sábado, 15 de fevereiro de 2014

Cervejas selvagens - Parte XXI: Tradição e inovação

É chegada a hora de finalizar nossa longa viagem pelo continente da selvageria cervejeira. E faremos isso olhando para o presente e para o futuro dessas que são as mais antigas cerveja do mundo – as lambics. Desde a década de 1990, na esteira da chamada “revolução artesanal”, o mercado de lambics tem passado por um salutar reaquecimento, com a revalorização internacional dos exemplares tradicionais do estilo, que não são pasteurizados e nem adoçados e seguem os métodos produtivos cristalizados no século XIX (a maior parcela dos quais já era praticada há pelo menos 5 séculos). Os sinais desse reaquecimento são claros. Surgiram novos produtores, como é o caso da Tilquin, e ressurgiram das cinzas alguns outrora extintos, como a Oud Beersel. Alguns blenders, como a 3 Fonteinen, conseguiram heroicamente começar a pôr a mão na massa e brassar sua própria cerveja, sem depender do mosto produzido por outras cervejarias. Diversas cervejarias de porte relativamente grande (considerando-se as dimensões diminutas dos produtores de lambics) começaram recentemente a reapresentar exemplares tradicionais, denominados “oude” ou “vieille” de acordo com a legislação europeia.

O que pode ser mais legal do que a mistura 
entre anacronismo e modernidade?
Fonte: www.hongkiat.com
Um pouco desse novo experimentalismo dos produtores belgas tem chegado ao Brasil desde o final de 2013, sobretudo pelas mãos da importadora Hors Concours, mas nem sempre a preços muito amigáveis. Gostaria de acreditar que o espaço das cervejas selvagens tenderá a crescer no Brasil nos próximos anos, levando a uma certa normalização dos preços. Mas, por outro lado, a produção limitada das cervejas do estilo e a dificuldade em firmar acordos de exportação ainda constituem um convite à especulação e à maximização dos lucros de importadores com contratos exclusivos. É uma pena.

Peripécias recentes da 3 Fonteinen

A primeira das lambics experimentais de que falaremos é uma gueuze produzida pela 3 Fonteinen, uma das mais respeitadas produtoras de lambic da Bélgica. A cervejaria passou por uma série de turbulências nos últimos 5 anos. Até 1999, a 3 Fonteinen era apenas e tão-somente um blender autônomo, comprando o mosto de outras cervejarias para fermentar e blendar suas lambics. A partir de então, o proprietário Armand Debelder alugou um equipamento produtivo de segunda mão da gigante Palm e passou a brassar seu próprio mosto. Ocorre que, em 2009, o prazo contratual expirou e uma outra cervejaria comprou o equipamento antes que Armand pudesse renovar o contrato, deixando a 3 Fonteinen de volta ao estado de mero blender. Apenas em 2013 a cervejaria conseguiu adquirir e inaugurar um novo equipamento produtivo, e voltou a fabricar seu próprio mosto no inverno de 2013-2014. As primeiras gueuzes feitas exclusivamente com lambics brassadas pela 3 Fonteinen, portanto, devem chegar ao mercado apenas em 2017.

Isto é, se tudo der certo. Porque a 3 Fonteinen tem tido pouca  sorte. Em 2009 (mesmo ano em que expirou o contrato do equipamento de brassagem), a cervejaria enfrentou o que provavelmente foi a maior tragédia de sua história. O proprietário Armand Debelder é conhecido por ser um dos produtores mais rigorosos com o controle de qualidade de suas cervejas, o que o havia levado a tomar uma medida inédita: instalar um equipamento de climatização em sua cave para controlar a temperatura das lambics durante toda a sua longuíssima maturação. Ocorre que, na madrugada de 16 de maio de 2009, o equipamento falhou e a temperatura se elevou para 60º C na área de refermentação das garrafas. Como resultado, 5 mil garrafas simplesmente explodiram durante a noite, e mais 80 mil ficaram imprestáveis. Debelder se recuperou produzindo um destilado a partir das cervejas deterioradas, e começou a produzir vários novos produtos para arrecadar dinheiro e recuperar financeiramente a marca, entre os quais a linha Armand’4, produzida apenas com lambics brassadas dentro da 3 Fonteinen, antes da perda do equipamento produtivo arrendado da Palm.

