
indisponíveis no Brasil – são versões mais fortes, longamente maturadas em
carvalho, sem mistura com cervejas jovens, e nos mostram quão ousadas podem ser
as cervejas de Flandres.
Fonte: belgianbeershrimper.wordpress.com |
A cervejaria Rodenbach é a maior referência mundial no
estilo, e foi dela que se originou a cultura mista de leveduras e bactérias
atualmente empregada pela maior parte dos produtores de Flanders red ales,
donde se pode dimensionar sua importância histórica. A cervejaria vende cinco
versões de sua cerveja, dentre as quais a Rodenbach (também denominada “Rodenbach
Classic”) é a mais simples e amena. Composta a partir de um blend em que entra
um quarto de cerveja envelhecida (por dois anos) e três quartos de cerveja
jovem, mostra predomínio das características maltadas, tostadas e frutadas da
ale fresca. Caramelo, castanhas e tostado unem-se a notas de morango maduro,
uva roxa e pimenta-do-Reino. Ao fundo, algum animal e caprílico denunciam as Brettanomyes, enquanto os tonéis
imprimem um tom levemente amadeirado e uma sutil baunilha que reforça a
percepção dos morangos. Ela começa medianamente ácida na boca, mas logo abre
uma envolvente doçura maltada que se prolonga no final. O corpo é médio, com
textura é cremosa. Mantém-se suave, de paladar muito acessível, sem perder
completamente a complexidade da maturação. Clique aqui para ver a avaliação
completa.
Fonte: www.boozehund.com |
A “Grand Cru” é o segundo blend clássico da Rodenbach, com
mistura de proporções invertidas em relação à “Classic”: dois terços de cerveja
envelhecida em madeira (por dois anos) e apenas um terço de cerveja jovem. Como
se poderia esperar, o resultado é que a complexidade e o caráter “selvagem” da
cerveja envelhecida brilham com muito mais transparência, muito embora a maciez
da jovem ainda se evidencie para tornar o blend mais amigável ao paladar. Quase
tudo o que está presente na versão “Classic” reaparece aqui com mais
intensidade. Couro cru, estábulo, caramelo e morangos maduros se equilibram no
aroma em partes iguais, com sensações complementares de castanhas, chocolate,
vinho tinto, pimenta-do-Reino e lírios. A maturação em madeira aparece mais –
além dos aromas animais, notam-se amadeirado, amêndoas cruas, vinagre e uma
baunilha que se junta às frutas para reforçar a sensação de morango. Ela entra
bem ácida na boca, mas a acidez vai decaindo em direção a um final muito longo
e gentil, em que a doçura do malte aparece de forma equilibrada. O corpo é
mediano e a textura é aveludada, com uma certa adstringência da madeira. Um
blend equilibrado e refinado, em que os encantos do estilo aparecem de forma
mais clara sem que a doçura pese demais. Lembra muito um vinho tinto da
Borgonha. É uma pena que custe tão caro no Brasil – bem que a importadora
poderia trazer as garrafinhas de 330 ou 250ml para que ela se torne mais
acessível. Clique aqui para ver a avaliação completa.
Fonte: ministerieetenendrinken.nl |
A denominação desta cerveja causa bastante confusão, já que
seu rótulo traz a expressão “oud bruin” – que, em flamengo, significa “velha
marrom” e que é homônima a um estilo que também pode ser denominado “Flanders
brown ale”. Contudo, esta Bacchus não é uma Flanders brown, e sim uma Flanders
red ale, com maturação em carvalho. O predomínio da acidez sobre a doçura e a intensidade
dos traços de Brettanomyces sugerem
uma grande proporção da cerveja envelhecida no blend, enquanto seu corpo
surpreendentemente leve e sua baixa adstringência de taninos lhe garantem uma
alta drinkability. No aroma, brilham as Brettanomyces,
com frutas frescas (cerejas vívidas e uvas verdes) e os aromas de couro cru e
estábulo. Caramelo, chocolate e toques discretos de vinagre e canela a
complementam de forma agradável. A acidez é intensa, mas muito limpa e
refrescante, e dá lugar a uma doçura final. O corpo é muito leve, crocante e
seco. Uma Flanders red talvez pouco marcante, mas muito bela e graciosa, para
refrescar uma noite de verão. Clique aqui para ver a avaliação completa.
