sexta-feira, 13 de abril de 2012

Guias de estilos - Parte VII: O duelo


O imperialismo britânico na Índia pelos menos 
fez uma coisa boa pelo mundo: as IPAs. E só.
Encontro entre Robert Clive e Mir Jafar após a batalha 
de Plassey, 1757, do pintor Francis Hayman.
Fonte: Wikimedia Commons

Na última parte desta matéria, tivemos a oportunidade de analisar o modelo usado por cada guia de estilos para descrever os diferentes estilos cervejeiros. Vejamos agora na prática as diferenças entre os guias do BJCP e do BA a partir de um exemplo: as IPAs americanas. Como se sabe, o estilo IPA (sigla para India Pale Ale) surgiu na Inglaterra para abastecer o mercado ultramarino indiano. Para suportar as longas viagens de navio, as pale ales tradicionais levavam uma carga extra de lúpulo, o que definiu então um novo estilo com maior amargor e aroma de lupulado mais pronunciado. O estilo tornou-se um dos mais populares nos EUA a partir da “revolução artesanal”, e os americanos criaram sua própria reinterpretação do estilo. Vejamos como os dois guias descrevem as IPAs americanas.

BJCP: 14B. American IPA
Aroma: um aroma de lúpulo proeminente a intenso, com caráter cítrico, floral, perfumado, resinoso, de pinho e/ou frutado, derivado de lúpulos americanos. Muitas versões passam por dry-hopping e podem ter um aroma adicional de grama, embora isso não seja necessário. O plano de fundo pode revelar uma doçura limpa de malte, mas esta deve ser mais suave que nos exemplos ingleses. Um caráter frutado, oriundo de ésteres ou dos lúpulos, também pode ser detectado em algumas versões, muito embora um caráter neutro de fermentação também seja aceitável. Um certo álcool pode ser percebido.
Aparência: coloração varia entre um dourado médio até um acobreado-avermelhado médio; algumas versões podem ter uma nuance alaranjada. Deve ser clara, embora algumas versões com dry-hopping possam ser um pouco turvas. Boa retenção de espuma, de coloração branca a crua.
Sabor: sabor de lúpulo varia de médio a intenso, e deve refletir um perfil de lúpulos americanos, com aspectos cítricos, florais, resinosos, de pinho ou frutados. O amargor de lúpulo é médio-alto a muito alto, embora a base de malte deva dar suporte ao lúpulo e para fornecer um bom equilíbrio. O sabor do malte deve ser de suave a mediano, e geralmente consiste em uma doçura limpa, ainda que sabores caramelados e tostados sejam aceitos em baixa intensidade. Leve frutado é aceitável, mas não necessário. O amargor pode persistir no retrogosto, mas não deve ser áspero ou grosseiro. Final seco a médio-seco. Um sabor limpo de álcool pode ser percebido nas versões mais alcoólicas. Carvalho é inapropriado neste estilo. Pode ter um leve toque sulfúrico, mas a maior parte dos exemplos não exibe esta característica.
Sensação na boca: sensação macia, com corpo médio-leve a médio, sem adstringência de lúpulo. A carbonatação moderada a média-alta pode passar uma impressão geral de secura mesmo em presença da doçura do malte. Um leve aquecimento de álcool pode e deve ser percebido em versões mais fortes, mas não em todas. O corpo é normalmente mais leve que nas versões inglesas.
Impressão geral: uma pale ale americana moderadamente forte, decididamente lupulada e amarga.
História: versão americana do estilo histórico inglês, produzida com ingredientes e com a atitude norte-americanos.
Ingredientes: malte pale ale (modificado e adaptado para mostura em temperatura única); lúpulos americanos; fermento americano pode produzir um perfil limpo ou levemente frutado. Normalmente são puro-malte, mas com mostura em baixa temperatura para atingir uma alta atenuação. As características da água variam de mole a moderadamente sulfurosa. Versões com um caráter de centeio perceptível (“RyePA”) devem ser inscritas na categoria “Especialidade”.
Estatísticas vitais: IBUs: 40-70; SRM: 6-15; OG: 1.056-1.075; FG: 1.010-1.018; ABV: 5.6-7.5%
Exemplos comerciais: Bell’s Two-Hearted Ale, AleSmith IPA, Russia River Blind Pig IPA, Stone IPA, Three Floyds Alpha King, Great Divide Titan IPA, Bear Republic Racer 5 IPA, Victory Hop Devil, Sierra Nevada Celebration Ale, Anderson Valley Hop Ottin’, Dogfish Head 60 Minute IPA, Founder’s Centennial IPA, Anchor Liberty Ale, Harpoon IPA, Avery IPA.

