Vimos que o guia do BJCP é atualizado a cada 4 ou 5 anos e é
usado em campeonatos de cervejas caseiras. Suas definições de estilo são mais
detalhadas, estritas e tradicionalistas. Já o guia da BA é usado em competições
de cervejas industriais e ganha atualizações a cada ano acompanhando as
tendências do mercado. Suas descrições são mais atualizadas e flexíveis. Isso
torna algum dos dois guias “melhor” do que o outro? Não necessariamente. São
duas ferramentas distintas, que servem para coisas distintas. Você não bate um
prego com uma colher de sopa, da mesma forma como nem sempre é interessante
seguir à risca o guia do BJCP para avaliar produções industriais.
Uma falsa polêmica
“Qual
seu livro de cabeceira?”
“Ah,
eu não largo meu guia de estilos
do BJCP nem para ir ao banheiro!”
Fonte:
123rf.com |
Recentemente, surgiu no Brasil uma polêmica
em torno das virtudes e dos defeitos do guia de estilos do BJCP, o mais
empregado atualmente no Brasil. Ele foi criticado por sommeliers e cervejeiros industriais (veja o artigo original)
devido à sua incapacidade de avaliar satisfatoriamente produtos inovadores, e
foi defendido por produtores caseiros (veja exemplos aqui e aqui)
devido ao seu rigor e às orientações relativas ao processo produtivo que os
juízes do BJCP devem fornecer. Acredito que a polêmica é pouco proveitosa se
não delimitarmos claramente a história e as funções que esses guias foram
criados para cumprir, como tenho tentado fazer aqui.
Vimos que os guias de estilo foram criados para orientar
campeonatos cervejeiros. Mas, atualmente, eles também têm sido usados como
fontes de informação pelos consumidores. Do ponto de vista do consumidor comum,
que busca esses guias apenas para aprimorar sua competência na degustação de
cervejas, qual dos dois é mais indicado? Mais uma vez, depende. O guia do BJCP
é muito mais detalhado e pode ser uma boa fonte para aprofundar o conhecimento
a respeito de um estilo tradicional. Confrontar uma encarnação clássica de um
estilo com sua respectiva descrição no BJCP é uma experiência riquíssima para
uma melhor compreensão do estilo e uma calibragem mais rigorosa do vocabulário
usado para descrever atributos sensoriais das cervejas.
Por outro lado, quando julgamos um rótulo industrial que não
pretende replicar exatamente um estilo tradicional exclusivamente de acordo com
os parâmetros do BJCP, corremos o risco de sermos injustos, e podemos deixar de
ver e apreciar justamente as inovações que o produtor quis agregar ao estilo
(julgando-as como “defeitos”). Nesse caso, talvez o guia da BA forneça uma
releitura um pouco mais flexível para quem já conhece bem os estilos
tradicionais. Ou seja: em minha opinião, o guia do BJCP tem uma função didática
mais relevante e um rigor maior, enquanto o guia do BA pode ser um parâmetro
mais adequado para julgar cervejas comerciais.
O que é imprescindível é que exista alguma espécie de guia
orientando nossas degustações e avaliações. Às vezes, alguns degustadores
defendem e parecem praticar uma avaliação “livre”, sem se ater a guias de
estilos. Isso pode até parecer sedutor, mas é uma ilusão perigosa. Por mais que
um degustador não consulte um guia, ele certamente tem uma vasta experiência
que lhe diz, de memória, o que ele pode esperar de cada estilo, e é esse “guia
mental” que ele usa quando se depara com uma nova cerveja. Existe um sério risco
quando não se avalia de acordo com estilos: uma cerveja pode não nos agradar e,
ainda assim, ser uma representante perfeita de um determinado estilo. Julgá-la
negativamente apenas porque ela não nos deu tanto prazer quando esperávamos é
não apenas leviano como também antiético e irresponsável. Um degustador sem
noção histórica de estilos jamais será capaz de abrir seu horizonte cervejeiro
e ficará sempre fixado em seus próprios gostos primários. Não levar em
consideração alguma forma de parâmetro de estilos, portanto, é má prática de
degustação; o que é importante é que selecionemos sempre a definição de estilo
mais adequada à situação e ao produto que nos indaga e provoca no copo diante
de nós.
