terça-feira, 22 de janeiro de 2013

A cena cervejeira em Portugal - Parte II: Uma diversidade recente


Na primeira parte desta matéria, falamos um pouquinho sobre a cena cervejeira de Portugal a partir do ponto de vista das grandes marcas de American lagers de massa que dominam o mercado lusitano (nomeadamente, Super Bock e Sagres). Ora, nesse ponto, Portugal não oferece nenhuma novidade substancial: as American lagers dominaram todos os mercados cervejeiros do mundo ao longo do século XX. A coisa só começou a mudar mais ou menos a partir da década de 1970, quando começou a surgir uma tendência, encabeçada pela Inglaterra e pelos EUA, de revitalização da diversidade cervejeira tradicional e criação de novos e surpreendentes estilos e cervejas com produções em pequena escala. A chamada “revolução da cerveja artesanal” espalhou-se para a Europa e, na década de 2000, explodiu como fenômeno mundial – como atesta o recente fortalecimento dessa tendência no Brasil.

No Brasil, a Eisenbahn é quem melhor representa a 
aliança entre a inovação microcervejeira e uma 
macroestrutura de produção e distribuição. Na imagem, 
a edição comemorativa de 10 anos da marca.
Fonte: sopromocoes.com.br
Em quase todos os lugares em que essa reorientação do mercado ocorreu, o protagonismo foi dos pequenos produtores, que decidiram apostar alto na produção de cervejas de aceitação restrita, gradualmente ajudando a estabelecer um gosto e uma demanda por essa diversidade cervejeira. Foi apenas num segundo momento que os estilos cervejeiros menos convencionais começaram a chamar a atenção das grandes companhias. Hoje, elas estão de olho nas artesanais no mundo todo. Nos EUA, um dos países em que a “revolução artesanal” mostrou-se mais teimosamente resistente ao grande capital, a Anheuser-Busch (parte da globalizada AB-InBev) adquiriu em 2011 a excelente microcervejaria Goose Island, de Chicago. No Brasil, antes disso, a Schincariol (atual Kirin-Brasil) já havia comprado três micros: a Devassa (RJ), a Eisenbahn (SC) e a Baden Baden (SP). Em ambos os casos, as grandes companhias começaram a produzir, em diversas de suas plantas fabris e em escala nacional, algumas receitas que antes só eram produzidas localmente. A diversidade cervejeira e as chamadas “cervejas artesanais” (termo que parece cada dia mais ultrapassado no novo cenário mundial) estão no centro dos holofotes na cena internacional.

Ora, pois: Portugal é um país com pouca tradição cervejeira, sempre tendo sido conhecido muito mais por seus vinhos. Apesar disso, nos últimos dez anos começou também, na terra de Camões, um tímido movimento de interesse por estilos diversificados. Contudo, o que mais me chamou a atenção em Portugal é que, diferentemente do que ocorreu nos EUA ou no Brasil, esse movimento não ocorreu a partir das criações das microcervejarias. São as grandes cervejarias portuguesas – as mesmas que, por décadas, produziram apenas American lagers como a Sagres ou a Super Bock – que estão, lentamente, apostando na diversidade cervejeira. Isso ocorre em escala restrita, com produtos que ainda parecem ter pouca personalidade diante do olhar de um entusiasta por artesanais, mas trata-se de uma tendência clara. Vejamos algumas dessas criações.

A ampliação do leque da Super Bock

Super Bock Stout
Fonte: uni.unicer.pt
Atualmente, a Unicer é a companhia que mais tem procurado se sintonizar com a tendência mundial à diversidade cervejeira e introduzi-la em Portugal. Desde 2003, a companhia tem ampliado rapidamente sua linha de cervejas Super Bock: o primeiro rótulo além da American lager a ser introduzido no mercado português foi a Super Bock Stout – uma verdadeira miscelânea indigesta de nomenclaturas, já que se trata de uma cerveja que, apesar de conter os estilos “stout” e “bock” em sua denominação, está mais próxima de uma lager escura de estilo americano (“American-style dark lager”, segundo o guia do BA). Disponível no mercado brasileiro, a Super Bock Stout é uma cerveja de perfil suave, que combina os sabores de uma torrefação discreta de maltes (café e chocolate em concentração moderada) com algum floral de lúpulo e uma certa esterificação frutada (banana). O resultado é uma cerveja limpa, fácil de beber, um tanto adocicada (mas nem de longe tanto quanto as nossas Malzbiers), lembrando mesmo uma American lager em que o sabor do malte pilsen é substituído por uma leve torrefação (veja aqui a avaliação completa).