Brewers Association: American-Style India Pale Ale
American-style India pale ales tem amargor, aroma e sabor de lúpulo médio-alto a intenso, com teor alcoólico médio-alto. O estilo ainda se caracteriza pelo caráter floral, frutado, cítrico, de pinho, resinoso ou sulfúrico das variedades americanas de lúpulo. Note que o caráter de variedades americanas de lúpulo é o efeito percebido, mas pode ser fruto do uso habilidoso de lúpulos de outras origens. O emprego de água com alto teor de sais minerais resulta em uma cerveja seca. Esta ale de coloração dourada a profundamente acobreada tem um aroma pleno, floral, de lúpulo, e pode ter um forte sabor de lúpulo (em adição à percepção de amargor de lúpulo). India pale ales possuem caráter de malte mediano, resultando em corpo mediano. Sabores e aromas frutados de ésteres variam entre moderados e muito intensos. Diacetil pode estar ausente, ou ser percebido em níveis baixos. Turbidez a frio ou de lúpulo é aceitável. (Considera-se que os lúpulos ingleses e os lúpulos cítricos americanos são distinção suficiente para separar as IPAs nas subcategorias de estilo inglês e americano. Lúpulos de outras origens podem ser usados para amargor ou para criar uma impressão aproximada do caráter das variedades tradicionais inglesas ou americanas. Veja English-style India Pale Ale.
Gravidade original (ºPlato) 1.060-1.075 (14.7-18.2 ºPlato); Gravidade final/extrato aparente (ºPlato) 1.012-1.018 (2-4 ºPlato); Álcool por peso (volume) 5-6% (6.3-7.5%); Amargor (IBU) 50-70; Coloração SRM (EBC) 6-14 (12-28 EBC)

Semelhanças e diferenças

Uma clássica IPA americana: 
Dogfish Head 60 Minute IPA.
Fonte: beerandamovie.wordpress.com
Algumas semelhanças se impõem naturalmente na comparação, mas também surgem algumas diferenças mais ou menos importantes. Em primeiro lugar, ambos os guias concordam com um fato: o aroma, o sabor e o amargor de lúpulo de variedades norte-americanas, em intensidade médio-alta a intensa, compõem o elemento central do estilo. As estatísticas técnicas variam em alguns pontos importantes: o BJCP inclui no estilo cervejas com amargor e teor alcoólico menos pronunciados que a BA (uma observação interessante: até a edição de 2011 do guia da Brewers Association, amargor e teor alcoólico eram menos intensos do que no BJCP, e atualmente essa relação se inverteu). Outras diferenças marginais podem ser percebidas: o BA é mais permissivo quanto ao perfil frutado de ésteres do que o BJCP, enquanto este admite maior variabilidade na composição de sais minerais da água.

Diferenças mais importantes dizem respeito ao corpo e ao perfil de maltes: o BJCP entende que o corpo deve ser mais leve, e a percepção de malte deve ser suave a mediana, preferencialmente com sabor limpo – caramelado e tostado só são aceitável em baixa intensidade. Já o guia do BA aponta apenas “corpo mediano” e usa a lacônica expressão “caráter de malte mediano”, sem definir de forma mais específica os sabores esperados do malte. Será que os juízes da Brewers Association cochilaram e se esqueceram de detalhar essa parte? Claro que não. A questão é que o elemento percebido como distintivo do estilo é o protagonismo de lúpulos de características norte-americanas; os demais elementos recebem menos atenção e inclusive podem apresentar uma margem de variação maior. O comentário final, em itálico, deixa claro esse aspecto: o aroma de lúpulo remetendo a variedades americanas, no entendimento da BA, é suficiente para distinguir as IPAs americanas das inglesas. Enquanto o BJCP lista todas as diferenças (de coloração, corpo, sabor de malte, doçura), o guia da BA enfatiza aquela que é entendida como a principal diferença: o aroma de lúpulo.

Pode parecer pouco, mas a diferença é suficiente para que algumas cervejas sejam desclassificadas de acordo com um dos guias e sejam julgadas favoravelmente de acordo com o outro. Tentarei exemplificar isso na próxima e última parte desta matéria, a partir da degustação, e da comparação ponto a ponto, de uma célebre American IPA brasileira com ambos os guias. Não perca!

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