terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte XVI: Com frutas, sim; mas lambic, não!

Já falei anteriormente que, se você correr para o empório mais próximo e pedir uma indicação de fruit lambic, pode acabar saindo com uma fruit beer xoxa, teoricamente feita “para o paladar feminino” (por homens que subestimam profundamente suas mulheres) e que não tem nada de selvagem – como uma Floris ou uma Mongozo. OK, talvez isso seja um exagero – se você for atendido por alguém um pouco mais qualificado, não será vítima de um erro tão grosseiro. Mas mesmo profissionais com conhecimento sobre cervejas (já vi ocorrer com gente gabaritada...) podem cometer um outro equívoco semelhante: chamar de fruit lambic qualquer cerveja selvagem ou sour ale com frutas.

“Sour ales? Pois não! Estão todas naquele 
cantinho sujo que ninguém olha lá atrás!” 
Mas nem por isso são todas iguais entre si...
Fonte: paraquevocerveja.blogspot.com
Mas não é tudo a mesma coisa? De jeito nenhum! No misterioso e encantador universo das cervejas selvagens da Bélgica, não são apenas os produtores de lambics que adicionam frutas às suas receitas. Também as cervejarias de Flandres, produtoras de Flanders red e brown ales, usam frutas para criar variações de suas cervejas. E as diferenças entre essas cervejas com frutas de Flandres e as lambics com frutas não podem ser subestimadas! A degustação de dois rótulos de Flandres – que felizmente temos no Brasil de forma bem acessível, naquela faixa ainda suportável dos R$ 20-25 pela garrafa pequena – nos dará a oportunidade de explorar melhor a questão.

Malte x Bretta

Vamos retomar algumas informações importantes que já abordamos aqui nesta série de matérias, de forma a ilustrar melhor essas diferenças. Como já vimos, uma das características das lambics maduras é a superatenuação, causada pelo longo trabalho fermentativo das leveduras selvagens do gênero Brettanomyces, que consumem virtualmente todos os açúcares (tanto do malte quanto da fruta) e deixam a cerveja sequinha, sequinha, com corpo de modelo de lingerie. Se uma lambic de frutas é adocicada, é porque recebeu adoçantes artificiais e/ou açúcar depois de ser pasteurizada. O produto tradicional nunca é doce.

As Flanders red/brown ales já tem um perfil diferente. Em primeiro lugar, os maltes tostados da receita conferem sabores caramelados e achocolatados inexistentes nas lambics. Em segundo lugar, Flanders red e brown ales resultam de uma mistura entre cervejas envelhecidas, mais secas, e cervejas jovens, ainda cheias de doçura de malte. Como resultado, tanto a doçura quanto o sabor do malte podem ser sentidos de forma muito mais clara numa cerveja de Flandres, em comparação com uma lambic. Sabe aquela doçura que, nas lambics comerciais, é adicionada artificialmente (e normalmente desequilibra a cerveja)? Pois é, numa selvagem de Flandres, ela é o resultado natural do blend e mostra-se mais harmônica e agradável. Flanders red e brown ales com frutas, portanto, são mais doces do que fruit lambics tradicionais. Essa doçura equilibra a acidez e faz com que elas “assustem” menos o paladar dos consumidores desabituados com cervejas selvagens.

Também os aromas frutados mostram-se distintos nos dois casos. As lambics têm aromas frutados mais frescos do que a maioria das ales belgas – no lugar das tradicionais bananas, ameixas, maçãs vermelhas ou cerejas, entram as uvas verdes, limão, maracujá, abacaxis frescos. Até por serem mais delicados e sutis, esses aromas normalmente acabam encobertos pelo peso da fruta adicionada nas lambics com frutas. Já as Flanders red e brown ales ainda têm uma forte presença dos aromas frutados “clássicos” das ales fortes belgas, o que dá outra cara ao produto final. As cervejas de Flandres, apesar da pegada selvagem, ainda têm um pouco da cara das ales fortes belga “de abadia”.

Vejamos na prática como isso funciona, a partir de duas cervejas selvagens de Flandres feitas com adição de cerejas: a Verhaeghe Echt Kriekenbier (uma Flanders red ale, da porção ocidental de Flandres) e a Liefmans Cuvée Brut (uma Flanders brown ale, da parte oriental). Ficará claro como elas não são a mesma coisa que uma kriek lambic.