De lá para cá, a Super Bock aumentou seu portfolio para nove rótulos fixos e três edições limitadas: além da American lager e da Stout, temos as cervejas sem álcool (clara e escura), a Green (com limão) e a Classic (uma lager clara mais forte, na linha de uma Dortmunder export). A aproximação com as artesanais é mais clara na linha premium, de inspiração belga, que conta com a Super Bock Abadia, a Super Bock Abadia Gold e a Super Bock Abadia Rubi. Além desses rótulos fixos, a cervejaria produziu três edições especiais, com rolhas de cortiça e faixa de preço substancialmente mais elevada, sob a denominação “Cerveja de Autor”: a Double Gold (uma Belgian golden strong ale), a Doppelbock e a Bohemian Pilsner. Uma clara ampliação do portfolio em direção à tendência mundial da diversificação cervejeira, incluindo estilos normalmente associados às microcervejarias, como doppelbock ou as cervejas de estilo belga.

Em todos os casos, os rótulos da Super Bock não apresentam aquela intensidade e aquela personalidade que esperamos de um produtor artesanal ou tradicional de pequena escala. Tratam-se de receitas adaptadas para o mercado de massas, com algumas de suas características mais agressivas atenuadas para não assustar o consumidor português, ainda pouco habituado a sabores muito marcantes. De certa forma, a linha da Super Bock lembra um pouco o que a Bohemia tem feito no Brasil. Diferentemente do que acontece com as microcervejarias, as grandes empresas arriscam menos (até porque há muito mais capital em jogo). O interessante é que, a médio e longo prazo, isso parece estar despertando nos portugueses, aos pouquinhos, o gosto pela diversidade. Cabe aos pequenos produtores entrarem nessa brecha com cervejas com mais caráter.

O belo cartaz publicitário da Super Bock 
Abadia ressalta as origens do estilo.
Fonte: acontece.wordpress.co
A meu ver, a Super Bock Abadia é uma cerveja paradigmática dessa tendência – até porque me lembra muito a nossa Bohemia Abadia. Como esta, é uma Belgian blond ale que parece inspirada nas características sensoriais da Leffe Blond, mas com menos intensidade e complexidade. A Super Bock Abadia tem paladar predominantemente adocicado e mostra aromas maltados dominantes, remetendo a mel, acompanhados de toques frutados (compota de abacaxi), florais e de especiarias (talvez algum cravo ao fundo?) típicos das leveduras belgas. Tem corpo médio para intenso, refletindo a forte doçura residual, e uma pegada um pouco incômoda de “cerveja forte”, com sensação química e alcoólica um pouco mais agressivas do que nos melhores exemplares belgas do estilo (clique aqui para ver a avaliação completa).

Pseudo-brewpubs

Outra tendência que começou nos EUA e que hoje parece se disseminar pelo mundo todo é a dos brewpubs – ou seja, bares e restaurantes que produzem as próprias cervejas que servem a sua clientela, fresquinha. Brewpubs fortalecem a produção local, permitem ao produtor ter um diálogo direto com os consumidores e oferecem a estes a possibilidade de beberem receitas exclusivas e sempre frescas. A cidade de Lisboa conta hoje com dois estabelecimentos que servem chopes “da casa” em estilos diversificados, à maneira de um brewpub: a República da Cerveja e a Cervejeira Lusitana. Contudo, em vez de produzirem localmente suas cervejas, ambas as encomendam às grandes cervejarias (as mesmas que produzem a Sagres e a Super Bock), que produzem chopes e os entregam com exclusividade às casas.

A taça da República da Cerveja Puro Malte e o ótimo 
queijo alentejano que pedi para acompanhá-la.
Fonte: acervo pessoal
A República da Cerveja localiza-se no Parque das Nações, região de Lisboa longe do centro, em processo de valorização e modernização. Trata-se de um agradável restaurante num dos deques à beira do Tejo, um ambiente agradável e amigável para um happy hour. A linha de chopes da casa é fornecida pela Unicer (a mesma que produz a Super Bock) e, além dos chopes claro e escuro, inclui uma Weizenbier, uma Vienna Lager e três chopes sazonais: uma lager forte de natal, uma cerveja produzida com malte de uísque turfado e uma receita de primavera que me pareceu, pela descrição, próxima de uma saison. Infelizmente, nenhum dos rótulos sazonais estava disponível quando visitei a República da Cerveja, de modo que optei pela República da Cerveja Puro Malte, uma Vienna lager mais clara, de bonita cor dourada, com perfil de malte claramente dominante (trazendo mel e cereais) acompanhado de um expressivo frutado e de algum floral e cítrico de lúpulo. A cerveja é saborosa, mas um pouco enjoativa devido à ausência de amargor para equilibrar a forte doçura. Cai bem em pequenas doses, e escoltou bem o queijo alentejano que pedi para acompanhar (clique aqui para ver a avaliação completa).

