sábado, 1 de fevereiro de 2014

Cervejas selvagens - Parte XX: O poder do tempo

A arte do bem explorar a “mala amiga” é a 
maior arma do cervejeiro de baixa renda.
Fonte: www.turbosquid.com
Parece incrível, mas já faz quase um ano que temos falado ininterruptamente aqui neste blog sobre cervejas selvagens. É hora de soarem os acordes finais da sinfonia, e para isso vou voltar às cervejas com as quais começamos esta viagem: as lambics. Eu poderia ter escrito esta e a próxima matéria na época em que estávamos falando sobre lambics, mas preferi esperar chegarem às minhas mãos duas preciosas garrafas trazidas direto da Europa por um primo meu – fica aqui meu agradecimento! Que elas sirvam, portanto, de balizas finais no itinerário desta longa viagem. A matéria desta quinzena será dedicada à evolução de uma lambic ao longo do tempo, comparando uma versão jovem com uma versão plenamente madura da mesma lambic. De quebra, teremos a oportunidade de falar sobre o último – e mais antigo – estilo de cerveja selvagem que abordaremos aqui: as straight lambics.

A longa maturação das lambics

Nas partes anteriores, eu fiz questão de ressaltar os longos tempos de maturação das lambics. De fato, após serem naturalmente inoculadas pelos microorganismos do ar, essas cervejas são embarriladas e chegam a passar até três anos dentro de barricas ou tonéis de carvalho antes de serem engarrafadas. Por que tanto? Recapitulemos resumidamente o que já vimos antes: uma lambic sofre 3 fermentações antes de ser engarrafada. A primeira, com leveduras cervejeiras comuns, do gênero Saccharomyces, dura em torno de 3-4 meses e produz álcool. A segunda, com bactérias do gênero Pediococcus, termina entre o 7º e o 11º mês a partir do início do processo e produz ácido lático. A terceira, com leveduras do gênero Brettanomyces, começa a partir daí e se estende pelo menos até o 18º mês. Um ano e meio de fermentação ininterrupta, no mínimo. E pensar que, para quase todos os outros estilos de cerveja, a fermentação se encerra em uma semana.

A lambic é considerada apta para ser servida e consumida assim que termina a segunda fermentação – ou seja, quando ela tem quase um ano de idade. No passado, a maior parte da lambic produzida por uma cervejaria era vendida neste ponto de sua maturação, diratamente dos barris e sem envasar.  Ainda não existia a gueuze, que surgiu no final do século XIX – quando se fala que as lambics são um estilo com séculos de idade, é nessas versões jovens que se pensa. Hoje, a lambic ainda é servida dessa forma, mas ela corresponde à menor parcela da produção, em torno de 10%. O restante é usado em blends para se produzir as versões engarrafadas: as lambics com frutas e as gueuze. No blend de uma gueuze, entram tradicionalmente lambics de um, dois e três anos de idade, que são misturadas em proporções variáveis para se atingir o resultado desejado pelo produtor.

A lambic jovem

Os litros e litros de lambic jovem de 
antigamente hoje se reduziram para 
dar espaço aos blends e lambics 
engarrafadas. Na imagem, lambic 
jovem sendo servida à farta na 
tela “Casamento camponês” (1568),
 de Pieter Brueghel. 
Fonte:  http://www.ibiblio.org
Mas exatamente o que muda ao longo desse tempo? Se a lambic pode ser servida com um ano de idade, por que esperar três? No primeiro caso, após finalizar as duas primeiras fermentações, a lambic ainda não exibe traços muito marcantes de Brettanomyces, que se desenvolvem plenamente apenas na terceira fermentação. Os aromas animais ainda são suaves, bem como o frutado fresco associado às “Bretta”. Ela já tem aquela acidez característica, uma vez que passou pela fermentação lática, mas ainda não tem o paladar seco de uma lambic madura. A esta altura, 80% dos carboidratos originais do mosto já terão sido consumidos e convertidos em álcool e ácido lático nas duas primeiras fermentações, mas ela ainda terá 20% de açúcares restantes, que só as Brettanomyces serão capazes de metabolizar. Isso significa que a lambic jovem, com um ano de idade, ainda exibe uma certa doçura residual, resultando em uma bebida um pouco menos agressiva ao paladar para quem não está acostumado com lambics.

Quando é servida neste estágio de seu desenvolvimento, a lambic é usualmente classificada como “straight lambic”, ou lambic sem blendar, sendo muito mais difícil de encontrar hoje em dia do que as versões engarrafadas. A “raridade” relativa do produto, neste caso, não significa que ele seja de alguma forma superior. Na verdade, a lambic sem blendar é considerada o produto menos elaborado da cervejaria, já que não teve tempo para desenvolver um perfil maduro de Brettanomyces. É usualmente vendida no entorno das cervejarias produtoras, ou seja, na região de Bruxelas, e é servida em barris nos bares e cafés da capital belga. Alguns poucos produtores, como a Girardin e a Oud Beersel, envasam a lambic jovem em sacos plásticos de 5 litros (o bag-in-box), semelhantes àqueles usados por algumas vinícolas. Além disso, é tradicional que a cervejaria venda a lambic jovem “a granel”, por litro, na porta da fábrica, em vasilhames trazidos pelos próprios consumidores. Ela advém de um único barril e, por não ser blendada e padronizada, demonstra profunda variação sensorial de barril para barril. Como não é engarrafada, não sofre refermentação na garrafa e não produz espuma: ela vem ao copo totalmente sem carbonatação, tal qual um vinho.

