Nas partes anteriores deste artigo, afirmei que os dois
guias de estilos mais empregados no Brasil foram criados recentemente para
ajudar a organizar campeonatos de cerveja nos EUA. Vejamos então com mais detalhes
quais foram as entidades responsáveis por cada guia, bem como os campeonatos
que estes ajudaram a organizar, começando por aquele que é provavelmente o guia
de estilos mais empregado no Brasil: o do BJCP.
O Beer Judge
Certification Program e o National Homebrew Competition
Logo do BJCP. Fonte: homebrewersassociation.org |
BJCP
é a sigla para Beer Judge Certification Program (Programa de Certificação de
Juízes de Cerveja). Atualmente, o BJCP é uma instituição que certifica o nível
de conhecimento e a aptidão de juízes para vários campeonatos de cerveja.
Existem diversos graus de proficiência reconhecidos pelo BJCP a partir da
pontuação de cada juiz nas provas realizadas pela instituição. Ou seja, não
existe simplesmente um “juiz do BJCP”: cada degustador aprovado é classificado
dentro de uma categoria, de modo que os vários juízes certificados estão aptos
para ocupar diferentes posições no júri de diferentes concursos.
O programa foi criado em 1985 a partir da união entre a
American Homebrewers Association (AHA, “Associação dos Cervejeiros Caseiros
Norte-Americanos”) e a Home Wine and Beer Trade Association (HWBTA, “Associação
de Comércio de Vinho e Cerveja Caseiros”), que teve um importante papel na
legalização da produção caseira de cervejas nos EUA, em 1979. No início, o BJCP
era fortemente influenciado pela AHA, mas foi se tornando progressivamente
independente, culminando em sua consolidação como organismo autônomo em 1995
quando a AHA retirou seu apoio para criar um programa próprio.
Historicamente, portanto, o BJCP e seu guia de estilos
estiveram associados a organizações de cervejeiros caseiros. Quando o BJCP se
tornou independente da AHA, a diretoria estimava que apenas em torno de um
terço de seus juízes era composto de cervejeiros comerciais – os demais eram
produtores caseiros. Até hoje, o guia de estilos do BJCP tem como principal
função auxiliar a organização de campeonatos de cervejas caseiras, com destaque
para o National Homebrew Competition (Competição Nacional de Cervejas
Caseiras), realizado anualmente nos EUA desde 1979 (antes do BJCP, ela era organizada
pela AHA). Além dele, existem vários outros campeonatos regionais em que o guia
de estilos do BJCP é seguido, indo desde pequenos concursos com menos de 100
concorrentes até os quase 7.000 participantes do National Homebrew Competition
de 2011. A primeira versão do guia,
substancialmente mais sucinta que a atual, foi elaborada em 1997 e foi
largamente baseada no “New England Homebrew Guidelines” (Guia para Cervejas
Caseiras da Nova Inglaterra), destinado a produtores caseiros.
O
cálice sagrado dos cervejeiros
caseiros: a medalha da National
Homebrew
Competition.
Fonte:
homebrewersassociation.org |
A forte vinculação do BJCP com campeonatos
de cervejas caseiras é um indicativo de suas características. Cervejeiros
caseiros, por definição, produzem em pequena escala e, apesar de poderem ser
incrivelmente inventivos em suas receitas, nunca são capazes de atingir um
público tão vasto quanto uma cervejaria industrial (mesmo que seja uma micro).
Suas criações, enquanto continuam limitadas às panelas, dificilmente poderão
consolidar novas tendências e gostos no mercado consumidor. Por isso,
cervejeiros caseiros podem criar novas receitas, mas sua capacidade de
consolidar novos estilos é muito restrito devido ao parco poder de penetração
de suas receitas. Além disso, quando se está aprendendo a fazer cerveja, a
capacidade de um cervejeiro caseiro normalmente é medida pela sua competência
em recriar estilos tornados clássicos pela indústria. Por exemplo, a capacidade
de executar com primor a receita de um estilo difícil, como uma pilsner tcheca
tradicional, é uma demonstração de excelência técnica e versatilidade por parte
de um produtor caseiro.