Um dos novos rótulos lançados nesse contexto foi a 3 Fonteinen Oude Geuze Golden Blend, blendado uma única vez em 2011. Enquanto uma gueuze regular leva em sua composição lambics de até 3 anos de idade, o Golden Blend é produzido utilizando também 25% de uma lambic mais velha, de 4 anos de idade (ao lado de proporções desconhecidas de lambics de um, dois e três anos). O produto é vendido por um preço muito superior à gueuze convencional (€10-15 na Bélgica, mais que o dobro da gueuze comum), o que Armand Debelder justifica afirmando que a lambic de 4 anos sofre muitas perdas devido à evaporação ao longo de mais um ano adicional. Mas eu acredito que boa parte do preço (como no caso de outros rótulos da marca) se justifique pela necessidade de recuperação financeira da empresa. A cerveja chegou ao Brasil custando R$ 100 pela meia garrafa (375 ml) – caro, mas proporcional ao preço na origem, o que nem sempre ocorre no mercado nacional de lambics. De qualquer modo, o resultado dessa inovação é um predomínio de sofisticados traços de maturação e envelhecimento no blend, bem como uma suavização da forte acidez das lambics da marca, deixando o blend mais “redondo”, elegante e suave ao paladar. Vale a torcida para que a cervejaria incorpore o blend à sua linha regular por um preço mais acessível.


Aparência: a cor é um âmbar-alaranjado, talvez um pouco mais escuro do que a gueuze convencional da marca, bem transparente e com creme impecável – muito alto e fofo, deixa uma camada muito perene depois de baixar.
Aromas: ela não tem a potência aromática da gueuze convencional, sobretudo nos aromas animais (estábulo e couro cru), mais suaves aqui, deixando-a mais “limpa” e menos rústica. Em compensação, sobressaem-se os traços apimentados, de palha seca, florais e elegantes notas minerais e de amêndoas cruas denotando o envelhecimento mais longo. Os ésteres mostram um caráter menos cítrico e mais de “solvente”, framboesas maduras e limão, mas a baunilha característica da 3 Fonteinen ainda está bem evidente. Pão doce, sálvia, acético e uma lembrança de salame terminam de compor o enorme caleidoscópio aromático. Em resumo: menos rústico e animal, o aroma mostra-se menos potente mas permite vislumbrar uma sutil e sóbria complexidade.
Paladar: a acidez predomina, mas de uma forma um pouco menos implacável e agressiva do que na gueuze convencional da marca – parece ter sido “arredondada” pela maturação mais longa. O amargor também está presente, e sente-se uma suave doçura secundária no final longo, estruturado e mineral, impecável.
Sensação na boca: o corpo é mediano devido à estrutura proporcionada pelos taninos evidentes, mas com textura crocante, mineral e seca como deve ser uma boa lambic. A carbonatação é altíssima.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

O Golden Blend mostrou algumas características típicas da 3 Fonteinen, como a acidez implacável e os taninos vigorosos, bem como os traços abaunilhados, advindos do carvalho, que são uma das marcas de Armand Debelder. O perfil frutado cítrico parece ter sido acentuado em um caráter mais de “solvente”, mas não desagradável. As principais mudanças trazidas pela maturação mais longa parecem ter sido uma atenuação na força da acidez (menos agressiva e mais redonda que na gueuze normal, tornando-a mais elegante) e uma diminuição na rusticidade animal do aroma, abrindo espaço para um sofisticado mineral, amendoado e apimentado. Tudo isso converge no sentido de tornar o Golden Blend menos marcante e impactante, mas mais elegante do que a gueuze convencional. Cada um tem suas vantagens; mas a verdade é que o preço muito mais elevado torna o Golden Blend pouco atrativo. No Brasil, por outro lado, a distorção de preços da importação fez com que ele se tornasse uma opção factível diante do infladíssimo preço da Oude Geuze convencional da cervejaria.

