Pelas partes anteriores desta matéria sobre a cena
cervejeira lusitana (veja um pouco sobre as grandes marcas e a diversificação de estilos no mercado português), acho que o leitor do blog já terá percebido
que Portugal não oferece uma cena exuberante para o apreciador de cervejas. De
fato, os portugueses estão acordando apenas lentamente para os prazeres que o
mundo cervejeiro é capaz de proporcionar. Como resultado, é preciso garimpar um
pouco para descobrir os picos locais. Como, felizmente, eu tinha dois meses e
contei com a ajuda de alguns amigos cervejeiros (em especial Fernando Cardoso,
do blog À base de cerveja, e Bruno Aquino, do portal Cervejas do Mundo), pude
descobrir e visitar alguns pontos de interesse para os amantes de cerveja e
compartilho com vocês um breve roteiro para quem for visitar Lisboa!
Diversidade de rótulos importados no El Corte
Inglés.
Sim, aquela vermelhinha no canto inferior
esquerdo é uma legítima
Brahma!
Fonte: acervo pessoal |
Devo confessar que, durante os dois meses em que morei em
Lisboa, eu bati carteirinha no El Corte Inglés, que é uma enorme loja de
departamento próxima à estação São Sebastião de metrô. A parte que nos
interessa fica no subsolo: o supermercado da loja possui uma ótima seleção de cervejas
importadas, com destaque para uma boa variedade de belgas, além de algumas
norte-americanas, alemãs e inglesas. Os preços são os melhores que você
encontrará na capital. Há mais alguns rótulos escondidos nas adegas climatizadas
do empório da loja, mas o grosso fica nas prateleiras do supermercado mesmo. Não
deixe de visitar também as seções de vinhos e queijos regionais. Uma ótima
descoberta que a loja me proporcionou foi a belga Gulden Draak, uma excelente dark
strong ale que se encontra irregularmente no Brasil. Decididamente doce,
pesada, oleosa e licorosa, ela equilibra sua sensação de doçura com uma gostosa
picância de especiarias e álcool, como em um licor. Tem aroma complexo, em que
o forte caramelado do malte é enriquecido com especiarias (alcaçuz, canela) e um
perfil frutado lembrando cereja e vinho. Não sei se fiquei sugestionado pelas
bebidas locais, mas ela me sugeriu vivamente a ginja, um licor de cerejas que é
típico de Portugal.
Cruzamento das avenidas António
Augusto de Aguiar, Marquês de Fronteira e Sidónio Pais.
Horários de funcionamento: seg.-qui.:
10:00-22:00; sex.-sáb.: 10:00-23:30; dom. e feriados: 10:00-20:00
Fachada do British Bar ao entardecer.
Fonte: acervo pessoal |
O British Bar é um pub de estilo britânico que consta ter
sido no passado um reduto de marinheiros, ao lado do Cais do Sodré e bem
próximo do centro histórico e turístico de Lisboa. Tem ambiente despretensioso
e mesas de madeira onde lisboetas e turistas convivem durante o happy-hour,
além do balcão de onde saem chopes belgas e locais. O destaque da casa são os
rótulos da tradicional cervejaria inglesa Samuel Smith – o bar não cobra barato
por eles, mas oferece a maior seleção da marca na cidade. Quando estive lá,
tive a oportunidade de provar a excelente Samuel Smith’s Imperial Stout, uma
stout imperial bem britânica, para nos relembrar como era o estilo favorito dos
russos antes do extremismo das interpretações norte-americanas. Com 7% de
álcool, destaca-se pela incrível sensação na boca, com corpo impecavelmente
cremoso, e pela doçura bem equilibrada pelo amargor secundário. Chocolate e
bananas passas escoltam nuances mais sutis de torrefação (café, caramelo,
queimado) e um elegante lúpulo inglês (terroso, flor de laranjeira). Uma
imperial stout muito gentil, acolhedora, que não agride nem um pouco.
Rua Bernardino da Costa, n. 52
Telefone: +351 213 422 367
Fecha aos
domingos
Fachada do O’Gilins Irish Pub.
Fonte: acervo pessoal |
Um simpático pub irlandês localizado próximo ao Cais do
Sodré, talvez a uns 100 ou 200 metros do British Bar. O ambiente é
aconchegante, com mesas de madeira e um bem-vindo jazz ao vivo em algumas
noites. O carro-chefe da casa é o chope Guinness, como não poderia deixar de
ser, mas há outras opções, como as belgas Duvel e Chimay Bleue (precisa mais?).
