Minhas férias de início de ano têm sido uma oportunidade
perfeita para cuidar de uma daquelas sarnas que eu sempre arrumo para me coçar:
uma coleção de rótulos de cerveja. Sempre fui um colecionador: na infância, meu
pai me confiou duas coleções que ele mantinha – uma, bem pequena, de moedas
estrangeiras e uma de selos. Logo na sequência, eu comecei minha própria coleção,
influenciado pelo meu pai: como ele fumava na época, comecei a colecionar maços
e caixas de cigarro, que eu desmontava e colava em folhas de papel num
fichário. O fato de meu pai ser do ramo da indústria de embalagens certamente
influenciou essa minha forma de guardar minha coleção. Eu saía andando pelo meu
bairro pegando maços vazios jogados ao chão, e de vez em quando meu pai
comprava uma marca diferente da que ele gostava só para aumentar a coleção.
Curiosamente, nunca cheguei a me tornar fumante, mas ainda tenho um carinho
especial pelo cheiro do tabaco que fica impregnado nas embalagens.
A coleção de embalagens de cigarro foi abandonada algum
tempo depois, mas o hábito do colecionismo me fisgou em definitivo. Durante a
adolescência veio a paixão pelos quadrinhos e, naturalmente, o hábito de
colecionar revistas, que eu abandonei pouco tempo depois e agora, depois de
mais velho, voltei a cultivar. Depois disso, eu ainda colecionei as cartas de
um jogo de baralho chamado Magic: the Gathering. O jogo era muito divertido, e
as cartas, com belíssimas ilustrações, também rendiam uma coleção de encher os
olhos, que eu guardo até hoje. Quando eu me dei conta de que o jogo estava
tomando mais do meu tempo e do meu dinheiro do que eu gostaria, parei de jogar
e investir na coleção.
A Basílica de São Pedro, no Vaticano, contém uma
das
mais importantes coleções de arte renascentista
e barroca do mundo.
Fonte:
whatafy.com |
O colecionismo está longe de ser um hábito universal. Na
verdade, ele é típico do mundo ocidental moderno, em especial após o século
XIX. É verdade que coleções de arte já existiam no mundo ocidental há muito
tempo: na Grécia antiga, os templos dedicados às musas (filhas de Mnemosine,
deusa da memória, com Zeus) enchiam-se com as obras de arte produzidas pelos
artistas que eram inspirados por essas figuras mitológicas – tratava-se dos
chamados museion, palavra que deu
origem ao termo museu. A partir da baixa Idade Média, em especial do século
XIII em diante, a prosperidade das cidades e da Igreja permitiu um acúmulo de
magníficas obras de arte nas grandes catedrais. Tanto é que algumas igrejas
possuem acervos artísticos mais relevantes do que muitos museus de arte. A
partir do século XV, as cortes da nobreza europeia também passaram a acumular
as obras de arte produzidas para retratar os nobres e os feitos memoráveis das
monarquias. Contudo, em todos esses casos, não se tratava de mero colecionismo:
a reunião de obras de arte submetia-se a fins religiosos ou políticos. Ensinar
a religião ou ostentar o poder e a riqueza eram mais importantes do que os
objetos em si.
Já para o final do século XVIII, porém, o colecionismo
começou a ganhar ares mais definidos com a formação de grandes acervos
museológicos abrangentes, que seguiam critérios científicos e cronológicos. O
desenvolvimento da botânica e da zoologia também estimulou muito esse tipo de
coleção totalizante, pois a coleta de espécimes e a formação de coleções
completas era um dos principais instrumentos para o desenvolvimento das teorias
científicas e dos sistemas de classificação. Quanto mais abrangente fosse uma
coleção, quanto maior fosse o número de espécies diferentes que ela conseguisse
incluir, ou quanto mais representativas fossem as amostras, maior seria o seu
valor. O século XIX foi a época das grandes coleções universais: por meio do
colecionismo, a cultura europeia da época, profundamente imperialista, criava
para si uma espécie de miniatura do mundo inteiro, e reforçava assim sua
pretensão à dominação da natureza e do globo. Colecionar era uma forma de visualizar a dominação. Totalidade,
abrangência, representatividade, classificação e controle passaram a ser as
palavras-chaves do novo colecionismo.
A Exposição Mundial de Londres, em 1851, selou o
vínculo
entre colecionismo, museus e imperialismo. Cada país
tinha um “stand” com
objetos ou elementos
considerados “típicos”.
