quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A cena cervejeira em Portugal - Parte I: As grandes marcas


Portugal é uma terra de vinhos. Disso não temos dúvida: basta abrir qualquer guia turístico sobre o país ou entrar em qualquer restaurante português para atestar a preferência nacional pela bebida de Baco. Além de fazer, de fato, excelentes vinhos, Portugal instituiu, ainda nas épocas setecentistas do Marquês de Pombal, a primeira área vitivinícola de denominação protegida do mundo: o vale do rio Douro, de onde saem os vinhos do Porto, que eram inicialmente destinados para o mercado inglês e que granjearam desde então fama global.

Transporte de uvas para fabricação do vinho do Porto, 
no rio Douro.
Fonte: geocaching.com
Estive no país – mais precisamente, em Lisboa – nos meses de agosto e setembro para um estágio profissional. Claro que me deixei envolver um pouco pela paixão lusitana pelos vinhos (de um curioso desconfiado, tornei-me entusiasta sincero dos vinhos do país). Mas também é claro que este viajante particular foi à busca do que a terra de Camões poderia oferecer a um amante de cervejas. Encontrei poucas cervejas surpreendentes, é verdade, mas algumas reflexões, uma ou outra curiosidade e, acima de tudo, grandes amigos que fiz em torno de copos deste outro nobre fermentado. Nesta e nas próximas matérias, divido com meus leitores essas reflexões e apresento o que pude conferir da cena cervejeira portuguesa, para todos os que tiverem a oportunidade de conhecer o país e sua capital.

American lagers: pode isso, diretor?

Começo falando sobre um assunto paradoxalmente pouco comentado em blogs de cervejas: cervejas “de massa”. Digo que isso é paradoxal porque sabemos que as American lagers (que os brasileiros aprenderam a chamar de “pilsen” ao longo do século XX) são, disparadas, as cervejas mais vendidas do mundo. Apesar disso, poucos são os entusiastas por cervejas que se aventuram a falar sobre elas (apesar de quase 100% beberem-nas regularmente). Em parte, isso ocorre porque as American lagers são projetadas para serem cervejas de sabor e sensação mais neutros, então não há tanto assim a falar sobre elas, do ponto de vista sensorial. Mas é inegável que as grandes marcas também têm histórias, marketing e uma imagem que pode nos fornecer material à farta para discussão.

Então não é exatamente por falta de assunto que não se fala das American lagers. A verdade é que a maioria maçante dos apreciadores de cerveja desdenha dessas que são as brejas mais consumidas do mundo. Alguns brasileiros até acham que essas cervejas são alguma espécie de “enganação” das grandes companhias brasileiras e norte-americanas, que teoricamente “não sabem fazer boa cerveja” tão bem quanto os europeus e “empurram goela abaixo do consumidor desavisado” as de sempre. Quanta bobagem! A começar pelo fato de que, mesmo nos países com maior tradição cervejeira, American lagers exatamente como as nossas mantêm posições no topo do mercado. “Puro marketing!”, bradarão indignados alguns puristas. Isso é assunto para outra matéria. Aqui, quero apenas começar a quebrar o silêncio sobre o assunto falando sobre as marcas mais vendidas do mercado português.

É mais ou menos assim que os cervochatos imaginam o 
perfil do consumidor de cervejas “comuns”.
Fonte: blog.opovo.com.br
Portugal não escapou do grande processo de consolidação de capitais na indústria cervejeira que marcou o mercado cervejeiro mundial no século XX. O mercado cervejeiro português é ostensivamente dominado por duas grandes marcas que, juntas, correspondem a quase 90% do volume das vendas de cerveja no país: Sagres (da Sociedade Central de Cervejas e Bebidas) e Super Bock (da Unicer). A divisão de quase todo o mercado entre essas duas empresas data da década de 1970, no contexto de reestruturação da economia portuguesa após a independência das colônias africanas, a partir da fusão de todas as cervejarias da porção continental do país.

Sagres e a Sociedade Central de Cervejas e Bebidas

A Sociedade Central de Cervejas e Bebidas surgiu em 1934 a partir da fusão das cervejarias Portugália, Estrela, Jansen e Coimbra. O controle da Sociedade Central de Cervejas e Bebidas foi adquirido pela Scottish&Newcastle em 2003. Em 2008, com a compra desse grupo pela gigante global Heineken, também a Sagres passou a integrar seu portfolio. O carro-chefe da marca é denominado simplesmente Sagres (ou ainda Sagres Branca), e é uma standard American lager produzida com adjuntos (milho “ou” arroz, segundo se lê no rótulo), não muito diferente das nossas pilsens brasileiras.