O guia de estilos do
BJCP
Por tudo isso, o guia de estilos do BJCP é quase que
naturalmente mais conservador. Em relação ao guia da Brewers Association, por
exemplo, ele segue de forma mais estrita as encarnações industriais
tradicionais de cada estilo. Ele inova pouco na inclusão de novos estilos,
adicionando-os à sua listagem apenas quando já estão consolidados como
tendências da indústria e do mercado e já se tornaram modelos clássicos para
emulação por parte dos cervejeiros caseiros. Até por isso, o guia é atualizado
apenas a cada 4 ou 5 anos: se um novo estilo conseguiu sobreviver e ampliar seu
espaço no mercado de forma consistente ao longo desse período de tempo (que, para o
dinâmico mercado microcervejeiro, é quase uma eternidade), pode ser considerado
“clássico”. A última atualização do guia do BJCP ocorreu apenas em 2008, e a
listagem conta atualmente com 80 estilos diferentes.
A vinculação do guia do BJCP aos cervejeiros caseiros também
explica o grande grau de detalhamento de suas descrições de estilos. O guia
descreve não apenas os parâmetros gerais, mas discrimina claramente até os
componentes aromáticos de cada estilo, separando-os de forma inequívoca em
características obrigatórias do estilo e características opcionais. Além disso,
descreve os principais parâmetros técnicos (como gravidades original e final,
coloração, índice de amargor etc.) e elenca os ingredientes tradicionais do
estilo. Tudo isso como forma de auxiliar os cervejeiros caseiros que pretendem
avaliar o grau de fidelidade de suas receitas a estilos tradicionais.
Também o fato de o BJCP ser atuante em concursos de
cervejeiros caseiros dá o tom da postura esperada de seus juízes. Um juiz do
BJCP tem a obrigação de fornecer informações mais detalhadas a respeito do
perfil sensorial da cerveja sendo avaliada, bem como de apontar de forma clara
os defeitos e, eventualmente, sugerir modificações na receita ou no processo
produtivo. Por exemplo, um juiz que se defronte com uma Münchner dunkel que
tenha ficado com amargor rasgado ou pronunciado demais pode sugerir uma diminuição
no uso de lúpulo de amargor ou, alternativamente, o emprego de uma água com
menor teor de sais minerais para ajudar a “limpar” a sensação áspera. Diante
disso, o produtor caseiro terá uma orientação técnica qualificada para
modificar a receita com liberdade e de acordo com seu gosto.
Críticas
mal-dirigidas
Sua
cerveja leva tomate, orégano,
manjericão e alho? Acho melhor
Fonte:
dudefoods.cominscrever na categoria “specialty”... |
Tudo isso deve ser levado em conta quando abrimos o guia do
BJCP para orientar nossas degustações. Nas encarnações atuais do guia, o texto
sempre apresentará uma descrição detalhada das características comuns do estilo
de acordo com suas clássicas encarnações comerciais (invariavelmente listadas
ao final), e sempre optará por uma definição mais estrita dos estilos,
justamente porque a descrição deve servir para medir a excelência técnica de
cervejeiros caseiros em suas tentativas de recriar produtos industriais
clássicos. Não faz sentido cobrar do BJCP a inclusão imediata de estilos
vanguardistas ou inovadores que ainda não tenham se consolidado. Não faz
sentido querer que eles flexibilizem demais a descrição de cada estilo, e nem criticar
sua suposta “rigidez excessiva”. E não faz sentido porque tudo isso
descaracterizaria a função para a qual o guia é criado.
Alguns críticos do BJCP apontam sua
incapacidade de lidar com receitas inovadoras. Mesmo isso é apenas parcialmente
verdadeiro: o BJCP possui algumas categorias especiais para receitas que não se
enquadram em nenhum outro estilo. Também inclui categorias para cervejas que
sigam estilos tradicionais, mas com a adição de outros ingredientes, temperos e
elementos de sabor. Tudo isso, evidentemente, precisa estar claramente
discriminado pelo concorrente que inscreve sua cerveja num concurso. Num
concurso que visa a medir a capacidade de emular estilos tradicionais, ninguém
pode esperar vencer a categoria “extra special bitter ale” com uma cerveja
aromatizada com cravo – por mais deliciosa que ela seja.
Na próxima parte deste artigo, contarei a história da elaboração
do guia de estilos da Brewers Association e falarei sobre suas características.
Não perca!
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