sexta-feira, 23 de março de 2012

Guias de estilos - Parte V: Cada macaco no seu galho


Vimos que o guia do BJCP é atualizado a cada 4 ou 5 anos e é usado em campeonatos de cervejas caseiras. Suas definições de estilo são mais detalhadas, estritas e tradicionalistas. Já o guia da BA é usado em competições de cervejas industriais e ganha atualizações a cada ano acompanhando as tendências do mercado. Suas descrições são mais atualizadas e flexíveis. Isso torna algum dos dois guias “melhor” do que o outro? Não necessariamente. São duas ferramentas distintas, que servem para coisas distintas. Você não bate um prego com uma colher de sopa, da mesma forma como nem sempre é interessante seguir à risca o guia do BJCP para avaliar produções industriais.

Uma falsa polêmica

“Qual seu livro de cabeceira?”
“Ah, eu não largo meu guia de estilos 
do BJCP nem para ir ao banheiro!”
Fonte: 123rf.com
Recentemente, surgiu no Brasil uma polêmica em torno das virtudes e dos defeitos do guia de estilos do BJCP, o mais empregado atualmente no Brasil. Ele foi criticado por sommeliers e cervejeiros industriais (veja o artigo original) devido à sua incapacidade de avaliar satisfatoriamente produtos inovadores, e foi defendido por produtores caseiros (veja exemplos aqui e aqui) devido ao seu rigor e às orientações relativas ao processo produtivo que os juízes do BJCP devem fornecer. Acredito que a polêmica é pouco proveitosa se não delimitarmos claramente a história e as funções que esses guias foram criados para cumprir, como tenho tentado fazer aqui.

Vimos que os guias de estilo foram criados para orientar campeonatos cervejeiros. Mas, atualmente, eles também têm sido usados como fontes de informação pelos consumidores. Do ponto de vista do consumidor comum, que busca esses guias apenas para aprimorar sua competência na degustação de cervejas, qual dos dois é mais indicado? Mais uma vez, depende. O guia do BJCP é muito mais detalhado e pode ser uma boa fonte para aprofundar o conhecimento a respeito de um estilo tradicional. Confrontar uma encarnação clássica de um estilo com sua respectiva descrição no BJCP é uma experiência riquíssima para uma melhor compreensão do estilo e uma calibragem mais rigorosa do vocabulário usado para descrever atributos sensoriais das cervejas.

Por outro lado, quando julgamos um rótulo industrial que não pretende replicar exatamente um estilo tradicional exclusivamente de acordo com os parâmetros do BJCP, corremos o risco de sermos injustos, e podemos deixar de ver e apreciar justamente as inovações que o produtor quis agregar ao estilo (julgando-as como “defeitos”). Nesse caso, talvez o guia da BA forneça uma releitura um pouco mais flexível para quem já conhece bem os estilos tradicionais. Ou seja: em minha opinião, o guia do BJCP tem uma função didática mais relevante e um rigor maior, enquanto o guia do BA pode ser um parâmetro mais adequado para julgar cervejas comerciais.

O que é imprescindível é que exista alguma espécie de guia orientando nossas degustações e avaliações. Às vezes, alguns degustadores defendem e parecem praticar uma avaliação “livre”, sem se ater a guias de estilos. Isso pode até parecer sedutor, mas é uma ilusão perigosa. Por mais que um degustador não consulte um guia, ele certamente tem uma vasta experiência que lhe diz, de memória, o que ele pode esperar de cada estilo, e é esse “guia mental” que ele usa quando se depara com uma nova cerveja. Existe um sério risco quando não se avalia de acordo com estilos: uma cerveja pode não nos agradar e, ainda assim, ser uma representante perfeita de um determinado estilo. Julgá-la negativamente apenas porque ela não nos deu tanto prazer quando esperávamos é não apenas leviano como também antiético e irresponsável. Um degustador sem noção histórica de estilos jamais será capaz de abrir seu horizonte cervejeiro e ficará sempre fixado em seus próprios gostos primários. Não levar em consideração alguma forma de parâmetro de estilos, portanto, é má prática de degustação; o que é importante é que selecionemos sempre a definição de estilo mais adequada à situação e ao produto que nos indaga e provoca no copo diante de nós.

