Na primeira parte desta matéria, falamos um pouquinho sobre
a cena cervejeira de Portugal a partir do ponto de vista das grandes marcas de
American lagers de massa que dominam o mercado lusitano (nomeadamente, Super
Bock e Sagres). Ora, nesse ponto, Portugal não oferece nenhuma novidade
substancial: as American lagers dominaram todos os mercados cervejeiros do
mundo ao longo do século XX. A coisa só começou a mudar mais ou menos a partir
da década de 1970, quando começou a surgir uma tendência, encabeçada pela
Inglaterra e pelos EUA, de revitalização da diversidade cervejeira tradicional
e criação de novos e surpreendentes estilos e cervejas com produções em pequena
escala. A chamada “revolução da cerveja artesanal” espalhou-se para a Europa e,
na década de 2000, explodiu como fenômeno mundial – como atesta o recente
fortalecimento dessa tendência no Brasil.
Em quase todos os lugares em que essa reorientação do
mercado ocorreu, o protagonismo foi dos pequenos produtores, que decidiram
apostar alto na produção de cervejas de aceitação restrita, gradualmente
ajudando a estabelecer um gosto e uma demanda por essa diversidade cervejeira.
Foi apenas num segundo momento que os estilos cervejeiros menos convencionais
começaram a chamar a atenção das grandes companhias. Hoje, elas estão de olho
nas artesanais no mundo todo. Nos EUA, um dos países em que a “revolução
artesanal” mostrou-se mais teimosamente resistente ao grande capital, a
Anheuser-Busch (parte da globalizada AB-InBev) adquiriu em 2011 a excelente
microcervejaria Goose Island, de Chicago. No Brasil, antes disso, a Schincariol
(atual Kirin-Brasil) já havia comprado três micros: a Devassa (RJ), a Eisenbahn
(SC) e a Baden Baden (SP). Em ambos os casos, as grandes companhias começaram a
produzir, em diversas de suas plantas fabris e em escala nacional, algumas receitas
que antes só eram produzidas localmente. A diversidade cervejeira e as chamadas
“cervejas artesanais” (termo que parece cada dia mais ultrapassado no novo
cenário mundial) estão no centro dos holofotes na cena internacional.
Ora, pois: Portugal é um país com pouca tradição cervejeira,
sempre tendo sido conhecido muito mais por seus vinhos. Apesar disso, nos
últimos dez anos começou também, na terra de Camões, um tímido movimento de
interesse por estilos diversificados. Contudo, o que mais me chamou a atenção
em Portugal é que, diferentemente do que ocorreu nos EUA ou no Brasil, esse
movimento não ocorreu a partir das criações das microcervejarias. São as
grandes cervejarias portuguesas – as mesmas que, por décadas, produziram apenas
American lagers como a Sagres ou a Super Bock – que estão, lentamente,
apostando na diversidade cervejeira. Isso ocorre em escala restrita, com
produtos que ainda parecem ter pouca personalidade diante do olhar de um
entusiasta por artesanais, mas trata-se de uma tendência clara. Vejamos algumas
dessas criações.
A ampliação do leque
da Super Bock
Super Bock Stout
Fonte: uni.unicer.pt |
Atualmente, a Unicer é a companhia que mais tem procurado se
sintonizar com a tendência mundial à diversidade cervejeira e introduzi-la em
Portugal. Desde 2003, a companhia tem ampliado rapidamente sua linha de cervejas
Super Bock: o primeiro rótulo além da American lager a ser introduzido no
mercado português foi a Super Bock Stout – uma verdadeira miscelânea indigesta
de nomenclaturas, já que se trata de uma cerveja que, apesar de conter os
estilos “stout” e “bock” em sua denominação, está mais próxima de uma lager
escura de estilo americano (“American-style dark lager”, segundo o guia do BA).
Disponível no mercado brasileiro, a Super Bock Stout é uma cerveja de perfil
suave, que combina os sabores de uma torrefação discreta de maltes (café e
chocolate em concentração moderada) com algum floral de lúpulo e uma certa
esterificação frutada (banana). O resultado é uma cerveja limpa, fácil de
beber, um tanto adocicada (mas nem de longe tanto quanto as nossas Malzbiers),
lembrando mesmo uma American lager em que o sabor do malte pilsen é substituído
por uma leve torrefação (veja aqui a avaliação completa).
De lá para cá, a Super Bock aumentou seu portfolio para nove
rótulos fixos e três edições limitadas: além da American lager e da Stout,
temos as cervejas sem álcool (clara e escura), a Green (com limão) e a Classic
(uma lager clara mais forte, na linha de uma Dortmunder export). A aproximação
com as artesanais é mais clara na linha premium, de inspiração belga, que conta
com a Super Bock Abadia, a Super Bock Abadia Gold e a Super Bock Abadia Rubi.