Fonte: 366bottles.blogspot.com |
Produzida pela cervejaria Timmermans, esta Flanders red ale
da região de Bruxelas apresenta algumas peculiaridades interessantes em seu
processo produtivo. Como a Timmermans também produz lambics pelo método tradicional, esta cerveja não é inoculada com uma cultura mista de leveduras
ale e bactérias. Antes, a cervejaria fermenta normalmente uma ale escura, à
qual adiciona uma proporção de lambic pronta e matura a mistura em carvalho
para que a lambic acidifique a ale. Depois de envelhecida, a cerveja resultante
é blendada com a ale jovem e engarrafada. O resultado é que o produto final
apresenta a profundidade aromática de Brettanomyces
da lambic, mas sem tanta acidez quanto outras do estilo, já que não é
inoculada com bactérias láticas. Aromas animais e principalmente terrosos e de
mofo são acentuados, sugerindo mais acidez do que efetivamente se encontra na
boca. Caramelo, frutas (morango, suco de uva, uvas verdes) e especiarias
(alcaçuz e pimenta-do-Reino) aparecem com grande complexidade, junto com um
abaunilhado perceptível. Há uma pontadinha de acidez lática no começo (sem
traços acéticos perceptíveis), mas logo depois a doçura predomina, até de forma
um pouco enjoativa. O corpo é leve para mediano, com textura agradavelmente
cremosa e acetinada. O rótulo indica “aromatizantes” e não os especifica –
fiquei com a impressão de que talvez seja caramelo. Interessante versão
“alternativa” do estilo, com um contraste entre o aroma marcante e o sabor mais
suave e amigável. Clique aqui para ver a avaliação completa.
Fonte: www.camrgb.org |
Este é o blend mais maduro da cervejaria Verhaeghe, que
apresenta uma peculiaridade: a mistura usa apenas cervejas envelhecidas em
madeira, sem ales jovens. Uma parte é envelhecida durante 8 meses, enquanto o
restante matura por 18 meses. Assim sendo, o blend ganha forte acidez e aromas
animais e amadeirados acentuados, tornando-se uma representante especialmente
marcante do estilo. Belíssima no copo, com uma cor bordô intensa e boa espuma.
Os aromas aparecem com bastante vigor: muito estábulo e couro cru, madeira,
terra, aceto balsâmico e acetona convivem com sabores mais amenos, remetendo a
suco de uvas azedas, caramelo e castanhas. A acidez, lática e acética, é
intensa, mas equilibrada ao final pela doçura residual do malte e pela
adstringência da madeira. O corpo é mediano, com marcante textura terrosa e um
certo aquecimento com sensação “química”, mas não necessariamente desagradável.
É uma representante do estilo com “pegada” bem forte e muita personalidade, bem
rústica, mas equilibrada pelo balanço entre acidez e doçura. Clique aqui para
ver a avaliação completa.
Fonte: barleydine.wordpress.com |
Esta espetacular e especialíssima cerveja da tradição de
Flandres é uma versão da dark strong ale da cervejaria, a Oerbier, que matura
por 18 meses em barris de carvalho usados para a produção de vinhos Bordeaux. A
cerveja-base é uma potente ale belga de 13% de álcool, mas é produzida com uma
cultura mista de leveduras e bactérias, de modo que a longa maturação a
acidifica, exatamente como ocorre com uma Flanders red mais convencional. A
complexidade aromática é vertiginosa: a cerveja-base traz bastante cereja
madura, maçã-do-amor, caramelo, chocolate, rosas, pimenta-do-Reino, pimenta
vermelha e anis. Dentre tudo o que a maturação lhe imprime, identifiquei
amêndoas cruas, estábulo, couro cru, terroso, tabaco, mofo, vinagre, madeira e
vinho do Porto. Tudo isso se funde num torvelinho delicioso de aromas, em que o
rústico, o maduro e o doce se misturam deliciosamente. No boca, predomina o
tempo todo a acidez, mas há uma breve doçura inicial e um surpreendente amargor
final, levemente tânico. O corpo é mediano, seco considerando seu teor
alcoólico, mas soberbamente estruturado por elegantes e impecáveis taninos. Uma
joia rara cravada na coroa de Flandres. Clique aqui para ver a avaliação
completa.