Fonte:
expotalk.ags-expo.com |
Esses valores tipicamente oitocentistas passaram das grandes
coleções institucionais para os hobbies privados, e até hoje se imprimem em
nossos hábitos colecionistas. Queremos sempre que nossas coleções sejam as mais
completas possíveis, que incluam o maior número de espécimes diferentes.
Algumas coleções são fechadas, como os álbuns de figurinhas: uma vez que você
completa todas as figurinhas, a coleção acaba. Mas, para um verdadeiro colecionista,
isso é frustrante, pois o mundo jamais se esgota dessa maneira – e a coleção
deve funcionar como uma espécie de miniatura de um certo mundo. O colecionista
inverterado gosta mais de coleções abertas, que ele sabe que nunca podem ser
completadas. Mas, mesmo assim, ele se esforça para que sua coleção seja
abrangente, que inclua a maior quantidade possível de espécies dentro das
fronteiras que ele definiu. Se ele coleciona selos do mundo todo, não está
feliz enquanto não tem um de cada continente, talvez mesmo um de cada país. Se
ele coleciona apenas selos brasileiros, quer pelo menos um de cada série. E por
aí vai.
Quando comecei a beber cervejas diferentes, não demorou para
emergir a minha ânsia colecionista – esse meu terrível hábito imperialista e
oitocentista. Meu primeiro impulso foi o de colecionar garrafas e latas vazias
– como é a primeira ideia da maior parte dos colecionadores de cerveja.
Contudo, como colecionador sistemático que sou, eu logo percebi que isso
criaria problemas para mim. À medida que a coleção crescesse, eu teria de encontrar
cada vez mais espaço para as garrafas. Parecia razoável manter uma coleção de
100 garrafas em minha casa; mas e quando ela chegasse a 200, 500, mil garrafas?
Dúvidas como essa foram as primeiras a assolar minha mente colecionista. Com o
tempo, eu teria apenas duas alternativas: ou eu construía um espaço apenas para
guardar, organizar, expor e classificar as garrafas, ou teria de abdicar da
coleção. Sim, porque, para um colecionador, de nada vale uma coleção que não
pode ser organizada e visualizada. Caixas e maleiros lotados de garrafas velhas
que eu não posso olhar são só entulho, e não uma coleção.
OK, admito que uma vista dessas atiça minha sede
cervejeira, mas não meu ímpeto colecionista.
Fonte:
www.goodbeergoodpubs.co.uk |
Como construir um espaço só para a coleção era algo inviável
para mim, percebi que eu teria de otimizar o espaço. Por isso, em 2008, decidi
começar a fazer uma coleção de rótulos de garrafas: em vez de guardar as
garrafas em si, eu retirava os rótulos e guardava só eles, o que representava
uma imensa economia de espaço. A princípio, eu também cortava a base e a parte
superior das latinhas, aplainava-as e guardava as lâminas de metal como se
fossem rótulos, mas depois parei de fazer isso, pois era muito trabalhoso e o
resultado nem sempre era tão positivo quanto eu gostaria. Muitos colecionadores
de rótulos gostam de entrar em contato com as cervejarias e encomendar rótulos
novos, sem as cervejas correspondentes. Eu, pelo contrário, decidi que minha
coleção seria composta apenas por rótulos de cervejas que eu havia bebido –
seria uma coleção de rótulos usados das cervejas que eu mesmo tomei.
Assim sendo, a coleção não seria apenas de rótulos, mas
também de experiências: era uma forma de manter um registro das diferentes
sensações que aquelas cervejas haviam me proporcionado. Nunca me interessei por
muito tempo por coleções que eu não tivesse, de alguma maneira, usado. Comecei a registrar por escrito
essas sensações: eu escrevia e imprimia as impressões que tive das cervejas que
bebi, para guardá-las junto com os rótulos. Com o tempo, obviamente esses
registros foram ficando mais elaborados, até chegarem ao formato que eu emprego
atualmente (as fichas de avaliação que compartilho com meus leitores na página
de Cervejas avaliadas deste blog). Mais que uma “miniatura” do mundo
cervejeiro, minha coleção passou a ser, antes de mais nada, uma “miniatura” do
meu próprio percurso de aprendizado cervejeiro. É sempre um grande aprendizado
reavaliar uma cerveja que eu bebi antigamente e depois comparar as anotações
antigas com as novas. Com o tempo, minha coleção começou a se tornar parecida
com aquilo que os enófilos chamam de “wine journal”: uma reunião de rótulos
bebidos, acompanhados de registros e anotações de degustação para fins de
aprendizado.
