Para um brasileiro, as diferenças entre as variantes da
língua portuguesa faladas dos dois lados do Oceano Atlântico soam um tanto
anedóticas, talvez matéria para as clássicas piadas de português ou para
quadros humorísticos na televisão. Apenas a partir de uma imersão na cultura
lusitana se pode apreciar mais adequadamente os mistérios e os charmes do
português da terra de Camões, tanto nos seus aparentes arcaísmos (note-se que os
portugueses também acham que a língua falada no Brasil soa antiquada em muitos
aspectos) e em sua pronúncia austera quanto nos seus deliciosos vocábulos
distintivos.
Dentre essas palavras caracteristicamente lusitanas, uma me
causou um misto de nostalgia e comoção quando estive em Portugal: “tertúlia”.
Como nos conta o dicionário Houaiss, uma tertúlia pode ser simplesmente um “agrupamento,
reunião de parentes e amigos”. No Brasil, porém, é mais comum usá-la no sentido
de uma “pequena agremiação literária, menor do que as academias e arcádias”,
com um tom decididamente arcaizante. Era uma palavra que costumávamos usar na
época da faculdade para imprimir aos nossos encontros estudantis uma aura
ironicamente pomposa, bem ao gosto do duvidoso senso de humor dos
historiadores. Foi, pois, com muita alegria que aceitei o convite do caro amigo
Fernando Cardoso (do blog À base de cerveja) para participar de uma das
reuniões de sua “tertúlia cervejeira” em Lisboa. O anfitrião da reunião foi
Bruno Aquino, administrador do portal cervejeiro Cervejas do Mundo. João
complementou o time da noite e foi responsável por me levar de volta para casa
numa altura da noite em que, sinceramente, eu não saberia mais me localizar no
metrô de Lisboa com a eficácia necessária.
João, eu, Fernando e Bruno: um brinde lusófono à
cerveja!
Fonte: acervo pessoal |
Fernando, cervejeiro de longa data, havia sido preciso ao me
mostrar o caminho das pedras em busca de cervejas na capital (e eu repassei as
dicas dele, junto com outras minhas, na postagem anterior). Decidi retribuir
pelo menos um pouco de sua hospitalidade levando para compartilhar com a
tertúlia – da qual já me sinto parte integrante – algumas delícias artesanais
brasileiras: da mineira Wäls, levei a Quadruppel (uma das minhas preferidas de
longa data) e a então mais recente novidade da cervejaria, a Petroleum. Da
paulista Colorado, uma garrafa da Vixnu. Uma pequena, mas bem selecionada
amostra das maravilhas que o novo cenário cervejeiro brasileiro tem criado.
A Colorado Vixnu impressionou bastante os confrades
lisboetas e, apesar de ter passado algumas semanas sem refrigeração no
implacável calor do verão português, fez muito bonito em meio a uma seleção que
incluía belgas, alemãs e norte-americanas. Já tive a oportunidade de prestar
homenagem a esta criação da Colorado aqui no blog antes. Trata-se de uma IPA
imperial festiva e bastante tropical: no lugar da tradicional secura e leveza
das interpretações clássicas do estilo, a Colorado optou por equilibrar a
potência do álcool e dos lúpulos com uma doçura de maltes pesada, caramelada e
indulgente, com sensação de geleia de frutas tropicais. O aroma consegue
preservar uma ótima complexidade dos lúpulos empregados, com tons frutados,
florais e herbais perfumados em deliciosa evidência. É uma pena que essa
cerveja não tenha sido mantida nas prateleiras com constância pelos mesmos
preços acessíveis da época do lançamento.