Fonte: www.beerfm.com |
Embora nem sempre os norte-americanos consigam com sucesso
replicar cervejas selvagens belgas, alguns dos seus maiores acertos ocorrem
quando eles não tentam seguir à risca os estilos originais, mas criam novas
interpretações. É o caso desta Flanders red ale da californiana The Bruery, que
matura durante 18 meses em barris de vinho tinto (sem blendagem com ales
jovens) e que apresenta um dos mais impressionantes perfis de maturação que
este humilde degustador já encontrou. Notas animais, terrosas, de mofo,
baunilha e madeira, típicas do estilo, convivem com traços de oxidação e
autólise lembrando molho de tomate, couro curtido, molho inglês e vinho do
Porto. O malte aparece com um caramelado e as frutas sugerem figos secos e
passas ao rum. O aroma parece uma mistura entre uma Flanders red ale e uma old
ale inglesa longamente envelhecida. A acidez é muito intensa e reina ao lado de
uma forte sensação salgada, mas ela começa e termina na boca com uma leve
doçura de malte. O corpo é leve para mediano, mas os taninos acentuados lhe dão
uma textura muito estruturada e adstringente. Impactante e intensa, mas
misteriosamente harmônica em sua sobriedade. Prova de que as cervejas selvagens
de Flandres podem ser palcos muito férteis para a criatividade da revolução
artesanal. Clique aqui para ver a avaliação completa.
Curiosamente, embora nosso mercado nacional ainda seja
carente de boas lambics a preços acessíveis, temos boa disponibilidade de
cervejas do estilo Flanders red ale. Dentre outros rótulos que podem ser
garimpados nos empórios nacionais, é possível encontrar as 5 primeiras cervejas
desta seleção. As duas últimas, contudo, seguem sendo rótulos raros, de difícil
acesso mesmo em seus países de origem. As cervejas da De Dolle acabaram de chegar
ao Brasil, mas ainda não há sinal da Oerbier Special Reserva, nem de sua irmã
Stille Nacht Special Reserva – as duas são produzidas e lançadas em anos
alternados.
Talvez ainda mais do que as tradicionalíssimas lambics, as
Flanders red ales desafiam classificação e padronização. Seus métodos
produtivos, sujeitos a uma certa variação de produtor para produtor, resultam
necessariamente em produtos com caráter muito distinto. É verdade que a
Rodenbach Grand Cru tem sido historicamente considerada o “paradigma” do
estilo; contudo, se analisarmos todas as demais Flanders red tendo ela como
referência, estaremos sendo injustos e deixaremos de ser capazes de observar a
beleza que cada uma traz em sua proposta. Flanders red ales podem ser mais
“selvagens”, desafiando nosso paladar com sua acidez e seus taninos, ou mais
“amáveis”, conquistando pela maciez do seu corpo e dos seus açúcares. Podem,
igualmente, trazer em primeiro plano os aromas e sabores mais rústicos e rurais
das leveduras selvagens, ou podem ostentar o encantador frescor das frutas e
especiarias.
Mesmo com toda essa variedade interna ao estilo, as Flanders
red ales não são as únicas cervejas selvagens produzidas nos territórios
flamengos. Na próxima parte desta matéria, teremos a oportunidade de entender
as diferenças entre as Flanders red e as Flanders brown ales, dois estilos
frequentemente confundidos entre si, mas que passaram por desenvolvimentos
históricos razoavelmente distintos. Não perca!
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