O European Beer Star
As
cobiçadas medalhas do European Beer Star.
As cervejarias brasileiras já
amealharam várias!
Fonte:
european-beer-star.com |
Até agora eu comentei
apenas concursos e guias de estilos norte-americanos. Existe também um
importante concurso cervejeiro de abrangência mundial organizado na Europa, no
qual diversas cervejas brasileiras já conquistaram medalhas: o European Beer Star.
Apesar de a tradição cervejeira ser muito antiga na Europa, o European Beer
Star é um concurso muito recente, cuja primeira edição se realizou em 2004,
mostrando como a “revolução artesanal” demorou um pouco mais para se consolidar
na Europa do que nos EUA.
O European Beer Star é promovido pela Private Brauerein
Deutschland, associação de cervejarias regionais alemãs, e pela Associação das
Cervejarias Pequenas e Independentes da Europa, e usa um guia de estilos
próprio, disponibilizado gratuitamente no site da competição.
Trata-se de um guia pouco conhecido e utilizado no Brasil. Em parte, isso se
deve à sua parcimônia: as descrições de estilo são extremamente sucintas,
porque se considera que os juízes (escolhidos por sua experiência na indústria
cervejeira) já possuem um bom conhecimento a respeito deles. Discriminam-se
apenas as características que serão usadas para desclassificar cervejas fora do
estilo: características comuns ou opcionais, quando não descaracterizam o
estilo, não são sequer mencionadas. Até por isso, trata-se de um guia pouco
útil didaticamente, mas bastante rigoroso para julgamentos.
O European Beer Star é um concurso centrado em estilos
europeus tradicionais. Por isso mesmo, não iremos encontrar entre suas
categorias ou em seu guia de estilos variações inovadoras ou os estilos da nova
escola cervejeira norte-americana. Como consequência, o guia tem um número bem
menor de categorias: apenas 50 na edição de 2011 do concurso. Ainda assim,
acredito que a inclusão de suas descrições de estilo e seu emprego, lado a lado
com os guias do BJCP e da BA, podem ajudar degustadores e ampliar seus
horizontes e obter uma compreensão mais abrangente das possibilidades
oferecidas por cada estilo.
Tomar uma cerveja sem saber o mínimo sobre o estilo a que ela pertence é muito perigoso. Pois podemos julga-la de forma injusta. É como ir a um restaurante de comida koreana e dizer que é ruim pois tudo estava muito apimentado...
ResponderExcluirabraços
Panela de Malte
Depois da polêmica no The Great South Beer Cup não pude deixar de voltar aqui para reler esse post.
ResponderExcluirAcho muito rígido o seu olhar sobre o degustador. Entendo que o gosto pessoal vai invariavelmente influenciar na degustação, mesmo dentro das especificações de um estilo. O degustador pode ter preferência por uma determinada característica do estilo em detrimento de outra. Se a cerveja degustada tiver essa característica preferida de forma mais acentuada a avaliação será influenciada por isso.
Sobre a SBC: Li o guia do campeonato e achei muito vago para alguns estilos (schwarzbier sem aroma torrados, cadê o corpo?) e rígidos em outros (blonde ale com baixo esteres frutados não englobava as de influência belga). Tenho pouca experiencia nesse assunto mas achei tudo bem estranho. Fiquei curioso com a sua opinião sobre esse campeonato. O que você achou?
Olá, Pacheco, tudo bem?
