sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A cena cervejeira em Portugal - Parte IV: Uma tertúlia lusitana


Para um brasileiro, as diferenças entre as variantes da língua portuguesa faladas dos dois lados do Oceano Atlântico soam um tanto anedóticas, talvez matéria para as clássicas piadas de português ou para quadros humorísticos na televisão. Apenas a partir de uma imersão na cultura lusitana se pode apreciar mais adequadamente os mistérios e os charmes do português da terra de Camões, tanto nos seus aparentes arcaísmos (note-se que os portugueses também acham que a língua falada no Brasil soa antiquada em muitos aspectos) e em sua pronúncia austera quanto nos seus deliciosos vocábulos distintivos.

Dentre essas palavras caracteristicamente lusitanas, uma me causou um misto de nostalgia e comoção quando estive em Portugal: “tertúlia”. Como nos conta o dicionário Houaiss, uma tertúlia pode ser simplesmente um “agrupamento, reunião de parentes e amigos”. No Brasil, porém, é mais comum usá-la no sentido de uma “pequena agremiação literária, menor do que as academias e arcádias”, com um tom decididamente arcaizante. Era uma palavra que costumávamos usar na época da faculdade para imprimir aos nossos encontros estudantis uma aura ironicamente pomposa, bem ao gosto do duvidoso senso de humor dos historiadores. Foi, pois, com muita alegria que aceitei o convite do caro amigo Fernando Cardoso (do blog À base de cerveja) para participar de uma das reuniões de sua “tertúlia cervejeira” em Lisboa. O anfitrião da reunião foi Bruno Aquino, administrador do portal cervejeiro Cervejas do Mundo. João complementou o time da noite e foi responsável por me levar de volta para casa numa altura da noite em que, sinceramente, eu não saberia mais me localizar no metrô de Lisboa com a eficácia necessária.

João, eu, Fernando e Bruno: um brinde lusófono à cerveja!
Fonte: acervo pessoal
Fernando, cervejeiro de longa data, havia sido preciso ao me mostrar o caminho das pedras em busca de cervejas na capital (e eu repassei as dicas dele, junto com outras minhas, na postagem anterior). Decidi retribuir pelo menos um pouco de sua hospitalidade levando para compartilhar com a tertúlia – da qual já me sinto parte integrante – algumas delícias artesanais brasileiras: da mineira Wäls, levei a Quadruppel (uma das minhas preferidas de longa data) e a então mais recente novidade da cervejaria, a Petroleum. Da paulista Colorado, uma garrafa da Vixnu. Uma pequena, mas bem selecionada amostra das maravilhas que o novo cenário cervejeiro brasileiro tem criado.

A Colorado Vixnu impressionou bastante os confrades lisboetas e, apesar de ter passado algumas semanas sem refrigeração no implacável calor do verão português, fez muito bonito em meio a uma seleção que incluía belgas, alemãs e norte-americanas. Já tive a oportunidade de prestar homenagem a esta criação da Colorado aqui no blog antes. Trata-se de uma IPA imperial festiva e bastante tropical: no lugar da tradicional secura e leveza das interpretações clássicas do estilo, a Colorado optou por equilibrar a potência do álcool e dos lúpulos com uma doçura de maltes pesada, caramelada e indulgente, com sensação de geleia de frutas tropicais. O aroma consegue preservar uma ótima complexidade dos lúpulos empregados, com tons frutados, florais e herbais perfumados em deliciosa evidência. É uma pena que essa cerveja não tenha sido mantida nas prateleiras com constância pelos mesmos preços acessíveis da época do lançamento.

No ano em que a mineira Wäls abocanhou o prêmio de melhor cervejaria da América do Sul no South Beer Cup (leia aqui sobre minha visita à cervejaria), eu não poderia deixar de levar alguma coisa dos irmãos Carneiro aos amigos lisboetas. Além da Wäls Quadruppel, cerveja que sempre me cativou com sua forte doçura caramelada e de frutas, suas especiarias e seu inconfundível toque que cachaça (veja aqui uma pequena degustação vertical que fiz dela), optei por levar uma Petroleum, cerveja feita em parceria com os cervejeiros caseiros da Dum, do Paraná, e que consagrou a Wäls no South Beer Cup. A Wäls Petroleum foi talvez o mais festejado lançamento brasileiro de 2012, e de fato ela impressiona pelo seu corpo gargantuano, intenso e incrivelmente acetinado, e pela combinação do indulgente aroma de frutas passas com a potente torrefação dos maltes, com chocolate amargo em evidência sobre nuances de café, caramelo e castanhas. Apesar da riqueza do aroma, na boca ela tem um final amargo e seco, austero. A potência dos 12% de álcool lhe dá um caráter licoroso que lembra conhaque, enquanto a refermentação na garrafa traz um toque floral com remissões “belgas” – marca da cervejaria (veja aqui a avaliação completa). Infelizmente, porém, a garrafa que levei não chegou nas melhores condições a Portugal, de modo que a tertúlia lusitana pode aproveitar pouco de tudo isso que a Petroleum nos oferece normalmente.

Algumas das cervejas da noite.
Fonte: acervo pessoal
Bruno, Fernando e João me mostraram, com alegria genuína e desinteressada, o diálogo aberto e amigável, de igual para igual, que pode existir entre brasileiros e portugueses em torno de um copo de cerveja. Entre uma e outra taça, petiscamos especialidades portuguesas, incluindo um ótimo frango assado picante que o Bruno encomendou especialmente para a noite e que foi um acompanhamento perfeito para as cervejas pesadas e marcantes que degustamos. Além disso, é claro, conversamos sobre o que significa beber cervejas no Brasil e em Portugal. Devo reconhecer que Bruno Aquino me impressionou deveras com seu conhecimento sobre a cena cervejeira brasileira: mesmo sem poder beber as artesanais patropis, ele conhece bem o mercado e as cervejarias há mais tempo do que boa parte dos entusiastas nacionais, já que tem falado delas em seu portal pelo menos desde 2008 (quando conheci o site).