A cada cerveja pedida, o bar oferece, como cortesia, uma “tapa”, ou seja, um
pequeno tira-gosto. Aproveitei minha visita para revisitar a clássica Duvel: a
cerveja que deu origem ao estilo Belgian golden strong ale é diabolicamente
fácil de beber, leve, seca, aromática e fresca, lembrando de longe um bom
espumante. Florais e apimentados típicos dos lúpulos Saaz e Styrian Golding
combinam-se com frutas frescas (peras, banana, laranja), enquanto o corpo leve
e seco e o amargor delicado potencializam a drinkability. Um clássico,
imperdível para qualquer apreciador de cervejas.
Rua dos Remolares, n. 8-10
É fácil perder a discreta fachada
enquanto se galga
a íngreme ladeira.
Fonte: acervo pessoa |
No elegante bairro do Chiado, na parte alta, fica um restaurante
e mercearia de aparência charmosamente rústica, que opta por dar destaque aos
produtos artesanais e tradicionais da cozinha e da baixa gastronomia portuguesa.
Daí possivelmente o fato de ser o único lugar da capital em que eu consegui
encontrar cerveja artesanal portuguesa – especificamente, a Sovina, sobre a
qual falei um pouco na parte anterior desta matéria. Aproveitei minha visita
para degustar a dry stout da cervejaria, acompanhada de um couvert com azeitonas, pães e azeite português. A Sovina Stout tem
problemas de fabricação típicos de microcervejarias recém-instaladas, ainda em
fase de adaptação das receitas caseiras para o equipamento industrial (me
lembrou algumas caseiras e artesanais no Brasil há uns 4 ou 5 anos atrás). Apesar
disso, mostra seu potencial com um perfil bem diversificado de sabores de
torrefação, iniciando o gole com um chocolate que dá lugar a café e cinzas em
um final bem seco, típico do estilo. O corpo é leve para médio, e o amargor
predominante é perturbado por uma certa acidez lática que prejudicou sua
pureza. Valeria conferir como andam os novos lotes da Sovina Stout.
Rua das Flores, n. 103
Telefone: +351 213 479 418
Horário de funcionamento: seg.-sex.: 12:00-24:00; sáb.: 16:00-24:00
Café Medeia
No shopping center Dolce Vita, ao lado da estação Saldanha
do metrô, funciona o cinema Medeia, cujo restaurante e café, bem ao lado das
bilheterias, é um dos melhores lugares para curtir uma boa cerveja em Lisboa. O
cardápio conta com lanches, pratos e porções para acompanhar uma carta de
cervejas extensa para os padrões lisboetas, que inclui rótulos belgas, ingleses
e alemães a bons preços. Perfeito para um copo de boa cerveja antes da sessão
de cinema. Aproveitei minha visita para provar mais um rótulo da inglesa Samuel
Smith, a Samuel Smith’s India Ale, uma IPA leve e harmoniosa, que prima pela
interação afinada entre o malte ricamente acastanhado e o lúpulo delicadamente
britânico, trazendo frescor frutado e floral para acompanhar o
terroso-apimentado típico das variedades inglesas. A doçura do malte equilibra
o amargor, que predomina sem muita intensidade no início e no residual. Uma IPA
bem equilibrada, na qual os fanáticos por lúpulo talvez sintam falta de mais
amargor.
Centro Comercial Monumental Dolce
Vita
Avenida Fontes Pereira de Melo, n.
51
Telefone: +351 213 143 396
Horários de funcionamento:
12:30-24:00
No calor, a pedida são as mesas
colocadas do lado
de fora.
Fonte: http://www.wingmanid.com |
Trata-se de um “pseudo-brewpub”, restaurante e cervejaria que
tem uma linha exclusiva de chopes que, no entanto, não é produzida pela casa,
mas sim encomendada para a Unicer, a mesma companhia que produz a lager de
massa Super Bock. Localizada no Parque das Nações, longe do centro turístico e
em uma área em modernização, tem um amplo e agradável deck à beira do Tejo,
onde se podem degustar porções, sanduíches e os chopes da casa. Há ofertas
sazonais que pareceram ser bastante interessantes, como uma lager forte de
natal e uma cerveja com maltes de uísque turfados, mas não estavam disponíveis
no verão, quando visitei o local. Pude provar a República da Cerveja Puro Malte, uma lager clara um pouco mais intensa, bem no perfil de uma Vienna lager
mais clara, bastante doce, com notas expressivas de mel acompanhadas de um certo
frutado remetendo a abacaxi e um floral de lúpulo bastante convencional. De
corpo intenso, pesada, ela é saborosa mas um pouco enjoativa, não pedindo um
segundo copo.