Aparência: belíssima e profunda coloração, entre o rubi e o roxo, brilhante e com bom creme. Muito convidativa na taça.
Aromas: surpreendentemente assertivos e complexos, com a fruta (cereja) convivendo equilibradamente com o malte adocicado (caramelo e açúcar queimado), uma rusticidade de fermentação espontânea (terroso, vinagre balsâmico, acetona, suaves traços animais), uvas roxas e uma impressionante e encantadora presença de amêndoas cruas e canela.
Paladar: ela entra intensamente ácida na boca, mas logo se abre uma doçura de malte, finalizando com doçura levemente predominante sobre a acidez.
Sensação na boca: o corpo é mediano e os taninos são perceptíveis. O líquido tem uma textura levemente terrosa na boca (mas não seca), como a Flanders red ale da cervejaria.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Echt Kriekenbier é produzida a partir de um blend em que entram Flanders red ales de diferentes idades (partes jovens, com um e com dois anos de envelhecimento em carvalho), maturadas com adição de cerejas frescas da região de Sint-Truiden. Impressiona pela forma como a fruta, muito bem adicionada ao conjunto, consegue aparecer de forma clara sem ofuscar a rusticidade assertiva da cerveja de base, com aquele toque balsâmico e químico que sentimos, por exemplo, na Duchesse de Bourgogne. Talvez por serem usadas apenas cerejas frescas e inteiras na receita, elas também adicionam uma encantadora complexidade aromática mineral e de especiarias. Excelente exemplo de uma Flanders red ale com cerejas, em que a fruta, a rusticidade e o malte caminham de mãos dadas.

Fonte: www.belgianfamilybrewers.be

Aparência: coloração vermelha viva e escura, com nuances rosadas, de boa transparência e bom creme rosado.
Aromas: tem boa complexidade de aromas terciários e de maturação, mas o foco mesmo é o dueto afinado entre as cerejas (vívidas, lembrando também morango maduro) e o malte, acastanhado e amadeirado. Baunilha, amêndoas cruas e toques animais indicam a longa maturação, e toques florais e herbais (pinheiro) a complementam.
Paladar: ela entra doce na boca, mas depois mostra uma forte acidez mais seca. A doçura retorna após engolir, deixando um amigável final adocicado.
Sensação na boca: o corpo é leve para mediano, e ela é bastante seca, muito mais do que a oud bruin da cervejaria, com adstringência mediana de taninos.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Liefmans Cuvée Brut é uma cerveja com cerejas que usa como base a oud bruin produzida pela Liefmans. Antigamente, esta cerveja usava a corpulenta Goudenband, mas seu teor alcoólico acabava ficando alto demais após a fermentação das frutas, de modo que o álcool da cerveja-base foi diminuído. Ela resulta de um blend entre tanques da oud bruin com cerejas (13 kg de frutos e 200 ml de suco a cada 100 litros de cerveja), maturados longamente durante 18 a 36 meses, o que faz com que seja bem mais seca que a Goudenband, por exemplo, ressaltando sua apetitosa acidez lática. Como a cerveja-base é uma oud bruin, os traços selvagens são um pouco menos marcantes no aroma, deixando em primeiro plano o malte e a fruta (cujo aroma é ressaltado pelo uso de suco, além da fruta inteira). É interessante notar que, apesar de não haver maturação em madeira, senti delicados traços animais de Brettanomyces (atípicos nas oud bruin puras), provavelmente trazidas pelas cascas das cerejas. A cervejaria ainda produz uma versão mais comercial, adocicada e com sucos de outras frutas vermelhas.

Trata-se de duas cervejas bem diferentes entre si, ambas ótimas a seu modo. Enquanto a Echt Kriekenbier se mostra mais marcante, pesada e exótica em seus aromas selvagens, a Liefmans Cuvée Brut tem mais delicadeza, alegria e um aroma mais limpo, em que a fruta brilha mais ao lado do malte. Mas o que me interessa aqui não é destrinchar as diferenças entre as duas, mas sim ressaltar de que forma ambas, conjuntamente, se afastam das clássicas lambics de frutas. A despeito de suas diferenças, ambas possuem uma doçura natural e espontânea, ausente nas lambics, para amenizar o impacto da acidez, e trazem mais aromas e sabores lembrando ales belgas, como caramelo, frutas maduras, apimentado etc. Além dessas semelhanças naturais com outras cervejas belgas, elas ainda possuem a presença familiar e reconfortante das cerejas.


Por todos esses motivos, parecem menos “esquisitas” aos olhos de um bebedor que não esteja familiarizado com cervejas selvagens, e constituem um ótimo ponto de partida para a longa jornada para dentro do “dark side” – ops, digo, para os injustiçados encantos da selvageria cervejeira. Lembre-se delas da próxima vez que alguém questioná-lo, com honesta perplexidade, como é que você pode realmente gostar dessas cervejas azedas!

2 comentários:

  1. Estou me deliciando com seus ensinamentos, tenho acompanhado a algum tempo e na medida do possivel venho experimentando as cervejas por voce avaliadas.
    Seus comentarios sobre a Deus no Brejas beira a algo escrito por Camões. Parabéns.

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  2. Olá! Agradeço os elogios, e espero que você tenham experiências tão boas com as cervejas indicadas no blog quanto eu tive ao escrever os textos! Quanto ao nosso amigo lusitano, é uma pena que ele provavelmente não bebesse tanta cerveja quanto vinho, não é? Quem sabe não nos brindaria com alguns versos sobre Ninkasi, em vez de falar apenas em Baco? :-D

    Abraços,
    Alexandre A. Marcussi

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