O experimentalismo incessante da Cantillon

A Cantillon é um dos produtores que mais têm se destacado na produção de novas receitas experimentais. Além de suas lambics com adição de frutas pouco convencionais (usando uvas Muscat e Merlot e damascos) e até de flores de sabugueiro, a cervejaria ainda é uma das únicas que engarrafa uma lambic sem blendar, como a incrível Grand Cru Bruocsella (da qual falamos aqui). Também produz lambics de 2 anos, sem blendar, com adição de açúcar e refermentação na garrafa (a linha Lou Pepe). Além disso, a Cantillon produz uma lambic intitulada Iris, que segue uma receita puro-malte e emprega lúpulos frescos (em vez de usar trigo e lúpulos envelhecidos), e ainda faz uma das lambics mais deliciosamente inusitadas que já tive a honra de provar: a Cantillon Cuvée Saint-Gilloise.

A Cuvée Saint-Gilloise foi criada para homenagear o Royale Union Saint-Gilloise, time de futebol de Bruxelas para o qual a família Van Roy (proprietária da Cantillon) torce há gerações. A cerveja havia sido originalmente batizada de Cuvée des Champions, ou seja, “a cuvée dos campeões”, mas, devido ao fraco desempenho do time nos últimos anos, o termo “champions” teve de ser forçosamente abandonado. A Cuvée Saint-Gilloise é produzida usando os mesmos métodos de uma fruit lambic, só que, no lugar das frutas, a cervejaria usa lúpulos em flor da variedade alemã Hallertauer. A lambic matura durante dois anos em barris antes de receber a adição de lúpulos em flor, que permanecem na cerveja durante 3 semanas, fazendo com que ela seja uma espécie de lambic com dry-hopping! Depois, é blendada com uma lambic jovem e engarrafada, sofrendo segunda refermentação na garrafa. Como resultado, temos uma cerveja em que os aromas de base da fermentação espontânea são complementados pelo frescor floral, cítrico e herbal do Hallertauer, ganhando também um pouco mais de amargor. Como outros experimentos da Cantillon, é uma cerveja de distribuição restrita, mas pode ser encontrada no Brasil numa faixa de preços bem salgada, ali pelos R$ 150 pela garrafa grande. Recentemente veio em chopes, cujo preço ainda era alto (R$ 35), mas pelo menos permite provar.


Aparência: a coloração é amarela escura, opaca (provavelmente devido ao “hop haze” advindo da adição de lúpulo), com creme branco impecável, alto, denso e persistente.
Aromas: uma piração completa! De cara se sente uma explosão de frescor mentolado, frutado e cítrico do lúpulo: muita hortelã fresca, raspas de limão, um surpreendente tutti-frutti perfumado, rosas, um toque apimentado. É muito difícil sentir uma presença tão complexa e fresca de lúpulos nobres europeus, de fazer inveja a qualquer IPA. Depois começam a ganham corpo os aromas, mais rústicos, da fermentação espontânea: animal, couro cru, mofo e mostarda, depois ésteres frutados lembrando uvas verdes, complementando de forma muito interessante o frescor do Hallertauer.
Paladar: a acidez da fermentação espontânea disputa com o delicado amargor do lúpulo (que a torna um pouco mais amarga que uma lambic tradicional). Ela começa mais ácida e finaliza na boca com um amargor perene, seco e refrescante.
Sensação na boca: o corpo é muito leve, facílimo de beber, bem refrescante, com uma textura seca que combina os taninos da lambic com a adstringência do lúpulo.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

Que surpresa esta lambic com dry-hopping de Hallertauer! A combinação do frescor lupulado com a rusticidade das Brettanomyces é irresistível. Sabe aquelas IPAs com Brettanomyces que têm sido produzidas hoje em dia, com um toquezinho animal se insinuando por trás do lúpulo (como a Mikkeller/Grassroots Wheat is the New Hops)? Esta Cuvée Saint-Gilloise faz algo parecido, mas mostra os traços animais e terrosos de Brettanomyces com muito mais vigor e força, criando um resultado ousado e cheio de personalidade que parece misturar o que há de melhor nas IPAs e nas lambics. A complexidade e o vigor dos aromas lupulados é algo difícil de se ver em outras cervejas que empregam o Hallertauer. A acidez seca da lambic se mistura a um amargor que a torna ainda mais refrescante. Fico imaginando quão interessantes poderiam ser lambics produzidas com outras variedades de lúpulos ou outras ervas aromáticas!

