Chegou finalmente a mais esperada parte de toda a brincadeira
de envelhecer cervejas: bebê-las! Agora, vamos convir: você não acompanhou com
todo carinho e paciência a evolução de uma cerveja durante anos para degustá-la
de qualquer jeito, sem cuidado nenhum, não é mesmo? Cervejas de guarda são
especiais e demandam uma degustação à altura de sua nobreza.
Claro que isso inclui o básico que já estamos carecas de
saber – ou seja, servir em taças adequadas e limpas (nada de cerveja de guarda
em copo americano sujo) e na temperatura correta (que para a maior parte das
cervejas de guarda pode variar entre os 8º e os 15º C). Não beba casualmente,
como quem engole um tira-gosto qualquer: cervejas envelhecidas passaram anos
acumulando segredos e histórias para te contar, e você deve dar-lhes a devida
atenção. Além dessas precauções básicas, seguem algumas dicas que podem
enriquecer a degustação para quem quer extrair o máximo de sua experiência com
cervejas envelhecidas.
1.
Compare
com uma cerveja fresca
Já sabemos quais são as principais transformações que oenvelhecimento causa em uma cerveja. Para poder observá-las em toda a sua
amplitude, porém, é interessante ter um parâmetro de comparação, uma espécie de
“amostra de controle” a partir da qual iremos apreciar a magnitude da evolução
de uma cerveja de guarda.
Para isso, antes de degustar a garrafa envelhecida, pode ser
interessante degustar um exemplar fresco da mesma cerveja. Caso você nunca
tenha bebido a cerveja em questão – pode acontecer! –, é uma chance de conhecer
as suas características originais e criar uma referência mental. Caso já
conheça o rótulo, degustá-lo novamente vai reavivar sua memória e fornecer uma
lembrança gustativa de curta duração, permitindo uma comparação mais adequada
com a cerveja envelhecida e tornando mais evidentes as diferenças trazidas pela
guarda. Na prática, a coisa funciona como uma pequena “degustação vertical” em
miniatura, mas com apenas dois rótulos: o exemplar fresco e o envelhecido. Fica
ainda melhor se você puder degustar ambas lado a lado, em copos separados. Isso
não precisa parecer chato e pedante e nem requer necessariamente toda uma
preparação especial: basta, ao degustar a cerveja fresca, deixar um pouco no
copo e guardar para comparar depois com a envelhecida.
É
como o “antes e depois” daqueles
programas de emagrecimento. Um
pouco menos
canastrão – espero.
Fonte:
pheeno.com.br |
Nem sempre é possível fazer esse comparativo tão
elucidativo: às vezes, a cerveja simplesmente parou de ser produzida ou
importada, e tudo o que resta são as garrafas das safras anteriores. Posso
citar pelo menos um exemplo que ainda me deixa enlutado. Uma das mais clássicas
cervejas de guarda, a lendária Thomas Hardy’s Ale, teve sua produção
descontinuada, salvo engano, em 2010. Nesses casos, tudo o que nos resta para
fazer o comparativo são as nossas notas de degustação tomadas em ocasiões
anteriores.
2.
Estipule
intervalos para abrir cada cerveja
O envelhecimento é um processo contínuo. Não existe uma
fronteira rígida entre “cerveja fresca” e “cerveja envelhecida” – o que existe
são cervejas em diferentes momentos de sua maturação e envelhecimento. Uma
cerveja com dois anos de guarda será considerada “envelhecida” diante de um
exemplar engarrafado há duas semanas; mas ainda pode ser considerada
relativamente fresca comparada a uma garrafa produzida há 10 anos.
Por isso, é interessante montar sua adega já pensando nos
diferentes momentos do processo em que você pretende degustar uma cerveja.
Lembre-se de que uma das sugestões que discutimos nas partes anteriores desta
matéria era comprar um certo número de garrafas da mesma cerveja. Isso permite
que nos programemos para abrir uma garrafa por ano, ou talvez uma a cada dois
anos, ou quem sabe uma com um ano de guarda, outra com dois, outra com 5, e
outra ainda com 10. Isso nos permite observar de forma mais metódica e rigorosa
a evolução da cerveja, além de nos dar uma ideia do ponto até o qual iremos com
cada rótulo.
Considere a estrutura de cada cerveja ao estipular o prazo
“máximo” para guardá-la: uma Belgian golden strong ale delicada jamais
aguentará ficar adegada por tanto tempo quanto uma Russian imperial stout robusta.