Fonte:  www.flickr.com
Um bom exemplo de lambic sem blendar é a Cantillon Lambic. Quando a bebi, na própria fábrica (veja aqui meu relato sobre essa extraordinária visita), era verão e ela já tinha quase um ano e meio de idade (a Cantillon só inicia a produção de sua lambic no inverno), mas preservava as principais características da lambic jovem. Servida de jarros de cerâmica – como manda a tradição, aliás –, não formou nenhuma espuma, apenas algumas bolhas grandes produzidas pela viscosidade do líquido ao ser servido. A doçura e o sabor do malte eram bem perceptíveis, atenuando a percepção da acidez. Notava-se um equilíbrio interessante entre o doce, o ácido e uma forte adstringência de taninos, ainda um pouco “rude” devido à pouca idade, conduzindo a um final em que o amargor tânico predominava. No aroma, mostrou-se menos complexa e refinada do que a gueuze da cervejaria. Como já tinha um ano e meio de idade, o aroma animal estava bem desenvolvido, junto com o terroso típico do terroir da Cantillon. O malte deu as caras com sabor de mel, junto com sensações licorosas de plástico e xarope causadas pela oxidação. Um caráter acético a complementou, mas, de forma geral, apresentou menor complexidade aromática. O corpo era leve, mas não tão seco quanto o de uma lambic madura, com uma certa viscosidade oleosa e adstringente. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Os benefícios da idade

E entre o final do primeiro ano e o final do terceiro (quando a lambic atingiu maturidade plena), o que acontece? No segundo ano acontece a terceira fermentação, feita pelas Brettanomyces. Todos os açúcares residuais da cerveja são consumidos e convertidos em álcool, deixando a lambic totalmente seca e acentuando a percepção da acidez. O aroma animal e frutado das Brettanomyces se desenvolve. Durante o terceiro ano, não resta mais nada a fermentar, mas as Brettanomyces continuam vivas e a cerveja matura até atingir seu ápice. Os aromas animais e principalmente frutados se abrem plena e profusamente, atingindo aquele caráter de vinho Chardonnay, cheio de fruta madura, que os produtores buscam em suas lambics. A acidez e os taninos se amaciam com o tempo, tornando-se mais elegantes e austeros, menos “nervosos”. Uma certa licorosidade vínica se desenvolve, junto com elegantes traços de evolução e oxidação, lembrando mel aromático, mineral e amêndoas cruas.

A lambic plenamente madura, com 3 anos de idade, raramente é servida sozinha. O mais comum é que ela seja usada como parcela nobre do blend de uma gueuze, adicionando complexidade e vivacidade aromática. Mas, para nossa sorte, alguns poucos produtores – mais especificamente, a Cantillon e a De Cam – engarrafam suas lambics de 3 anos. Ao contrário do que ocorre com a lambic jovem, a de 3 anos pode perfeitamente ser engarrafada sem desenvolver carbonatação, pois ela praticamente não tem mais açúcares residuais a serem fermentados. É verdade que os relatos sobre garrafas muito antigas dessas lambics atestam que uma leve carbonatação pode se desenvolver com o passar do tempo, mas nada próximo do nível de uma gueuze.

Fonte:  untappd.com
A lambic madura da Cantillon, sem blendar, é vendida sob a denominação de Cantillon Grand Cru Bruocsella Lambic Bio, e oferece uma ótima comparação com a lambic jovem, para entendermos os efeitos desses dois anos adicionais sobre a cerveja. A Grand Cru Bruocsella Lambic Bio 2009 (a safra indica o ano de brassagem, e não de envase) não apresenta carbonatação, mas forma um discreto anel de creme na lateral da taça. Na boca, mostra uma surpreendente, mas discreta, doçura licorosa na entrada e ao engolir, sobrepujada por uma elegante acidez, mais suave do que na gueuze. A profundidade aromática é vertiginosa: o aroma animal e de couro cru ainda está presente, mas já foi ultrapassado por uma avalanche de frutas frescas e maduras (pêssegos, nectarinas, tangerinas, damascos, framboesas, lima-da-Pérsia), baunilha e alguma madeira. Terroso, apimentado e mineral lhe dão elegância precisa para equilibrar as frutas e a doçura da baunilha e do mel aromático. O corpo é leve e suavemente tânico – para meu paladar, os taninos são até suaves demais, deixando-a um pouco desestruturada diante da gueuze.  Veja aqui a avaliação completa. Este é um rótulo caro e de distribuição muito restrita, mas que temos o privilégio de ter no Brasil desde o final de 2013. Vale o alto preço para quem é fã de lambics.

