Vimos nas partes anteriores deste artigo a importante
vinculação dos modernos guias de estilos cervejeiros aos recentes concursos de
cervejas do final do século XX. Discorri um pouco sobre a história da criação
do guia do BJCP, o mais empregado atualmente no Brasil. Passemos agora ao guia
que se coloca como principal alternativa ao BJCP: o da Brewers Association.
A Brewers Association e o Great American Beer
Festival
Logo da Brewers Association.
Fonte: craftbeer.com
|
Dentre todos os concursos de cervejas
comerciais ainda realizados atualmente, o mais antigo talvez seja o Great
American Beer Festival, do qual participam exclusivamente cervejas
norte-americanas. Sua primeira edição ocorreu em 1982 em Boulder, Colorado, e,
até hoje, ele é promovido por uma organização chamada Brewers Association (BA,
“Associação de Produtores de Cerveja”), entidade comercial que representa as
microcervejarias norte-americanas desde 1978. A American Homebrewers Assocation
(a mesma AHA que esteve envolvida na criação do BJCP em 1985, como vimos na
parte anterior deste artigo) é um braço da BA, mas agrega apenas os produtores
caseiros, enquanto a Brewers Association é mais abrangente e visa a promover o
desenvolvimento do setor microcervejeiro como um todo, unindo produtores,
representantes comerciais e consumidores.
O leitor atento não terá deixado de perceber que todas essas
organizações e eventos que tenho citado até agora cristalizaram-se na passagem
dos anos 1970 para os anos 1980. Isso não é uma coincidência. Nos anos 1970
ocorreu o primeiro boom das microcervejarias e do movimento da cerveja
artesanal na Inglaterra e, principalmente, nos EUA. Esses campeonatos e
organizações são um produto desse boom e uma forma de regular seu acelerado
crescimento. Seus guias de estilo, em larga medida, são um reflexo do mundo
cervejeiro que a “revolução artesanal” norte-americana criou e do mundo
cervejeiro “ideal” que ela projeta e tenta promover.
Uma imagem ideal do
mundo cervejeiro
Michael
Jackson foi uma das figuras
mais influentes da revolução artesanal
em todo o
mundo, e influenciou os
dois guias cervejeiros analisados aqui.
Fonte:
beerpaintings.blogspot.com |
A Brewers Association elaborou seu primeiro
guia de estilos em 1979, ou seja, apenas um ano após sua criação oficial. Esse
guia foi usado na primeira edição do Great American Beer Festival, de 1982. Sua
elaboração consistiu em uma imensa e importantíssima empreitada. A associação
tinha diante de si, simplesmente, a tarefa de fornecer uma imagem do mundo cervejeiro
que a “revolução artesanal” queria criar. Seu guia de estilos seria usado para
julgar produções das microcervejarias norte-americanas, ajudar a promovê-las
(uma medalha de ouro é um poderoso instrumento de vendas...) e consolidar novos
estilos e um novo gosto para o consumidor norte-americano. A primeira versão do
guia teve consultoria intensiva do especialista em cervejas Michael Jackson e
se baseou em fontes da indústria cervejeira mundial. A obra “Biere aus aller
Welt” (Cervejas de Todo o Mundo), publicada por Anton Piendl na German
Brauindustrie Magazine entre 1982 e 1984, continuou fornecendo material de
apoio para as subsequentes atualizações do guia da BA.
Paralelamente ao Great American Beer Festival (do qual só
participam cervejarias dos EUA), a Brewers Association começou a organizar, uma
vez a cada dois anos, um concurso de abrangência mundial, o World Beer Cup. Sua
primeira edição ocorreu em 1996. O guia de estilos da Brewers Association é
utilizado como parâmetro de julgamento para essas duas importantes competições
cervejeiras. Diferentemente do que ocorre com o National Homebrew Competition e
com o BJCP, esses concursos têm o objetivo de julgar as produções de
cervejarias industriais, e não de produções caseiras. Esse fato já estabelece algumas
diferenças importantes. Vejamos.
Características do
guia de estilos da BA
Um produtor industrial nem sempre está preocupado em seguir
tão fielmente as encarnações clássicas de um estilo. Evidentemente, sempre
existe espaço para produtos de perfil semelhante aos rótulos clássicos
(inclusive por razões de mercado), mas, a princípio, uma microcervejaria busca
agregar algum tipo de diferencial a seu produto, em relação a seus
concorrentes. Por isso, a definição de estilo usada por um cervejeiro industrial
tem, naturalmente, uma certa flexibilidade. Além disso, presume-se que um
produtor industrial já demonstrou sua capacidade técnica para produzir cerveja,
então não se trata mais de emular estilos tradicionais ponto a ponto, mas de
criar algo novo, que gere entusiasmo e movimente o mercado.
