Na
última parte desta matéria, tivemos a oportunidade de analisar o modelo usado
por cada guia de estilos para descrever os diferentes estilos cervejeiros.
Vejamos agora na prática as diferenças entre os guias do BJCP e do BA a partir
de um exemplo: as IPAs americanas. Como se sabe, o estilo IPA (sigla para India
Pale Ale) surgiu na Inglaterra para abastecer o mercado ultramarino indiano.
Para suportar as longas viagens de navio, as pale ales tradicionais levavam uma
carga extra de lúpulo, o que definiu então um novo estilo com maior amargor e
aroma de lupulado mais pronunciado. O estilo tornou-se um dos mais populares
nos EUA a partir da “revolução artesanal”, e os americanos criaram sua própria
reinterpretação do estilo. Vejamos como os dois guias descrevem as IPAs
americanas.
BJCP: 14B. American
IPA
Aroma: um aroma
de lúpulo proeminente a intenso, com caráter cítrico, floral, perfumado,
resinoso, de pinho e/ou frutado, derivado de lúpulos americanos. Muitas versões
passam por dry-hopping e podem ter um aroma adicional de grama, embora isso não
seja necessário. O plano de fundo pode revelar uma doçura limpa de malte, mas
esta deve ser mais suave que nos exemplos ingleses. Um caráter frutado, oriundo
de ésteres ou dos lúpulos, também pode ser detectado em algumas versões, muito
embora um caráter neutro de fermentação também seja aceitável. Um certo álcool
pode ser percebido.
Aparência:
coloração varia entre um dourado médio até um acobreado-avermelhado médio;
algumas versões podem ter uma nuance alaranjada. Deve ser clara, embora algumas
versões com dry-hopping possam ser um pouco turvas. Boa retenção de espuma, de
coloração branca a crua.
Sabor: sabor de
lúpulo varia de médio a intenso, e deve refletir um perfil de lúpulos
americanos, com aspectos cítricos, florais, resinosos, de pinho ou frutados. O
amargor de lúpulo é médio-alto a muito alto, embora a base de malte deva dar
suporte ao lúpulo e para fornecer um bom equilíbrio. O sabor do malte deve ser
de suave a mediano, e geralmente consiste em uma doçura limpa, ainda que
sabores caramelados e tostados sejam aceitos em baixa intensidade. Leve frutado
é aceitável, mas não necessário. O amargor pode persistir no retrogosto, mas
não deve ser áspero ou grosseiro. Final seco a médio-seco. Um sabor limpo de álcool
pode ser percebido nas versões mais alcoólicas. Carvalho é inapropriado neste
estilo. Pode ter um leve toque sulfúrico, mas a maior parte dos exemplos não
exibe esta característica.
Sensação na boca:
sensação macia, com corpo médio-leve a médio, sem adstringência de lúpulo. A
carbonatação moderada a média-alta pode passar uma impressão geral de secura
mesmo em presença da doçura do malte. Um leve aquecimento de álcool pode e deve
ser percebido em versões mais fortes, mas não em todas. O corpo é normalmente
mais leve que nas versões inglesas.
Impressão geral:
uma pale ale americana moderadamente forte, decididamente lupulada e amarga.
História: versão
americana do estilo histórico inglês, produzida com ingredientes e com a
atitude norte-americanos.
Ingredientes:
malte pale ale (modificado e adaptado para mostura em temperatura única);
lúpulos americanos; fermento americano pode produzir um perfil limpo ou
levemente frutado. Normalmente são puro-malte, mas com mostura em baixa
temperatura para atingir uma alta atenuação. As características da água variam
de mole a moderadamente sulfurosa. Versões com um caráter de centeio
perceptível (“RyePA”) devem ser inscritas na categoria “Especialidade”.
Estatísticas vitais: IBUs:
40-70; SRM: 6-15; OG: 1.056-1.075; FG: 1.010-1.018; ABV: 5.6-7.5%
Exemplos comerciais: Bell’s Two-Hearted Ale, AleSmith
IPA, Russia River Blind Pig IPA, Stone IPA, Three Floyds Alpha King, Great
Divide Titan IPA, Bear Republic Racer 5 IPA, Victory Hop Devil, Sierra Nevada
Celebration Ale, Anderson Valley Hop Ottin’, Dogfish Head 60 Minute IPA,
Founder’s Centennial IPA, Anchor Liberty Ale, Harpoon IPA, Avery IPA.