Além desses rótulos fixos, a cervejaria produziu três edições especiais, com
rolhas de cortiça e faixa de preço substancialmente mais elevada, sob a
denominação “Cerveja de Autor”: a Double Gold (uma Belgian golden strong ale),
a Doppelbock e a Bohemian Pilsner. Uma clara ampliação do portfolio em direção
à tendência mundial da diversificação cervejeira, incluindo estilos normalmente
associados às microcervejarias, como doppelbock ou as cervejas de estilo belga.
Em todos os casos, os rótulos da Super Bock não apresentam
aquela intensidade e aquela personalidade que esperamos de um produtor
artesanal ou tradicional de pequena escala. Tratam-se de receitas adaptadas
para o mercado de massas, com algumas de suas características mais agressivas
atenuadas para não assustar o consumidor português, ainda pouco habituado a sabores
muito marcantes. De certa forma, a linha da Super Bock lembra um pouco o que a
Bohemia tem feito no Brasil. Diferentemente do que acontece com as microcervejarias,
as grandes empresas arriscam menos (até porque há muito mais capital em jogo). O
interessante é que, a médio e longo prazo, isso parece estar despertando nos
portugueses, aos pouquinhos, o gosto pela diversidade. Cabe aos pequenos
produtores entrarem nessa brecha com cervejas com mais caráter.
O belo cartaz publicitário da Super Bock
Abadia
ressalta as origens do estilo.
Fonte: acontece.wordpress.co |
A meu ver, a Super Bock Abadia é uma cerveja paradigmática
dessa tendência – até porque me lembra muito a nossa Bohemia Abadia. Como esta,
é uma Belgian blond ale que parece inspirada nas características sensoriais da
Leffe Blond, mas com menos intensidade e complexidade. A Super Bock Abadia tem
paladar predominantemente adocicado e mostra aromas maltados dominantes, remetendo
a mel, acompanhados de toques frutados (compota de abacaxi), florais e de
especiarias (talvez algum cravo ao fundo?) típicos das leveduras belgas. Tem
corpo médio para intenso, refletindo a forte doçura residual, e uma pegada um
pouco incômoda de “cerveja forte”, com sensação química e alcoólica um pouco
mais agressivas do que nos melhores exemplares belgas do estilo (clique aqui
para ver a avaliação completa).
Pseudo-brewpubs
Outra tendência que começou nos EUA e que hoje parece se
disseminar pelo mundo todo é a dos brewpubs – ou seja, bares e restaurantes que
produzem as próprias cervejas que servem a sua clientela, fresquinha. Brewpubs
fortalecem a produção local, permitem ao produtor ter um diálogo direto com os
consumidores e oferecem a estes a possibilidade de beberem receitas exclusivas
e sempre frescas. A cidade de Lisboa conta hoje com dois estabelecimentos que
servem chopes “da casa” em estilos diversificados, à maneira de um brewpub: a
República da Cerveja e a Cervejeira Lusitana. Contudo, em vez de produzirem localmente
suas cervejas, ambas as encomendam às grandes cervejarias (as mesmas que
produzem a Sagres e a Super Bock), que produzem chopes e os entregam com exclusividade
às casas.
A taça da República da Cerveja Puro Malte e o ótimo
queijo alentejano que pedi para acompanhá-la.
Fonte: acervo pessoal |
A República da Cerveja localiza-se no Parque das Nações,
região de Lisboa longe do centro, em processo de valorização e modernização.
Trata-se de um agradável restaurante num dos deques à beira do Tejo, um
ambiente agradável e amigável para um happy hour. A linha de chopes da casa é
fornecida pela Unicer (a mesma que produz a Super Bock) e, além dos chopes
claro e escuro, inclui uma Weizenbier, uma Vienna Lager e três chopes sazonais:
uma lager forte de natal, uma cerveja produzida com malte de uísque turfado e
uma receita de primavera que me pareceu, pela descrição, próxima de uma saison.
Infelizmente, nenhum dos rótulos sazonais estava disponível quando visitei a
República da Cerveja, de modo que optei pela República da Cerveja Puro Malte,
uma Vienna lager mais clara, de bonita cor dourada, com perfil de malte
claramente dominante (trazendo mel e cereais) acompanhado de um expressivo
frutado e de algum floral e cítrico de lúpulo. A cerveja é saborosa, mas um
pouco enjoativa devido à ausência de amargor para equilibrar a forte doçura.
Cai bem em pequenas doses, e escoltou bem o queijo alentejano que pedi para
acompanhar (clique aqui para ver a avaliação completa).
Cervejeira Lusitana Spicy.