A história heroica da Oud Beersel

A história da Oud Beersel, blender autônomo de lambics, é um testemunho eloquente do tipo de devoção que as cervejas selvagens são capazes de suscitar. Fundada pela família Vandervelden, a Oud Beersel blendava sua própria lambic desde 1882 e a vendia em uma café próprio. Em 2002, o produtor Danny Draps representava a quarta geração da família à frente da Oud Beersel quando decidiu mudar de ramo e fechar a cervejaria e o café. Uma grande reviravolta ocorreria por causa de dois jovens fãs da cervejaria recém-graduados da universidade de Bruxelas, Roland de Bus e Gert Christiaens. Na época, Roland e Gert foram informados pelo dono do café onde regularmente bebiam a gueuze da Oud Beersel que aquelas eram as últimas garrafas daquela cerveja, cuja produção fora descontinuada.

E o impossível aconteceu. Se a sua cerveja preferida está para fechar, qual a atitude mais racional e sensata a se fazer? Comprar a marca, claro! Em 2003, eles buscaram formação e qualificação para produzir cervejas. Para conseguir o financiamento necessário, elaboraram um plano de negócios que incluía uma tripel produzida sob licença, a Bersalis Tripel, como elemento que geraria capital de giro. Em 2005, a Oud Beersel reabriu as portas, e as primeiras garrafas chegaram ao mercado em 2007. O mosto é produzido pela Boon de acordo com uma receita exclusiva, que emprega lúpulos envelhecidos por um período menor de tempo, resultando em um amargor ligeiramente mais acentuado e aromas lupulados perceptíveis, o que é muito raro em lambics. Gert Christiaens dedicou-se à Oud Beersel como sua opção prioritária de carreira, mas, para seu colega Roland de Bus, a cervejaria ainda era apenas um hobby. Contando com “paitrocínio”, Gert conseguiu comprar a parte de Roland em 2007 e agora é o único responsável pela cervejaria, que hoje produz um volume quase três vezes superior ao da época da família Vandervelden.

O espírito arrojado de Gert Christiaens logo o levou a um ambicioso projeto: a produção de uma lambic que passasse pelo método tradicional de produção de vinhos espumantes desenvolvido na França, na região de Champagne (que é chamado de método champenoise quando nos referimos aos espumantes produzidos em Champagne). Se as gueuzes são frequentemente referidas como “os champagnes da cerveja”, por que não levar a metáfora ao pé da letra? O que, uma bière brut que é uma lambic? Isso mesmo! Em 2009, a Oud Beersel associou-se a um casa belga produtora de vinhos espumantes da região de Limburg, chamada Domaine Optimbulles, bem como ao clube de vinhos Domus ad Fontes. O resultado, lançado pela primeira vez em 2012, é a Oud Beersel Bzart Lambiek.

O primeiro lote da Bzart Lambiek usou como base uma lambic jovem, de 14 meses de idade, que foi engarrafada com leveduras de espumante e maturou na garrafa por mais 13 meses. Ao final desse período, passou pelas etapas de rémuage e dégorgement, que consistem no congelamento e retirada do depósito de leveduras pelo gargalo, para a obtenção de uma bebida delicada e cristalina. A Bzart Lambiek não recebeu nada de açúcar após esse processo, no licor de expedição (adicionado para completar o volume da garrafa após a remoção das leveduras), da mesma forma como ocorre com as gueuzes tradicionais e com os espumantes denominados brut nature (expressão que a cerveja ostenta no rótulo). De produção limitadíssima, é vendida apenas em alguns restaurantes top da Bélgica e em poucas lojas selecionadas, a preços de champagne. Não espere pagar menos de €20 euros por uma garrafa. Tive o privilégio de provar uma garrafa da primeira safra, trazida para mim na mala por um primo.