De 2008 para cá, cinco anos já se passaram. O número de rótulos
foi crescendo sem parar, sendo que minha última contagem atingiu 622 rótulos
diferentes – e um número mais elevado de avaliações, contando as cervejas que
bebi em chope ou em lata e aquelas de cujas garrafas não consegui me apossar. Salvo
engano, eles compõem hoje a coleção a que me dediquei ininterruptamente por
mais tempo em minha vida. Não houve uma única semana, desde o início, em que a
coleção não tenha se enriquecido com alguma coisa – seja uma nova degustação,
um novo rótulo ou uma nova avaliação.
Devo admitir que dá muito mais trabalho retirar os rótulos
do que simplesmente guardar as garrafas, mas a verdade é que minha coleção
atualmente precisaria de numerosas estantes se eu fosse manter as embalagens
inteiras e, da maneira como escolhi fazer, eu preciso apenas de alguns
fichários. Minha biblioteca, que já ocupa prateleiras suficientes, agradece. Alguns
rótulos são tão fáceis de retirar das garrafas que quase saem sozinhos, sem
esforço algum, no próprio balde com gelo no bar. Outros são muito, mas muito
mais desafiadores, e requerem toda uma gama de técnicas especiais. Já tive a
oportunidade de discutir essas dificuldades e trocar ideias e experiências com
vários outros colecionadores – existe até um tópico no fórum do portal Brejas
exclusivamente dedicado a discutir as melhores maneiras de retirar rótulos. Na
próxima parte desta matéria, exporei aos meus leitores minha metodologia, dando
algumas dicas sobre como retirar os rótulos e organizar sua coleção. Se você
tem algum resquício de colecionismo em sua alma, não perca!
Pelo que vejo você tem uma certa queda por tudo que pode ir em um fichário. Desde que te conheço você sempre teve um.
ResponderExcluirGuilty as charged! Com a diferença de que, agora, são quatro ao todo para abrigar a coleção!
ExcluirAbraços!
Alexandre A. Marcussi
Não sei se tenho espírito de colecionador, mas coleciono copos de cervejas, por enquanto são poucos copos, acho que 21.
ResponderExcluirÉ pouco eu sei, mas comecei há pouco tempo...
OLA AMIGO,VOCE TEM A COLEÇAO DE CIGARROS AINDA SE TIVER MEU E-MAIL alcenirmarcos@bol.com.br pode entrar em contato comigo.
ResponderExcluirOLA AMIGO,VOCE TEM A COLEÇAO DE CIGARROS AINDA SE TIVER MEU E-MAIL alcenirmarcos@bol.com.br pode entrar em contato comigo.
ResponderExcluirOLA AMIGO,VOCE TEM A COLEÇAO DE CIGARROS AINDA SE TIVER MEU E-MAIL alcenirmarcos@bol.com.br pode entrar em contato comigo.
ResponderExcluirPoxa vida, infelizmente não tenho mais essa coleção. Se tivesse, teria prazer em oferecer para algum colecionador!
ExcluirSeus posts são realmente aulas. Sou estudante de História da Arte na UNIFESP, e gostaria apenas de lhe lembrar dos Gabinetes de Curiosidades lá do século XVI, vejo a iniciativa como um dos primeiros impulsos colecionistas do ocidente, por isso, sem querer ser chato, entendo que os templos gregos não possam ser pensados como 'coleções', da forma que pensamos o ato de colecionar hoje. Curto muito seus posts, tenho muitos para ler ainda.
ResponderExcluirOlá, Gypsy!
ExcluirFico contente que esteja gostando das leituras. Você tem razão, os gabinetes de curiosidades são uma ótima lembrança nesse sentido. Contudo, à semelhança das grandes "coleções" de arte da antiguidade e da Idade Média, eles não seguiam critérios definidos ou métodos de classificação. Eram reuniões relativamente aleatórias de coisas retiradas das mais variadas partes do mundo por viajantes e navegadores. A meu ver, o colecionismo moderno começou com as grandes coleções do século XVIII, organizadas e abrangentes.
Abraços,
Alexandre A. Marcussi