Jardim das Tágides, lt. 2.26.01,
Parque das Nações
Telefone: +351 218 922 590
A Cervejeira Lusitana é uma rede de lanchonetes com várias
unidades na região de Lisboa, que serve uma linha exclusiva de chopes e
cervejas produzidos sob licença pela Unicer. A unidade que visitei fica no
shopping center Vasco da Gama e tem o ambiente meio “pasteurizado” de um típico
restaurante de shopping, com serviço um tanto confuso e o incômodo vai-e-vem
dos passantes que visitam lojas e a praça de alimentação. A linha de chopes e
cervejas inclui alguns poucos produtos que saem do lugar-comum, como a Lusitana Spicy, pesadamente aromatizada com gengibre e pimenta malagueta, e a Cervejeira Lusitana Weizen Dunkel. Esta é uma cerveja de trigo bávara escura de baixa
tipicidade, adaptada para o paladar do consumidor português médio, que parece
ter sido pensada como uma variação do clássico “chope escuro” adocicado, com
maior acidez e corpo e algum aroma frutado complementar. O cravo-banana típico
do estilo fica um pouco apagado diante do acastanhado e caramelado do malte,
mas ela ainda tem alguma complexidade aromática interessante.
Centro Vasco da Gama, lj. 3029
Telefone: +351 218 968 162
Fachada do Museu da Cerveja, com mesas na calçada.
Fonte: acervo pessoal |
O recém-inaugurado Museu da Cerveja fica na Praça do
Comércio (também conhecida como Terreiro do Paço), bem no coração do centro
turístico da cidade, às margens do Tejo e de frente para as imponentes arcadas construídas
pela monarquia no século XVIII. No térreo, funciona um restaurante-cervejaria
em que frutos do mar são escoltados pelo chope exclusivo da casa, em três
estilos (American lager, dark American lager e Vienna lager, todos produzidos
pela Sociedade Central de Cervejas e Bebidas, a mesma que produz a Sagres), e
por rótulos de Portugal, das ilhas atlânticas e de alguns países de língua
oficial portuguesa, como Brasil e Angola. Os aficionados lisboetas tinham
esperança de ver no Museu da Cerveja alguma cerveja artesanal brasileira, mas o
cardápio só apresenta Brahma e Skol. A maior atração é o piso superior, onde
funciona uma instituição museológica dedicada à história da cerveja nos países
lusófonos, sobre a qual já comentei aqui. A cerveja servida ao final da visita
ao museu, a Cerveja do Museu Bohemia, apesar do que o nome sugere, não é uma
Bohemian pilsner, estando mais para uma Vienna lager forte, bem adocicada e
frutada, com uma combinação de caramelo e maçãs vermelhas e um final levemente
amargo para equilibrar sua doçura.
Terreiro do Paço, Ala Nascente, n. 62-65.
Telefone: +351 210 987 656
Horário de funcionamento: 09:00-02:00
Impossível não sacar qual a especialidade da casa.
Fonte: acervo pessoal |
Por esta eu não esperava. É sabido que um dos doces mais
tradicionais da culinária portuguesa é o pastel de nata, cujos representantes
mais famosos e tradicionais são servidos quentinhos nas pastelarias do bairro
de Belém (não ignore o excessivamente turístico Pastéis de Belém, ao lado do
Convento dos Jerônimos, mas aventure-se pelo bairro procurando as pastelarias
menores e poderá ter boas surpresas). E uma pastelaria do bairro, chamada
simplesmente Pastéis de Cerveja, em homenagem ao seu carro-chefe,
especializou-se num produto que une essa especialidade portuguesa ao nosso
querido fermentado de cevada. Trata-se de um curioso pastel que leva cerveja
como ingrediente, com recheio que parece ser feito com ovos e cerveja lager
clara e uma suave cobertura de amêndoas. É uma das poucas comidas que já provei
em que realmente se pode sentir uma cerveja tão leve quanto uma American lager,
mostrando um sabor de malte fresco e uma doçura de cerveja oxidada (como aquela
que fica no copo de um dia para o outro) que, no contexto do pastel, caiu como
uma luva. A pastelaria serve, para acompanhar, o chope Super Bock, que fornece
uma boa harmonização por semelhança. O dono da pastelaria parece absolutamente
alheio ao fato de que existem outros estilos cervejeiros que ele poderia usar
para variações do seu pastel, mas eu não pude deixar de imaginar o que seria um
pastel de cerveja feito com uma porter, uma Münchner dunkel ou uma dubbel.
Rua
de Belém, n. 15
Telefone:
+351 213 634 338
Valeu, estou a ir para El Corte Ingles, eu sinto falta de proper beer.
ResponderExcluirCheers!
Aproveite, e boas cervejas!
ExcluirAbraços,
Alexandre A. Marcussi