Conversa vai, conversa vem, e não pudemos deixar de falar sobre o que parecia ser a questão mais intrigante de minhas incursões cervejeiras à capital portuguesa. Por que o cenário cervejeiro português, em plena Europa ocidental, era tão árido em um momento em que cada vez mais novos mercados se abrem à bebida? Minha hipótese inicial girava em torno da percepção de que os vinhos portugueses tinham altíssima qualidade e preço muito acessível: enquanto uma long neck de uma artesanal ou importada ultrapassava os 3 euros em Lisboa, era possível encontrar garrafas de vinhos bastante competentes pelo mesmo preço, na gôndola ao lado. Eu mesmo, durante minha estadia, troquei a cerveja pelo vinho em diversas ocasiões por considerações financeiras. Mas Fernando Cardoso apontou um detalhe interessante, ao qual eu nunca tinha atentado: a Itália é um país de tradição igualmente vinícola, em que as cervejas são caríssimas, e mesmo assim tem sido um dos palcos mais férteis da “revolução artesanal”.

Talvez a Espanha, de tradição igualmente vinicultora, e mais próxima de Portugal do ponto de vista cultural, econômico e histórico, forneça um contraponto mais produtivo. E a verdade é que, diferentemente do que ocorre em Portugal, a Espanha vive hoje, em pequena escala, uma explosão de ousadia das cervejarias artesanais. A prova desse argumento, deliciosamente infalível, veio à mesa na sequência, quando abrimos uma garrafa de uma das crias da microcervejaria espanhola Yria, produzida na cervejaria Regia Toledo. A GuineaPigs! 95 Wood Aged Imperial IPA é uma cerveja ousada, absolutamente fiel ao experimentalismo da escola norte-americana, que tem feito cada vez mais adeptos do lado de lá do Atlântico. Trata-se de uma IPA imperial, menos pelo teor alcoólico (de 7.5%) e mais pelo assertivo amargor (95 IBUs). O toque final vem do fato de que a cerveja matura com carvalho para pegar aquela secura final da madeira. Segundo pude auferir, a cervejaria emprega 7 diferentes variedades de lúpulo na receita (com predomínio claro de variedades norte-americanas) e usa chips de carvalho francês e cedro durante 14 dias na maturação da cerveja. Pode parecer pouco, mas o resultado é bastante evidente.

Fonte:
elgatoquebebiacerveza.blogspot.com

Estilo: IPA dupla/imperial
Teor alcoólico: 7.5%
Aparência: coloração cobre amarronzada, transparente, com boa espuma
Aromas: uma porrada de lúpulos americanos no nariz e no ataque no boca, trazendo um forte herbal com remissões a capim-cidreira e grama molhada, além de um frutado doce de manga, ao lado de um certo caramelado doce de malte. Contudo, no final, a madeira subitamente predomina sobre os lúpulos e o malte, imprimindo uma secura torrada de madeira tostada muito perceptível. Havia um toque sulfúrico de milho verde que atrapalhou um pouco seu frescor.
Paladar: entrada mais doce e melada, lembrando geleia, seguida de um final abruptamente amargo, seco, com alguma sensação oleosa, advindo da madeira.
Sensação na boca: o corpo é mediano, com sensação mineral bem presente. Apesar do estágio em madeira, há poucos taninos.

Veja aqui a avaliação completa.

Curiosa mistura da sensação de frescor dos lúpulos norte-americanos com a secura tostada da madeira. Combinação ousada e interessantíssima, mas que deixa algumas pontas soltas que poderiam ser aprimoradas. Normalmente, quando se pensa em uma cerveja com passagem por madeira, pensa-se nas sensações abaunilhadas, licorosas ou oxidativas trazidas pela maturação em barris; neste caso, porém, os fatores cruciais são a secura e a tosta da madeira, que se evidenciam até de forma um pouco agressiva. A grande variedade de lúpulos da receita acaba não se traduzindo em tanta complexidade, antes compondo um perfil aromático que vai se tornando genericamente “herbal” com o tempo. Contudo, a receita tem mérito suficiente para merecer atenção para além do mero fato da ousadia.

A camiseta do Fernando dificilmente poderia ter 
sido mais adequada a esta reflexão!
Fonte: acervo pessoal
Pois bem, a Guinea Pigs! pareceu-me, naquele momento, a prova de que pode haver uma coexistência pacífica entre a tradição vinícola e a revolução cervejeira artesanal. Eu mesmo me considero um apreciador tanto de cervejas quanto de vinhos, embora meu repertório vínico seja lamentavelmente mais restrito do que minha experiência cervejeira. Essa “trégua” na batalha dos fermentados parece já ter se convertido em um cenário de amigável prosperidade na Itália, e aparentemente os espanhóis seguem o mesmo caminho. Resta aos nossos colegas lusitanos torcer e lutar para que Portugal siga pelo mesmo caminho, a seu devido tempo e modo!

2 comentários:

  1. Alexandre

    Fui um prazer ter-te por cá em Portugal. Quando voltas? :-)

    Fernando

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    1. Fernando, como sabes bem, o prazer foi todo meu. Para um historiador que, como eu, trabalha com temas relacionados ao Império Português, sempre há oportunidades de congressos e bolsas de pesquisa para Portugal. Quando eu estiver de volta a Lisboa, podes ter certeza de que levarei mais alguma brasileira para dividirmos!

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