O European Beer Star

As cobiçadas medalhas do European Beer Star. 
As cervejarias brasileiras já amealharam várias!
Fonte: european-beer-star.com
Até agora eu comentei apenas concursos e guias de estilos norte-americanos. Existe também um importante concurso cervejeiro de abrangência mundial organizado na Europa, no qual diversas cervejas brasileiras já conquistaram medalhas: o European Beer Star. Apesar de a tradição cervejeira ser muito antiga na Europa, o European Beer Star é um concurso muito recente, cuja primeira edição se realizou em 2004, mostrando como a “revolução artesanal” demorou um pouco mais para se consolidar na Europa do que nos EUA.

O European Beer Star é promovido pela Private Brauerein Deutschland, associação de cervejarias regionais alemãs, e pela Associação das Cervejarias Pequenas e Independentes da Europa, e usa um guia de estilos próprio, disponibilizado gratuitamente no site da competição. Trata-se de um guia pouco conhecido e utilizado no Brasil. Em parte, isso se deve à sua parcimônia: as descrições de estilo são extremamente sucintas, porque se considera que os juízes (escolhidos por sua experiência na indústria cervejeira) já possuem um bom conhecimento a respeito deles. Discriminam-se apenas as características que serão usadas para desclassificar cervejas fora do estilo: características comuns ou opcionais, quando não descaracterizam o estilo, não são sequer mencionadas. Até por isso, trata-se de um guia pouco útil didaticamente, mas bastante rigoroso para julgamentos.

O European Beer Star é um concurso centrado em estilos europeus tradicionais. Por isso mesmo, não iremos encontrar entre suas categorias ou em seu guia de estilos variações inovadoras ou os estilos da nova escola cervejeira norte-americana. Como consequência, o guia tem um número bem menor de categorias: apenas 50 na edição de 2011 do concurso. Ainda assim, acredito que a inclusão de suas descrições de estilo e seu emprego, lado a lado com os guias do BJCP e da BA, podem ajudar degustadores e ampliar seus horizontes e obter uma compreensão mais abrangente das possibilidades oferecidas por cada estilo.

6 comentários:

  1. Tomar uma cerveja sem saber o mínimo sobre o estilo a que ela pertence é muito perigoso. Pois podemos julga-la de forma injusta. É como ir a um restaurante de comida koreana e dizer que é ruim pois tudo estava muito apimentado...


    abraços

    Panela de Malte

    ResponderExcluir
  2. Depois da polêmica no The Great South Beer Cup não pude deixar de voltar aqui para reler esse post.
    Acho muito rígido o seu olhar sobre o degustador. Entendo que o gosto pessoal vai invariavelmente influenciar na degustação, mesmo dentro das especificações de um estilo. O degustador pode ter preferência por uma determinada característica do estilo em detrimento de outra. Se a cerveja degustada tiver essa característica preferida de forma mais acentuada a avaliação será influenciada por isso.
    Sobre a SBC: Li o guia do campeonato e achei muito vago para alguns estilos (schwarzbier sem aroma torrados, cadê o corpo?) e rígidos em outros (blonde ale com baixo esteres frutados não englobava as de influência belga). Tenho pouca experiencia nesse assunto mas achei tudo bem estranho. Fiquei curioso com a sua opinião sobre esse campeonato. O que você achou?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Pacheco, tudo bem?