A mistura perfeita

E a gueuze? Como ela se posiciona diante desses dois extremos da lambic jovem e da lambic madura? Como sabemos, ela resulta do blend entre lambics de um, dois e três anos de idade, em proporções variáveis, e sofre refermentação na garrafa por mais 6 meses, ficando completamente seca. Ela fica em algum ponto entre a juventude da lambic de 1 ano e a maturidade plena da lambic de 3 anos, mas ganha a elegante e apetitosa secura da refermentação na garrafa. Na verdade, o objetivo do blend é conseguir unir o melhor dos dois mundos: a acidez e os taninos ainda vibrantes e mordazes da lambic menos madura (com 1 a 2 anos) com a secura da refermentação e a profundidade aromática da lambic de 3 anos. O resultado, quando saído das mãos de um blender experiente, é uma obra-prima que preserva a complexidade da lambic madura com o caráter mais vibrante da jovem, ao mesmo tempo em que a secura ressalta a elegante acidez.

Mais uma vez, a Cantillon será nosso exemplo. A Cantillon Gueuze 100% Lambic Bio, que já analisamos antes aqui, exibe um aroma em que frutas tropicais maduras e toques animais, terrosos e minerais se equilibram. Menos complexo do que na Grand Cru Bruocsella, mas muito mais do que na lambic jovem. Mais seca e mordaz que ambas as versões sem blendar, com acidez mais vibrante e perceptível, e com uma adstringência tânica intermediária que lhe dá estrutura precisa na boca, além de uma volumosíssima carbonatação. Se tentássemos observar a evolução de cada um de seus elementos ao longo do tempo, teríamos o seguinte:



Enquanto os taninos vão se amaciando e a complexidade aromática vai crescendo ao longo da evolução da lambic, ambos de forma quase linear, podemos observar que doçura e acidez encontram seus extremos no resultado do blend que dá origem à gueuze. A doçura atinge o menor nível (para depois voltar a aparecer sutilmente na lambic madura), enquanto a acidez atinge um ápice de vibrante tensão (para depois voltar a se amaciar na lambic madura).

Glorioso outono

Mas e depois? A lambic continua seu caminho de transformação depois de 3 anos? Supõe-se que sim, mas num ritmo muito mais lento. É por isso que raramente as cervejarias envelhecem suas lambics por mais de 3 anos antes de blendar e engarrafar. Contudo, como sabemos, gueuzes envelhecem notavelmente bem na garrafa, então é possível degustar lambics com idade muito superior a isso e ver o que um envelhecimento ainda maior pode fazer com a cerveja. E adivinhe só qual cervejaria vai nos fornecer o exemplo? Acertou quem pensou, de novo, na Cantillon!

Em 2013, tive a oportunidade de beber uma Cantillon Gueuze 100% Lambic Bio 2004 – com 9 anos de guarda desde o momento do engarrafamento, portanto. É difícil fazer a comparação direta com a versão fresca da gueuze, já que a Cantillon mudou muito o caráter de suas cervejas nos últimos 10 anos. Antigamente, as lambics da Cantillon eram intensamente acéticas e ácidas, e hoje em dia se mostram mais equilibradas depois que a cervejaria começou a trocar de forma sistemática seus barris velhos e demasiadamente contaminados com bactérias acéticas. A cerveja tinha só um tiquinho de doçura, e amargor muito suave, com acidez nas alturas do início ao fim (como era praxe nas safras mais antigas da Cantillon) e forte sensação carnuda (umami) e salgada, indicativo claro e delicioso de autólise de leveduras. Os aromas frutados mostraram-se mais suaves diante de traços animais e terrosos bastante intensos e de um aroma tostado característico de lambics muito antigas, que me lembra pipoca queimada. Toques de vinho do Porto, molho shoyu, plástico e mel aromático mostraram nitidamente seu glorioso envelhecimento. O corpo era levíssimo, como deve ser uma gueuze, mas a guarda lhe deu uma textura vínica e licorosa. O aroma animal e frutado das Brettanomyces passou a conviver com um austero perfil de envelhecimento, e ela desenvolveu uma suave e agradável licorosidade. Clique aqui para ver a avaliação completa. Uma belíssima experiência, sem dúvida! Fica a sugestão para quem puder comprar algumas garrafas de uma boa gueuze (não precisa ser a Cantillon, basta ser um exemplar tradicional do estilo, sem adoçar e sem pasteurizar) para guardar por uns bons anos antes de abrir. Uma boa lambic sempre nos reserva surpresas.

Na próxima – e última! – parte desta longa jornada no mundo das cervejas selvagens, falaremos ainda sobre o tempo, mas sob outra ótica. Quero trazer aos meus leitores algumas das inovações e dos novos experimentos feitos pelos produtores do mais antigo e tradicional estilo de cerveja do mundo, para provar de uma vez por todas que as lambics não pararam no tempo! Não perca!


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