Cervejeira Lusitana Spicy.
Fonte: pt-pt.facebook.com
A Unicer ainda fornece os chopes da casa da CervejeiraLusitana, uma rede de restaurantes cuja unidade no Shopping Vasco da Gama (próximo ao Parque das Nações) tive a oportunidade de visitar. Trata-se de um típico restaurante de shopping center, com serviço um tanto mais confuso do que eu gostaria, mas com uma boa gama de chopes e cervejas exclusivas. Quando visitei a casa, estavam disponíveis os chopes claro e escuro, além de uma Weizenbier, uma Weizendunkel e a Cervejeira Lusitana Spicy, uma lager clara de 5.1% de álcool com adição de gengibre e pimenta malagueta, engarrafada e arrolhada. As especiarias têm um evidente protagonismo na cerveja, resultando em aromas intensos lembrando gengibre, lavanda, limão e Pinho-Sol, além de um final marcante, extremamente picante e apimentado. O paladar é ácido e picante, pedindo harmonização com alimentos doces, talvez uma das sobremesas à base de creme e ovos, típicas da culinária portuguesa. Cerveja ousada, mas um tanto desequilibrada em seus excessos, que sai do lugar-comum mas, com isso, perde um pouco sua identidade de “cerveja” (clique aqui para ver a avaliação completa).

As microcervejarias portuguesas

Nem só de grandes cervejarias vive a nascente diversidade de estilos em Portugal. O país tem um pequeno movimento de hombrewers que, do ano passado para cá, tem resultado na abertura, ainda tímida, de algumas microcervejarias regularizadas, com produtos um pouco mais ousados que aqueles produzidos pelas macros. As duas micros portuguesas que existiam quando visitei o país em agosto e setembro de 2012 (nomeadamente, a Vadia e a Sovina) localizam-se no norte do país, no Porto, e são muito difíceis de serem encontradas fora de sua região de origem. Na capital, consegui localizar (depois de uma certa ajuda dos entusiastas locais) apenas alguns rótulos da Sovina, e somente em um único bar escondido no bairro do Chiado (sobre o qual falarei mais adiante).

A Sovina é a marca da cervejaria 3 Cervejeiros, do Porto. A princípio, fique em dúvida se a palavra “Sovina” teria algum significado diferente em Portugal, mas meus amigos lusitanos me esclareceram que o termo faz, como no Brasil, referência ao pão-durismo – embora a cerveja seja relativamente cara para os padrões portugueses (€3,50 por 330ml). Irreverente. A cervejaria apresenta seus produtos em garrafas de 330ml (semelhantes aquelas “gorduchinhas” belgas) e de 750ml (arrolhadas), além do chope (indisponível em Lisboa). Seu portfolio conta com 6 rótulos diferentes: a Amber (uma bière de garde que, infelizmente, não consegui encontrar), a Helles (uma Münchner helles), a IPA, a Stout, a Trigo (uma Weizenbier de estilo bávaro) e a Bock. As duas que consegui provar (a Stout e a Trigo) exibiram problemas típicos de cervejarias novas, que ainda não conseguiram afinar 100% o equipamento e o processo produtivo às receitas. Mas, assim que esses detalhes forem resolvidos, a Sovina tem tudo para oferecer produtos interessantes e diversificados para um público português que, até o momento, só conhecia as cervejas de massa e as importadas. A Sovina Trigo me pareceu interessante e promissora, merecendo uma menção mais extensa.


Estilo: German Weizenbier
Teor alcoólico: 4.4%
Aparência: cor amarela queimada, bem opaca e com belo creme fofo e duradouro.
Aromas: exibe bastante personalidade dentro de um estilo um tanto padronizado, com malte de trigo muito presente, lembrando aveia, muito fermento e um aroma floral e cítrico de lúpulo. Cravo e banana, típicos do estilo, mostraram-se presentes, mas não preponderantes, e um leve toque de defumação (advindo dos fenóis) deu-lhe mais interesse e personalidade. Infelizmente, a amostra mostrou-se comprometida por aromas de milho cozido, cebola e esmalte mais intensos do que o esperado.
Paladar: a acidez típica do estilo predomina, mas torna-se mais suave, conduzindo a um bem-vindo final seco e amargo. A doçura é menos relevante.
Sensação na boca: o corpo é mediano, com certa adstringência de malte e uma carbonatação vívida e refrescante.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

De forma geral, a Sovina Trigo é uma Weizenbier de personalidade, em que a dupla malte-fermento se impõe mais claramente do que os ésteres e fenóis (banana-cravo) típicos do estilo. A lupulagem é expressiva, tanto em aroma quanto no final seco e amargo, o que a torna mais refrescante e leve. Infelizmente, alguns defeitos de fabricação (especialmente compostos sulfúricos) comprometeram a degustação e impediram que ela brilhasse como deveria.

A Sovina é o prenúncio de uma reviravolta microcervejeira que está só começando em Portugal. Contrariamente ao que ocorreu na maior parte do mundo, onde as grandes companhias estão tendo de correr atrás da demanda criada pelas micros, em Portugal parece que só agora as pequenas cervejarias estão encontrando espaço para se estabelecerem em um mercado cujo interesse pela diversidade foi criado timidamente pelas grandes empresas. Provando que a história nem sempre se repete – e que as macrocervejarias não precisam ser vistas como as grandes vilãs da chamada “revolução artesanal”.

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