Para ter uma ideia do tempo adequado para guarda para alguns estilos mais
populares, vale seguir as referências dadas por Randy Mosher em seu excelente
livro Tasting Beer:
Belgian dubbel: 1-3 anos
Belgian tripel / golden strong ale: 1-4 anos
Strong ale / old ale: 1-5 anos
Imperial pale / brown / red ale: 1-7 anos
Belgian dark strong ale: 2-12 anos
Barleywine / Russian imperial stout: 3-20 anos
Cervejas
ultra-alcoólicas (acima de 15-20%): quase indefinidamente
É interessante registrar um fenômeno que pode ocorrer com
diversas cervejas especialmente adequadas para guarda. A evolução qualitativa
da bebida nem sempre ocorre de forma linear. Às vezes, nos estágios iniciais do
envelhecimento, uma cerveja pode já ter perdido seu frescor, mas ainda não teve
tempo para aprofundar ou integrar de forma harmoniosa suas características de
envelhecimento, tornando-se menos interessante do que uma garrafa fresca.
Porém, se deixada repousar por mais tempo, pode emergir com um perfil
envelhecido muito mais interessante. Por isso, por exemplo, Randy Mosher sugere
não envelhecer uma Belgian dark strong ale por menos de 2 anos: pode ser que,
com apenas um ano de guarda, ela já tenha perdido seus encantos da juventude,
mas ainda não tenha ganhado o charme do envelhecimento.
Algumas
cervejas pedem prazos
especialmente estendidos.
A mítica Thomas Hardy’s Ale indica
uma janela de pelo menos 25
anos de evolução.
Fonte:
lavinium.com |
3.
Reponha
as cervejas degustadas
Como você é um bebedor previdente, seguiu minha dica de
comprar mais de uma garrafa de cada rótulo ao montar sua adega. Aí você bebe a
primeira garrafa, depois a segunda, a terceira, a quarta e, quando vai olhar,
não tem mais nenhuma sobrando. Se quiser a mesma cerveja de novo, vai ter de
comprar mais uma vez e esperar com paciência todo o processo novamente?
Uma forma de evitar isso é repor as cervejas que você
degustar. Abriu uma cerveja de sua adega? Compre mais um exemplar do mesmo
rótulo. Quando eu gosto bastante do resultado do envelhecimento, compro mais
duas garrafas para cada uma que consumo. Isso garante que aquela cerveja que eu
aprecio tanto com alguns anos de guarda não vai faltar na minha adega. Na
prática, é como se você estivesse “pagando o dobro” do valor normal pela
cerveja envelhecida, mas com isso sua adega cresce “espontaneamente”.
Claro que, se você abriu a garrafa e não gostou do que
encontrou, não vale a pena investir novamente. Ou então, em alguns casos, pode
ser que a cerveja não exista mais ou não esteja mais disponível no mercado. Nesses
casos, aproveite para adquirir um novo rótulo para sua adega ou, quem sabe?, para
ampliar a sua coleção de um rótulo do qual você goste especialmente. Mas não
deixe que as garrafas comecem a minguar, senão você terá de começar do zero. O
ideal é que a quantidade de garrafas de sua adega aumente sempre ou pelo menos
se mantenha.
4.
Promova
degustações verticais
O termo “degustação vertical”, seja para vinhos ou para
cervejas, designa uma degustação seriada de diversas safras do mesmo rótulo,
uma após a outra. Por exemplo, quando se bebe, uma após a outra, garrafas de
Chimay Bleue das safras 2011, 2010, 2009, 2008 e 2007. Trata-se de uma
oportunidade única para avaliar a evolução de uma cerveja, pois você tem à sua
frente diversas safras para poder comparar, uma a uma, sem precisar recorrer
apenas à memória ou a anotações mais ou menos vagas, tomadas em outros
contextos, em outros ambientes, em outras épocas.