Fonte: 

Aparência: coloração dourada clara e muito radiosa, com uma leve turbidez que não era esperada diante do fato de passar pelo método tradicional, e com creme de volume mediano e boa permanência.
Aroma: sofisticado, elegante e cheio de sutileza sem perder em caráter. Notas animais são presentes, mas não predominam, dando espaço para um amplo perfil de frutas brancas e cítricas (pêssego, tutti-frutti, limão, damasco). Os aromas de lúpulo típicos da lambic da Oud Beersel se misturam à refermentação na garrafa para produzir sensações florais (gerânios, rosas) e apimentadas. As leveduras de champagne adicionam toques típicos de espumantes, como amêndoas torradas e torradas integrais. Mel, amêndoas cruas e mineral mostram sua elegante maturação.
Paladar: versátil, não tão ácida quanto uma gueuze, nem tão doce quanto uma lambic jovem. A acidez é apetitosa e se faz acompanhar o tempo todo de uma suave doçura secundária, conduzindo a um final tendente ao neutro (como ocorre com a gueuze da Oud Beersel).
Sensação na boca: o corpo é leve e delicado, com uma gostosa textura cremosa semelhante à de bons espumantes e com taninos suaves. Facílima de beber, e não se adivinham nem de longe os 8% de álcool.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Bzart Lambiek é uma lambic singularíssima: com acidez mais contida e com aromas em que se sobrepõem frutas, flores, animal, tostados, especiarias e mineral, ela transita com naturalidade e versatilidade entre os universos da lambics, das ales belgas e dos vinhos espumantes e agrada inclusive quem costuma fazer careta para lambics tradicionais (verdade, eu fiz o teste empírico!). Já para quem está acostumado com lambics marcantes, tânicas, ácidas, ela pode parecer um pouco decepcionante, mas é preciso entendê-la como uma bebida híbrida, singular e inovadora, com uma proposta um pouco diferente, menos austera e mais versátil e delicada.

A Bzart Lambiek já ganhou uma segunda safra em 2013, junto com uma irmã: a Bzart Kriekenlambiek, feita com adição de cerejas – essencialmente, uma kriek lambic que passa pelo método tradicional de produção de espumantes. A sede de inovação parece estar só crescendo entre os produtores de lambics!

Enquanto isso, em Flandres...

Ao revisar essa série de matérias sobre lambics, eu me dei conta de que não comentei uma das cervejas selvagens mais interessantes, e com melhor custo-benefício, que encontramos no mercado brasileiro (rivalizando com a Boon Oude Geuze Mariage Parfait nesse quesito). Como se trata também de uma cerveja inovadora, decidi incluí-la aqui. Quando Michael Jackson, o finado beer hunter, visitou a cervejaria Bavik, em Flandres, pediu para experimentar a cerveja mais antiga da fábrica, direto do barril. Tratava-se de uma ale clara, fermentada e maturada longamente no padrão das Flanders red ales. Ela era usada para blendar com cervejas jovens, mais escuras, para a produção da Petrus Oud Bruin, uma Flanders red ale bem amadeirada e terrosa, mais seca do que o habitual para o estilo.

Antigamente, a cervejaria Bavik comprava a cerveja envelhecida diretamente da Rodenbach para empregar em seu blend. Contudo, à medida que a produção decaiu, a Rodenbach passou a vender volumes cada vez menores, obrigando a Bavik a comprar grandes tonéis de carvalho para maturar sua própria cerveja. A cervejaria adicionou lambic para “condicionar” os tonéis e, com a microflora devidamente instalada, começou a maturar sua própria cerveja lá. Foi esta cerveja que Michael Jackson provou lá em 2000. Maravilhado, ele propôs que a cervejaria engarrafasse aquela cerveja envelhecida sem blendar. A princípio, o lançamento limitado foi oferecido apenas pelo Clube de Cervejas Raras mantido por Jackson nos EUA, sob a denominação Petrus Aged Pale Grand Reserve. Contudo, a cerveja conquistou os connaisseurs norte-americanos, o que, para nossa felicidade suprema, convenceu a Bavik a colocar o rótulo em linha.