Brewers Association: American-Style India Pale
Ale
American-style India pale ales tem amargor, aroma e sabor de
lúpulo médio-alto a intenso, com teor alcoólico médio-alto. O estilo ainda se
caracteriza pelo caráter floral, frutado, cítrico, de pinho, resinoso ou
sulfúrico das variedades americanas de lúpulo. Note que o caráter de variedades
americanas de lúpulo é o efeito percebido, mas pode ser fruto do uso habilidoso
de lúpulos de outras origens. O emprego de água com alto teor de sais minerais
resulta em uma cerveja seca. Esta ale de coloração dourada a profundamente
acobreada tem um aroma pleno, floral, de lúpulo, e pode ter um forte sabor de
lúpulo (em adição à percepção de amargor de lúpulo). India pale ales possuem
caráter de malte mediano, resultando em corpo mediano. Sabores e aromas
frutados de ésteres variam entre moderados e muito intensos. Diacetil pode
estar ausente, ou ser percebido em níveis baixos. Turbidez a frio ou de lúpulo
é aceitável. (Considera-se que os lúpulos
ingleses e os lúpulos cítricos americanos são distinção suficiente para separar
as IPAs nas subcategorias de estilo inglês e americano. Lúpulos de outras origens
podem ser usados para amargor ou para criar uma impressão aproximada do caráter
das variedades tradicionais inglesas ou americanas. Veja English-style India
Pale Ale.
Gravidade
original (ºPlato) 1.060-1.075 (14.7-18.2 ºPlato); Gravidade final/extrato aparente (ºPlato) 1.012-1.018 (2-4 ºPlato);
Álcool por peso (volume) 5-6%
(6.3-7.5%); Amargor (IBU) 50-70; Coloração SRM (EBC) 6-14 (12-28 EBC)
Semelhanças e
diferenças
Uma
clássica IPA americana:
Dogfish Head 60 Minute IPA.
Fonte:
beerandamovie.wordpress.com |
Algumas semelhanças se impõem naturalmente na
comparação, mas também surgem algumas diferenças mais ou menos importantes. Em
primeiro lugar, ambos os guias concordam com um fato: o aroma, o sabor e o
amargor de lúpulo de variedades norte-americanas, em intensidade médio-alta a
intensa, compõem o elemento central do estilo. As estatísticas técnicas variam
em alguns pontos importantes: o BJCP inclui no estilo cervejas com amargor e
teor alcoólico menos pronunciados que a BA (uma observação interessante: até a
edição de 2011 do guia da Brewers Association, amargor e teor alcoólico eram
menos intensos do que no BJCP, e atualmente essa relação se inverteu). Outras
diferenças marginais podem ser percebidas: o BA é mais permissivo quanto ao
perfil frutado de ésteres do que o BJCP, enquanto este admite maior
variabilidade na composição de sais minerais da água.
Diferenças mais importantes dizem respeito ao corpo e ao
perfil de maltes: o BJCP entende que o corpo deve ser mais leve, e a percepção
de malte deve ser suave a mediana, preferencialmente com sabor limpo –
caramelado e tostado só são aceitável em baixa intensidade. Já o guia do BA
aponta apenas “corpo mediano” e usa a lacônica expressão “caráter de malte
mediano”, sem definir de forma mais específica os sabores esperados do malte.
Será que os juízes da Brewers Association cochilaram e se esqueceram de detalhar
essa parte? Claro que não. A questão é que o elemento percebido como distintivo
do estilo é o protagonismo de lúpulos de características norte-americanas; os
demais elementos recebem menos atenção e inclusive podem apresentar uma margem
de variação maior. O comentário final, em itálico, deixa claro esse aspecto: o
aroma de lúpulo remetendo a variedades americanas, no entendimento da BA, é
suficiente para distinguir as IPAs americanas das inglesas. Enquanto o BJCP
lista todas as diferenças (de coloração, corpo, sabor de malte, doçura), o guia
da BA enfatiza aquela que é entendida como a principal diferença: o aroma de
lúpulo.
Pode parecer pouco, mas a diferença é suficiente para que
algumas cervejas sejam desclassificadas de acordo com um dos guias e sejam
julgadas favoravelmente de acordo com o outro. Tentarei exemplificar isso na
próxima e última parte desta matéria, a partir da degustação, e da comparação
ponto a ponto, de uma célebre American IPA brasileira com ambos os guias. Não
perca!
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