ExcluirPrefiro não comentar muito sobre o South Beer Cup. Eu acompanhei bem por alto alguns debates em torno da composição das mesas de jurados, mas não estive envolvido no processo e muito menos participei das mesas. Portanto, prefiro não comentar detalhes específicos sob pena de ser leviano e ingênuo com colegas sommeliers. Diferentes campeonatos possuem diferentes guias de estilo, como venho demonstrando. Mas o guia de estilos não é tudo. Também existe a "calibragem" do painel de jurados que é feita no próprio evento, muitas vezes por um degustador mais qualificado ou experiente, que vai "orientar" o olhar dos demais para os parâmetros e quesitos esperados dentro daquele descrição do estilo. Ou seja, o guia de estilos pode ser um pouco vago, mas às vezes detalhes específicos são calibrados na própria mesa.
É claro que existe uma margem de gosto pessoal na avaliação de todo degustador. Mas, num campeonato, essa margem deverá ser minimizada. Grandes campeonatos normalmente irão calibrar a percepção dos jurados, inclusive em quesitos específicos dentro de cada estilo, aprofundando a descrição do guia. O jurado tem o compromisso ético de avaliar segundo o guia e segundo essa calibragem, e não apenas dar boas notas às cervejas que possuem as características que ele acha interessantes no estilo. Agora, isso em relação a campeonatos. Claro que a avaliação pessoal, individual de cada sommelier ou jurado é bem mais influenciada por seu gosto pessoal.
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
Caro Marcussi,
ResponderExcluirvendo o pequeno debate sobre gosto e degustação, lembrei de um certo embate que tive com um colega apreciador de cervejas sobre a tal da melhor cerveja do mundo, entre menções de belgas ilustres como DeuS e Westvleteren, acabamos nossa conversa no ponto crucial do seu post:
Ao avaliarmos cervejas como amadores, o método atual mais utilizado, acredito eu, é por meio de sites que pontuam cada cerveja degustada e aí chega o clímax da discussão, uma cerveja perfeita em seu estilo não deveria atingir a nota máxima disponível, equiparando-se às melhores de outros estilos? Não chegamos a uma conclusão pontual, mas achei pertinente partilhar esse interessante dilema que tivemos.
Abraços e como sempre, parabéns pelo blog!
Olá, Leo, tudo bem?
ExcluirSua pergunta mereceria um post só para ele (e possivelmente mais do que isso!) devido à complexidade do tema. Mas tentarei dar uma pincelada geral. Existem duas maneiras de pontuar as cervejas em rankings e campeonatos. A primeira é por escala relativa a estilo: pontua-se apenas de acordo com os critérios de adequação ao estilo. Nesse caso, realmente a melhor American lager e a melhor barleywine de um painel provavelmente atingiriam notas semelhantes. Esse método é bastante rigoroso e respeita as diferentes propostas dos estilos cervejeiros, mas nem sempre reflete a percepção subjetiva de prazer e satisfação do apreciador.
Um segundo método o da escala absoluta, que é usado em rankings na internet (como os que você citou) e em alguns campeonatos também. Nesse caso, o degustador é convidado a avaliar com notas melhores as cervejas com propostas que lhe dão mais prazer. Normalmente, estilos intensos, alcoólicos e complexos se saem melhor nesses rankings, mas eles exibem um grau muito maior de arbitrariedade, porque você está comparando estilos com propostas, perfis e vocações totalmente diferentes. Existem até alguns rankings, como o RateBeer, que cruzam a pontuação dos usuários com uma variável de acordo com o estilo para obter a pontuação final (o que, ao meu ver, só vicia duplamente o ranking).
Em qualquer um dos casos, acho que procurar "a melhor" (seja a melhor cerveja do mundo, seja a melhor de um estilo) nunca é uma boa saída. Muito mais maduro, ao meu ver, é tentar entender a proposta de cada uma, o que cada cerveja oferece de interesse dentro do seu estilo.
Espero ter esclarecido um pouco o assunto!
Abraços,
Alexandre A. Marcussi
O parágrafo final é bem o que eu penso também, porém colocado de uma forma mais brilhante, hehehehe.
ResponderExcluirAbração!