A Petrus Aged Pale Grand Reserve é uma Flanders red ale singular. A começar pelo fato de que ela não é “red”, sendo feita apenas com malte pilsen e, portanto, tendo coloração clara. Além disso, é generosamente lupulada (33 IBUs), tornando-se mais amarga que outras do estilo. Por fim, não é blendada, sendo engarrafada pura depois de 20 meses de maturação em carvalho. Ela vem a se somar à tendência, recente, de Flanders red ales que não são blendadas com cervejas jovens. E o melhor de tudo, para nós brasileiros: ela chega às nossas prateleiras numa confortável faixa de preços, abaixo dos R$ 20 em algumas lojas – ótimo para uma cerveja desse calibre!

Fonte: www.porchdrinking.com

Aparência: tem uma coloração amarelada com uma nuance esverdeada, com levíssima opacidade e um creme de desempenho mediano.
Aroma: a ausência dos maltes caramelizados dá a esta Flanders red ale um aroma peculiar, mais próximo daquele de uma lambic. Brilham as notas animais, de couro cru e estábulo, acompanhado de um forte frutado remetendo a uvas verdes e um toque de banana. O malte mostra castanhas, e a base mais delicada deixa entrever uma certa tosta da madeira. Mel, amêndoas cruas e um toque acético denunciam a longa maturação. Aroma vigoroso, cheio de caráter.
Paladar: a acidez predomina com intensidade, mas conduz a um final em que a doçura, menos intensa do que em outras do estilo, a equilibra com sutileza. Percebe-se um amargor intermediário acentuado para o estilo, que lhe dá pegada. Mais seca que uma Flanders red tradicional, mas ainda com aquela riqueza de maltes do estilo.
Sensação na boca: o corpo é leve para mediano, com adstringência tânica perceptível, mas não exagerada, que complementa seu vigor na boca.

Clique aqui para ver a avaliação completa.

A Petrus Aged Pale Grand Reserve é uma boa opção, bem acessível, para quem quer conhecer “mais a sério” o mundo das cervejas selvagens. Um pouco mais vigorosa do que uma Flanders red ale tradicional, com malte mais discreto, mas ainda não tão seca quanto uma lambic, e com um custo bem mais acessível que a torna uma boa opção intermediária, “de transição” entre os exemplares mais doces e os mais secos. Terá ela inaugurado um novo estilo das “Flanders pale ales”? O fato é que a Cuvée de Ranke tem uma proposta razoavelmente parecida com a desta “aged pale”, o que pode sinalizar uma tendência embrionária.

Com esse raro achado do nosso restrito mercado brasileiro de cervejas selvagens, encerro esta longa série de matérias. Meu esforço e envolvimento em pesquisas e leituras só foi superado pela satisfação do aprendizado que obtive nessa longa viagem, e que espero ter conseguido transmitir em parte aos meus leitores. Pelo menos, espero que essas matérias sirvam de inspiração para ajudar a despertar no público brasileiro a consciência de que existe todo um universo cheio de planetas a explorar no ramo das cerveja selvagens. Eu ofereço um itinerário: a viagem tratará de oferecer suas próprias recompensas.


O final desta série também sinaliza uma mudança de perfil nas postagens deste blog. Meus leitores se habituaram a um formato de matérias seriadas, com aprofundamento em temas restritos e com um certo caráter exaustivo. Creio que esta série sobre cervejas selvagens levou esse formato ao seu limite. A partir de agora, quero voltar a escrever matérias um pouco mais pontuais, talvez mais acessíveis para o público geral, mas sem deixar de levantar e explorar questões que sejam instigantes para quem já detém conhecimento cervejeiro. Talvez eu comece a intercalar postagens nesse formato de “dossiê” com outras mais curtas, que me permitam registrar e compartilhar preocupações mais pontuais. Vejamos como funcionará!

Um comentário:

  1. Parabéns por essa série, muito elucidativa! Vai deixar saudades mas será uma ótima fonte de pesquisa e consultas. Abracos

    ResponderExcluir