Fonte: pt-pt.facebook.com |
A Unicer ainda fornece os chopes da casa da CervejeiraLusitana, uma rede de restaurantes cuja unidade no Shopping Vasco da Gama
(próximo ao Parque das Nações) tive a oportunidade de visitar. Trata-se de um
típico restaurante de shopping center, com serviço um tanto mais confuso do que
eu gostaria, mas com uma boa gama de chopes e cervejas exclusivas. Quando
visitei a casa, estavam disponíveis os chopes claro e escuro, além de uma Weizenbier,
uma Weizendunkel e a Cervejeira Lusitana Spicy, uma lager clara de 5.1% de
álcool com adição de gengibre e pimenta malagueta, engarrafada e arrolhada. As
especiarias têm um evidente protagonismo na cerveja, resultando em aromas
intensos lembrando gengibre, lavanda, limão e Pinho-Sol, além de um final marcante,
extremamente picante e apimentado. O paladar é ácido e picante, pedindo
harmonização com alimentos doces, talvez uma das sobremesas à base de creme e
ovos, típicas da culinária portuguesa. Cerveja ousada, mas um tanto desequilibrada
em seus excessos, que sai do lugar-comum mas, com isso, perde um pouco sua
identidade de “cerveja” (clique aqui para ver a avaliação completa).
As microcervejarias
portuguesas
Nem só de grandes cervejarias vive a nascente diversidade de
estilos em Portugal. O país tem um pequeno movimento de hombrewers que, do ano
passado para cá, tem resultado na abertura, ainda tímida, de algumas
microcervejarias regularizadas, com produtos um pouco mais ousados que aqueles
produzidos pelas macros. As duas micros portuguesas que existiam quando visitei
o país em agosto e setembro de 2012 (nomeadamente, a Vadia e a Sovina) localizam-se
no norte do país, no Porto, e são muito difíceis de serem encontradas fora de
sua região de origem. Na capital, consegui localizar (depois de uma certa ajuda
dos entusiastas locais) apenas alguns rótulos da Sovina, e somente em um único bar
escondido no bairro do Chiado (sobre o qual falarei mais adiante).
A Sovina é a marca da cervejaria 3 Cervejeiros, do Porto. A
princípio, fique em dúvida se a palavra “Sovina” teria algum significado
diferente em Portugal, mas meus amigos lusitanos me esclareceram que o termo
faz, como no Brasil, referência ao pão-durismo – embora a cerveja seja
relativamente cara para os padrões portugueses (€3,50 por 330ml). Irreverente.
A cervejaria apresenta seus produtos em garrafas de 330ml (semelhantes aquelas “gorduchinhas”
belgas) e de 750ml (arrolhadas), além do chope (indisponível em Lisboa). Seu
portfolio conta com 6 rótulos diferentes: a Amber (uma bière de garde que,
infelizmente, não consegui encontrar), a Helles (uma Münchner helles), a IPA, a
Stout, a Trigo (uma Weizenbier de estilo bávaro) e a Bock. As duas que consegui
provar (a Stout e a Trigo) exibiram problemas típicos de cervejarias novas, que
ainda não conseguiram afinar 100% o equipamento e o processo produtivo às
receitas. Mas, assim que esses detalhes forem resolvidos, a Sovina tem tudo
para oferecer produtos interessantes e diversificados para um público português
que, até o momento, só conhecia as cervejas de massa e as importadas. A Sovina Trigo
me pareceu interessante e promissora, merecendo uma menção mais extensa.
Estilo: German
Weizenbier
Teor alcoólico: 4.4%
Aparência: cor
amarela queimada, bem opaca e com belo creme fofo e duradouro.
Aromas: exibe
bastante personalidade dentro de um estilo um tanto padronizado, com malte de
trigo muito presente, lembrando aveia, muito fermento e um aroma floral e
cítrico de lúpulo. Cravo e banana, típicos do estilo, mostraram-se presentes,
mas não preponderantes, e um leve toque de defumação (advindo dos fenóis)
deu-lhe mais interesse e personalidade. Infelizmente, a amostra mostrou-se
comprometida por aromas de milho cozido, cebola e esmalte mais intensos do que
o esperado.
Paladar: a acidez
típica do estilo predomina, mas torna-se mais suave, conduzindo a um bem-vindo
final seco e amargo. A doçura é menos relevante.
Sensação na boca:
o corpo é mediano, com certa adstringência de malte e uma carbonatação vívida e
refrescante.
Clique aqui para ver a avaliação completa.
De forma geral, a Sovina Trigo é uma Weizenbier de
personalidade, em que a dupla malte-fermento se impõe mais claramente do que os
ésteres e fenóis (banana-cravo) típicos do estilo. A lupulagem é expressiva, tanto
em aroma quanto no final seco e amargo, o que a torna mais refrescante e leve.
Infelizmente, alguns defeitos de fabricação (especialmente compostos
sulfúricos) comprometeram a degustação e impediram que ela brilhasse como
deveria.
A Sovina é o prenúncio de uma reviravolta microcervejeira
que está só começando em Portugal. Contrariamente ao que ocorreu na maior parte
do mundo, onde as grandes companhias estão tendo de correr atrás da demanda
criada pelas micros, em Portugal parece que só agora as pequenas cervejarias
estão encontrando espaço para se estabelecerem em um mercado cujo interesse
pela diversidade foi criado timidamente pelas grandes empresas. Provando que a
história nem sempre se repete – e que as macrocervejarias não precisam ser
vistas como as grandes vilãs da chamada “revolução artesanal”.
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