“Ainda duvida de que eu sei fazer cerveja?” Sam Calagione em sua cozinha de brassagem na Dogfish Head. Fonte: cigarsinreviewtony.wordpress.com |
Mais importante que isso: os produtos de
uma cervejaria industrial têm um poder de penetração no mercado que um produtor
caseiro jamais pode alcançar sem o auxílio de equipamento industrial. Inovações
criativas produzidas em larga escala pelas cervejarias industriais podem ser
degustadas por um grande número de consumidores em regiões distantes entre si,
criando e modificando rapidamente tendências de gosto e mercado. Em outros
termos: cervejarias industriais têm um poder maior de consolidar estilos do que
cervejeiros caseiros.
Por isso, os parâmetros usados para julgar cervejas
industriais não deveriam ser exatamente iguais àqueles usados para julgar
cervejas caseiras. De fato, a forma de organizar o guia de estilos da BrewersAssociation difere daquela adotada pelo BJCP. No guia da BA, os estilos são
descritos em termos mais genéricos, apenas em seus parâmetros mais gerais –
presume-se que o produtor industrial já
sabe como é o estilo que ele pretende recriar. Esses parâmetros são mais
flexíveis e admitem uma maior variabilidade – isso permite julgar cervejas que
difiram um pouco dos exemplares tradicionais sem ter de desclassificá-las.
Por fim, e talvez mais importante, o guia da BA é atualizado
anualmente, e segue mais ou menos de perto as novas tendências lançadas pelos
microcervejeiros a cada ano. Ele não apenas conta com mais estilos cadastrados
(142, contra 80 do BJCP) como os atualiza com maior frequência. Vale ressaltar,
contudo, que alguns os estilos do guia da BA são superponíveis entre si: uma
Russian Imperial Stout maturada em barris de bourbon, por exemplo, poderia ser
inscrita tanto na categoria “American-Style Imperial Stout” quanto na categoria
“Wood- and Barrel-Aged Strong Beer”, dependendo de que características o
produtor quiser enfatizar. Em resumo: por servir como parâmetro para avaliar e
promover a cena microcervejeira, o guia do BA é mais dinâmico e parece mais
flexível e atualizado.
Acompanhe as próximas partes deste artigo para ver um comparativo
detalhados da forma de apresentação dos estilos nos dois guias, seguida de uma
surpreendente avaliação da mesma cerveja, julgada segundo ambos.
Marcussi, ressalto aqui o que postei no fórum: corre pra uma editora e publica um livro já! ;)
ResponderExcluirObrigado pelos ensinamentos e por teu tempo em compartilhar as informações.
Abraços,
Tarcisio
Obrigado pelo comentário, Tarcisio. No momento eu de fato estou tentando publicar um livro, mas por enquanto é só a minha dissertação de mestrado mesmo! :-)
ExcluirAlexandre,
ResponderExcluirComo já dito em outro contexto, sua dedicação e competência se destacam.
Parabéns pelo excelente blog.
Abraços,
Cervegelo
Também acho que o Marcussi tem potencial para escrever e publicar um livro sobre cervejas e história. Enquanto ele não se decide, vamos lendo por aqui mesmo... :-)
ResponderExcluirMarcussi, ainda não "estudei" o BA, mas ouço falar muito dele. Parece-me um tanto contraditório este guia descrever os estilos de forma mais genérica que o BJCP, e mesmo assim possuir quase o dobro da quantidade de estilos deste último, como você discorreu. Generalização antagoniza com especialização e divisão. Como pode isso?
Abraço.
Claudinei
Olá, Claudinei!
ExcluirDe fato classificação e generalização parecem contraditórios. Mas o guia do Brewers Association tem uma dinâmica interessante, que consegue mais estilos com descrições menos exaustivas. Isso porque o princípio não é exatamente o da generalização, mas sim o da singularidade. O guia do BA não descreve os estilos de forma "genérica", ele os descreve centrado naquela característica que é distintiva, singular do estilo. Enquanto o BJCP é exaustivo e descreve todas as características do estilo, desde as mais características até as secundárias, o BA se foca naquela característica que faz com que reconheçamos o estilo, e deixa as demais um pouco em aberto.
As próximas partes do dossiê vão explorar melhor essa questão comparando o modelo de apresentação dos estilos nos dois guias e depois comparando ponto a ponto a descrição de um estilo específico que eu escolhi (e que por enquanto ainda não digo qual é!). Aí acho que vai ficar mais claro isso que estou dizendo.
Abraços,
Alexandre A. Marcussi