No ano em que a mineira Wäls abocanhou o prêmio de melhor
cervejaria da América do Sul no South Beer Cup (leia aqui sobre minha visita à
cervejaria), eu não poderia deixar de levar alguma coisa dos irmãos Carneiro
aos amigos lisboetas. Além da Wäls Quadruppel, cerveja que sempre me cativou com
sua forte doçura caramelada e de frutas, suas especiarias e seu inconfundível
toque que cachaça (veja aqui uma pequena degustação vertical que fiz dela),
optei por levar uma Petroleum, cerveja feita em parceria com os cervejeiros
caseiros da Dum, do Paraná, e que consagrou a Wäls no South Beer Cup. A Wäls Petroleum
foi talvez o mais festejado lançamento brasileiro de 2012, e de fato ela
impressiona pelo seu corpo gargantuano, intenso e incrivelmente acetinado, e
pela combinação do indulgente aroma de frutas passas com a potente torrefação
dos maltes, com chocolate amargo em evidência sobre nuances de café, caramelo e
castanhas. Apesar da riqueza do aroma, na boca ela tem um final amargo e seco,
austero. A potência dos 12% de álcool lhe dá um caráter licoroso que lembra
conhaque, enquanto a refermentação na garrafa traz um toque floral com
remissões “belgas” – marca da cervejaria (veja aqui a avaliação completa).
Infelizmente, porém, a garrafa que levei não chegou nas melhores condições a
Portugal, de modo que a tertúlia lusitana pode aproveitar pouco de tudo isso
que a Petroleum nos oferece normalmente.
Algumas das cervejas da noite.
Fonte: acervo pessoal |
Bruno, Fernando e João me mostraram, com alegria genuína e
desinteressada, o diálogo aberto e amigável, de igual para igual, que pode
existir entre brasileiros e portugueses em torno de um copo de cerveja. Entre
uma e outra taça, petiscamos especialidades portuguesas, incluindo um ótimo
frango assado picante que o Bruno encomendou especialmente para a noite e que
foi um acompanhamento perfeito para as cervejas pesadas e marcantes que
degustamos. Além disso, é claro, conversamos sobre o que significa beber
cervejas no Brasil e em Portugal. Devo reconhecer que Bruno Aquino me
impressionou deveras com seu conhecimento sobre a cena cervejeira brasileira:
mesmo sem poder beber as artesanais patropis, ele conhece bem o mercado e as
cervejarias há mais tempo do que boa parte dos entusiastas nacionais, já que
tem falado delas em seu portal pelo menos desde 2008 (quando conheci o site).
Conversa vai, conversa vem, e não pudemos deixar de falar
sobre o que parecia ser a questão mais intrigante de minhas incursões
cervejeiras à capital portuguesa. Por que o cenário cervejeiro português, em
plena Europa ocidental, era tão árido em um momento em que cada vez mais novos
mercados se abrem à bebida? Minha hipótese inicial girava em torno da percepção
de que os vinhos portugueses tinham altíssima qualidade e preço muito
acessível: enquanto uma long neck de uma artesanal ou importada ultrapassava os
3 euros em Lisboa, era possível encontrar garrafas de vinhos bastante competentes
pelo mesmo preço, na gôndola ao lado. Eu mesmo, durante minha estadia, troquei
a cerveja pelo vinho em diversas ocasiões por considerações financeiras. Mas
Fernando Cardoso apontou um detalhe interessante, ao qual eu nunca tinha
atentado: a Itália é um país de tradição igualmente vinícola, em que as
cervejas são caríssimas, e mesmo assim tem sido um dos palcos mais férteis da “revolução
artesanal”.