Numa degustação vertical, as diferenças entre cada estágio
do envelhecimento daquela cerveja ficam muito mais evidentes. É possível ver
claramente o que se adicionou e o que se perdeu de ano para ano. É interessante
começar pela garrafa mais jovem, de safra mais recente, e ir evoluindo para as
mais antigas. A cada copo, mais uma camada de tempo e maturação se adiciona à
degustação, cumulativamente. Claro que, às vezes, essas diferenças não se devem
única e tão-somente ao envelhecimento: duas safras diferentes podem ter sido
armazenadas sob condições distintas, ou talvez uma delas já carregue um
problema pontual desde a época da produção. Isso quando a receita não muda de
um ano para outro. Ainda assim, mesmo que os resultados de uma degustação
vertical não possam ser tomados como absolutos, eles oferecem um indicativo
mais seguro da evolução de uma cerveja.
Além disso (e na verdade isso é o mais importante), degustações
verticais são eventos divertidos, memoráveis e significativos. Cada garrafa
sobre a mesa passou por uma longa história, tem um valor afetivo, está cheia de
significados armazenados ao longo dos anos. Uma degustação vertical pode ser
tão emocionante quanto uma reunião de notáveis, ou de amigos antigos que se
distanciaram com o tempo.
Uma forma especialmente legal de organizar uma degustação
vertical é convidar vários amigos, cada um dos quais fica encarregado de levar
uma garrafa de uma das safras da cerveja em questão. Talvez você só tenha duas
garrafas, uma produzida em 2009 e outra em 2006, mas, de repente, se seus
amigos também abrirem suas adegas cervejeiras, seja possível até fazer uma
seleção vertical ano a ano. Claro que, se você tiver várias garrafas
disponíveis de vários anos diferentes (o que vai acabar acontecendo mais cedo
ou mais tarde se você seguir as dicas anteriores), consegue “bancar” sozinho
uma degustação vertical. Mas fazer isso coletivamente é muito mais legal.
Uma
invejável vertical da Thomas Hardy’s Ale.
No Brasil, uma coisa dessas praticamente só existe
por enquanto entre os profissionais do ramo.
Fonte:
realbeer.com |
5.
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Não adianta nada comprar um monte
de garrafas de uma cerveja, guardá-las nas condições ideais, esperar o momento certo
e... bebê-las sozinho, egoisticamente, como quem abre os presentes de Natal sem
ninguém por perto. São as pessoas especiais com quem convivemos (pessoalmente
ou à distância) que dão sentido ao tempo que passamos junto delas. Cervejas
envelhecidas são um tributo ao tempo – aproveite-as com as pessoas que ajudaram
a tornar mais especiais os momentos que você viveu.
A palavra “companheiro” tem origem
no latim cum panis, ou seja, aquele
com quem dividimos o pão. E o que é a cerveja senão o proverbial “pão líquido”?
Faça jus à etimologia e pratique o companheirismo dividindo suas cervejas
envelhecidas com as pessoas especiais de sua vida. Dividir a garrafa com um
grupo de amigos numa celebração, levá-la a uma confraria cervejeira, presentear
um amigo com uma cerveja envelhecida (que privilégio!), ou talvez apenas
dividi-la num momento de intimidade a dois – não importa. O importante é
compartilhar.
6.
Celebre
Festas e celebrações servem, em
primeiro lugar, para marcar e dar significado à passagem do tempo. Não é a cada
ano de nossa vida que comemoramos o nosso aniversário? As festividades do réveillon, analogamente, marcam a
passagem inexorável de um ano a outra na grande roda do tempo da humanidade.
Nossas maiores festividades têm suas origens no hábito quase universal das
sociedades de celebrar e marcar determinadas épocas do ano: a época da
colheita, os solstícios de inverno e verão, e por aí vamos.
Portanto, a passagem do tempo e a celebração têm tudo a ver,
o que faz das cervejas envelhecidas bebidas especialmente festivas e
celebratórias. Não abra uma cerveja de guarda (ainda mais se ela for muito
especial, por qualquer motivo que seja) em vão, só por abrir – ou pior, por
tédio. Use-a como uma espécie de “rito de passagem” para celebrar uma conquista
ou uma realização de vida. Aproveite uma ocasião comemorativa, qualquer que
seja ela, para dispor de suas cervejas tão arduamente guardadas e armazenadas.
É o momento que ajudará a tornar a sua cerveja ainda mais especial do que ela
já é.
Estou certo de que, pensando com carinho em todos esses
fatores, você ajudará a aumentar ainda mais o prazer e a satisfação de beber
suas cervejas de guarda – e cuidará com ainda mais carinho de sua adega. Claro
que essas orientações refletem a minha
maneira de enxergar o tema, a minha perspectiva, e não devem ser encaradas como
obrigações. Se beber cerveja estiver ficando chato ou de alguma forma
aborrecedor, é porque você está fazendo da forma errada. Faça suas próprias
regras. A gente já passa tempo demais se preocupando em cumprir o que os outros
nos mandam fazer!