      Prefiro não comentar muito sobre o South Beer Cup. Eu acompanhei bem por alto alguns debates em torno da composição das mesas de jurados, mas não estive envolvido no processo e muito menos participei das mesas. Portanto, prefiro não comentar detalhes específicos sob pena de ser leviano e ingênuo com colegas sommeliers. Diferentes campeonatos possuem diferentes guias de estilo, como venho demonstrando. Mas o guia de estilos não é tudo. Também existe a "calibragem" do painel de jurados que é feita no próprio evento, muitas vezes por um degustador mais qualificado ou experiente, que vai "orientar" o olhar dos demais para os parâmetros e quesitos esperados dentro daquele descrição do estilo. Ou seja, o guia de estilos pode ser um pouco vago, mas às vezes detalhes específicos são calibrados na própria mesa.

      É claro que existe uma margem de gosto pessoal na avaliação de todo degustador. Mas, num campeonato, essa margem deverá ser minimizada. Grandes campeonatos normalmente irão calibrar a percepção dos jurados, inclusive em quesitos específicos dentro de cada estilo, aprofundando a descrição do guia. O jurado tem o compromisso ético de avaliar segundo o guia e segundo essa calibragem, e não apenas dar boas notas às cervejas que possuem as características que ele acha interessantes no estilo. Agora, isso em relação a campeonatos. Claro que a avaliação pessoal, individual de cada sommelier ou jurado é bem mais influenciada por seu gosto pessoal.

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

      Excluir
  3. Caro Marcussi,

    vendo o pequeno debate sobre gosto e degustação, lembrei de um certo embate que tive com um colega apreciador de cervejas sobre a tal da melhor cerveja do mundo, entre menções de belgas ilustres como DeuS e Westvleteren, acabamos nossa conversa no ponto crucial do seu post:

    Ao avaliarmos cervejas como amadores, o método atual mais utilizado, acredito eu, é por meio de sites que pontuam cada cerveja degustada e aí chega o clímax da discussão, uma cerveja perfeita em seu estilo não deveria atingir a nota máxima disponível, equiparando-se às melhores de outros estilos? Não chegamos a uma conclusão pontual, mas achei pertinente partilhar esse interessante dilema que tivemos.

    Abraços e como sempre, parabéns pelo blog!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Leo, tudo bem?

      Sua pergunta mereceria um post só para ele (e possivelmente mais do que isso!) devido à complexidade do tema. Mas tentarei dar uma pincelada geral. Existem duas maneiras de pontuar as cervejas em rankings e campeonatos. A primeira é por escala relativa a estilo: pontua-se apenas de acordo com os critérios de adequação ao estilo. Nesse caso, realmente a melhor American lager e a melhor barleywine de um painel provavelmente atingiriam notas semelhantes. Esse método é bastante rigoroso e respeita as diferentes propostas dos estilos cervejeiros, mas nem sempre reflete a percepção subjetiva de prazer e satisfação do apreciador.

      Um segundo método o da escala absoluta, que é usado em rankings na internet (como os que você citou) e em alguns campeonatos também. Nesse caso, o degustador é convidado a avaliar com notas melhores as cervejas com propostas que lhe dão mais prazer. Normalmente, estilos intensos, alcoólicos e complexos se saem melhor nesses rankings, mas eles exibem um grau muito maior de arbitrariedade, porque você está comparando estilos com propostas, perfis e vocações totalmente diferentes. Existem até alguns rankings, como o RateBeer, que cruzam a pontuação dos usuários com uma variável de acordo com o estilo para obter a pontuação final (o que, ao meu ver, só vicia duplamente o ranking).

      Em qualquer um dos casos, acho que procurar "a melhor" (seja a melhor cerveja do mundo, seja a melhor de um estilo) nunca é uma boa saída. Muito mais maduro, ao meu ver, é tentar entender a proposta de cada uma, o que cada cerveja oferece de interesse dentro do seu estilo.

      Espero ter esclarecido um pouco o assunto!

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

      Excluir
  4. O parágrafo final é bem o que eu penso também, porém colocado de uma forma mais brilhante, hehehehe.

    Abração!

    ResponderExcluir