Talvez a Espanha, de tradição igualmente vinicultora, e mais
próxima de Portugal do ponto de vista cultural, econômico e histórico, forneça
um contraponto mais produtivo. E a verdade é que, diferentemente do que ocorre
em Portugal, a Espanha vive hoje, em pequena escala, uma explosão de ousadia
das cervejarias artesanais. A prova desse argumento, deliciosamente infalível,
veio à mesa na sequência, quando abrimos uma garrafa de uma das crias da
microcervejaria espanhola Yria, produzida na cervejaria Regia Toledo. A GuineaPigs! 95 Wood Aged Imperial IPA é uma cerveja ousada, absolutamente fiel ao
experimentalismo da escola norte-americana, que tem feito cada vez mais adeptos
do lado de lá do Atlântico. Trata-se de uma IPA imperial, menos pelo teor
alcoólico (de 7.5%) e mais pelo assertivo amargor (95 IBUs). O toque final vem
do fato de que a cerveja matura com carvalho para pegar aquela secura final da
madeira. Segundo pude auferir, a cervejaria emprega 7 diferentes variedades de
lúpulo na receita (com predomínio claro de variedades norte-americanas) e usa
chips de carvalho francês e cedro durante 14 dias na maturação da cerveja. Pode
parecer pouco, mas o resultado é bastante evidente.
Fonte: elgatoquebebiacerveza.blogspot.com |
Estilo: IPA
dupla/imperial
Teor alcoólico:
7.5%
Aparência: coloração
cobre amarronzada, transparente, com boa espuma
Aromas: uma
porrada de lúpulos americanos no nariz e no ataque no boca, trazendo um forte
herbal com remissões a capim-cidreira e grama molhada, além de um frutado doce
de manga, ao lado de um certo caramelado doce de malte. Contudo, no final, a
madeira subitamente predomina sobre os lúpulos e o malte, imprimindo uma secura
torrada de madeira tostada muito perceptível. Havia um toque sulfúrico de milho
verde que atrapalhou um pouco seu frescor.
Paladar: entrada mais
doce e melada, lembrando geleia, seguida de um final abruptamente amargo, seco,
com alguma sensação oleosa, advindo da madeira.
Sensação na boca:
o corpo é mediano, com sensação mineral bem presente. Apesar do estágio em
madeira, há poucos taninos.
Veja aqui a avaliação completa.
Curiosa mistura da sensação de frescor dos lúpulos
norte-americanos com a secura tostada da madeira. Combinação ousada e
interessantíssima, mas que deixa algumas pontas soltas que poderiam ser
aprimoradas. Normalmente, quando se pensa em uma cerveja com passagem por
madeira, pensa-se nas sensações abaunilhadas, licorosas ou oxidativas trazidas
pela maturação em barris; neste caso, porém, os fatores cruciais são a secura e
a tosta da madeira, que se evidenciam até de forma um pouco agressiva. A grande
variedade de lúpulos da receita acaba não se traduzindo em tanta complexidade,
antes compondo um perfil aromático que vai se tornando genericamente “herbal”
com o tempo. Contudo, a receita tem mérito suficiente para merecer atenção para
além do mero fato da ousadia.
A camiseta do Fernando dificilmente poderia ter
sido mais adequada a
esta reflexão!
Fonte:
acervo
pessoal |
Pois bem, a Guinea Pigs! pareceu-me, naquele momento, a
prova de que pode haver uma coexistência pacífica entre a tradição vinícola e a
revolução cervejeira artesanal. Eu mesmo me considero um apreciador tanto de
cervejas quanto de vinhos, embora meu repertório vínico seja lamentavelmente
mais restrito do que minha experiência cervejeira. Essa “trégua” na batalha dos
fermentados parece já ter se convertido em um cenário de amigável prosperidade
na Itália, e aparentemente os espanhóis seguem o mesmo caminho. Resta aos nossos
colegas lusitanos torcer e lutar para que Portugal siga pelo mesmo caminho, a
seu devido tempo e modo!
Alexandre
ResponderExcluirFui um prazer ter-te por cá em Portugal. Quando voltas? :-)
Fernando
Fernando, como sabes bem, o prazer foi todo meu. Para um historiador que, como eu, trabalha com temas relacionados ao Império Português, sempre há oportunidades de congressos e bolsas de pesquisa para Portugal. Quando eu estiver de volta a Lisboa, podes ter certeza de que levarei mais alguma brasileira para dividirmos!
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