Na próxima parte desta matéria apresentarei uma seleção
muito especial com dez indicações de rótulos para começar a sua adega de
guarda. Aguarde!
Olá Marcussi,
ResponderExcluirAcompanhei sua série sobre cervejas de guarda e você está de parabéns pela quantidade de informação. Muito bom.
Queria fazer uma colaboração. Não recomendo de forma alguma adegar Belgian Strong Golden Ales ou Tripels. Nunca tive boas experiências em adegamento de cervejas claras como as que representam esses 2 estilos. A única cerveja mais clara que teve bom comportamento entre as várias que testei foi a Bush Amber, mas ela nem é tão clara assim e tem 12% ABV. No mais, os 2 estilos que não recomendo possuem boas características aromáticas e de sabor de lúpulo quando novas e perdem essas características depois de pouco tempo de guarda, como 1 ano por exemplo. Guardá-las vai somente te proporcionar uma cerveja oxidada, com gosto e aroma de papelão, e complexidade bem reduzida em comparação a exemplares mais frescos.
Abraço.
Olá, Rodrigo, tudo bem?
ExcluirFico feliz que esteja gostando da matéria. Muito bacana a sua contribuição, obrigado. Tenho relativamente pouca experiência em cervejas claras envelhecidas, apesar de ter me proposto a escrever sobre cervejas de guarda. É algo pouco comentado, justamente porque as pessoas em geral se atêm aos mesmos rótulos de sempre. Mas eu prefiro manter um espírito de experimentação. Alguns fatores (além da referência do Randy Mosher) me fazem manter a cabeça aberta em relação a adegar cervejas claras.
Em primeiro lugar, o caso das bières brut, que passam pelo menos um ano maturando em garrafa antes de serem comercializadas e ganham muita complexidade e interesse durante esse período. Já tive o prazer de degustar uma bière brut vencida (portanto, com uns 3 anos de garrafa) que tinha desenvolvido um adorável aroma de oxidação lembrando amêndoas, como ocorre com diversas lambics envelhecidas. No caso das Belgian tripel, vale lembrar que existem rótulos mais delicados e mais focados no lúpulo, e outros com mais corpo, mais fenólicos; tudo isso certamente influenciará o resultado final. A Schmitt Barley Wine é um outro exemplo de cerveja relativamente clara que, por causa da indicação de estilo (o produtor optou por chamá-la de "barley wine", estilo classicamente usado para guarda), acaba sendo adegada e parece demonstrar bons resultados, pelo relato de outras pessoas.
Mas, de forma geral, adegar cervejas clara já é sair da zona de segurança e aventurar-se no imprevisível. Concordo com você: existem boas chances de acabar degustando uma cerveja passada. Quais foram suas más experiências com cervejas claras envelhecidas?
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
Marcussi,
ExcluirChimay Tripel, Westmalle Tripel, Achel Blond, Wals Tripel, St Bernardus Tripel, Duvel, Houblon Chouffe, La Trappe Tripel, Carolus CVK Rood, entre outras não tiveram bom comportamento de guarda.
Até mesmo já provei uma Lust normal também fora da validade e preferi a nova. Pode até mesmo desenvolver novas sensações que podem ser agradáveis ao paladar/olfato de alguns mas também desenvolve sensações desagradáveis. Particularmente me desagrada muito o aroma de papelão que se desenvolve quase que invariavelmente na guarda de cervejas claras e até escuras também mas de forma mais intensa nas claras mesmo.
No caso de lambics eu tive a grata oportunidade de provar várias das Cantillon que estão no Brasil e foram importadas há mais de 10 anos e provei as mesmas recém fabricadas na própria cervejaria. A realidade é que elas realmente aguentam a guarda mas novas são infinitamente melhores, principalmente as Fruit Lambic que perdem muito o aspecto da fruta usada com o tempo.
Apoio a idéia de adegar cervejas mas infelizmente é algo recomendado somente para rótulos selecionados e nunca por tempo indefinido, a não se que a curiosidade do degustador seja maior que a necessidade de beber algo realmente agradável.
Abraço.