A esfera armilar e os castelos
amarelos foram suprimidos,
mas ainda assim o escudo de
armas de Portugal é facilmente
identificável no rótulo da Sagres.
A Sagres foi lançada para a Exposição do Mundo Português de 1940. Surgida num contexto de exaltação do colonialismo português, teve sua imagem fortemente marcada pelo orgulho colonial lusitano. O nome da cerveja faz referência ao Forte de Sagres, uma fortificação militar construída em 1443 e localizada no extremo sudoeste do litoral português. O forte era o último ancoradouro dos navios no litoral europeu, antes de se lançarem às conquistas marítimas do Atlântico e do Índico na época que os portugueses orgulhosamente denominam “Era dos Descobrimentos”. Não à toa, a marca Sagres também marcou o início da exportação das cervejas portuguesas, inicialmente para suas colônias africanas. O rótulo traz outra referência à época das grandes navegações portuguesas: o escudo de armas do reino de Portugal – estilizado e modernizado, mas claramente reconhecível. Hoje em dia, quando a própria ideia de um “império português” parece no mínimo antiquada (sem dizer de um profundo mau gosto para uma cultura democrática), o marketing da marca aposta na dobradinha “praia e belas mulheres” – de novo, nada em muito diferente do que temos no Brasil.

A Sagres mostra-se uma cerveja simples e fácil de beber, como pede o estilo, mas com corpo e sabor de malte relativamente acentuados se a compararmos com sua concorrente. Biscoito e mel traem a presença do malte de cevada, algum frutado (maçã vermelha) acentua a doçura, e o lúpulo exibe uma interessante nuance cítrica (limão) por baixo do tradicional floral do estilo. Em comparação com a Super Bock, é mais doce e encorpada, com sensação mais intensa, embora tenha uma certa “oleosidade” meio pesada na textura que atrapalha um pouco a drinkability. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Super Bock e a Unicer

A Unicer foi criada em 1977 por meio de um acordo de reestruturação do mercado português, a partir da fusão da Companhia União Fabril Portuense (a mais antiga do grupo, criada em 1890), a Companhia Portuguesa de Cervejas e a União Cervejeira de Portugal. O grupo, atuante também nos setores de refrigerantes, vinhos e sidras, possui capital majoritariamente português, mas 44% de suas ações são detidas pelo grupo Carlsberg. Por trás da oposição entre a SCC e a Unicer, desenha-se mais um capítulo da concorrência global entre as potências cervejeiras da Heineken e Carlsberg. Algumas coisas parecem iguaizinhas não importa em que país estejamos.

Associação com o clássico de Madonna 
na publicidade da Super Bock.
Fonte: meiosepublicidade.pt
Sua linha de cervejas denomina-se Super Bock. O nome não deixa de suscitar algumas confusões: apesar do termo “Bock”, a Unicer não produz atualmente nenhuma cerveja no estilo alemão bock ou em alguma de suas variações. Seu principal rótulo, chamado simplesmente Super Bock, também é, como a Sagres, uma standard American lager produzida com adjuntos (milho e cevada não maltada, segundo o rótulo). Lançada em 1927 pela Companhia União Fabril Portuense, a Super Bock atualmente investe em uma imagem mais jovem e menos ligada ao passado do país, tendo apostado, nas últimas décadas, em uma associação com eventos culturais (como o festival de cinema fantástico Fantasporto) e, especialmente, com a música, organizando desde 1995 o festival Super Bock Super Rock. Atualmente, a Super Bock tem apostado na diversificação de sua linha, com a introdução de diversos novos produtos desde 2003 – alguns dos quais encontramos no mercado brasileiro.

A Super Bock faz jus ao estilo standard American lager, mostrando-se uma cerveja simples, descomplicada e de paladar muito acessível, apostando em um perfil mais leve, limpo e refrescante em comparação com sua concorrente. Os sabores de maltes e ésteres frutados são ainda mais suaves do que na Sagres, e o corpo é mais leve, com sensação de limpeza da boca ao engolir e um final seco e curto, pouco marcante mas refrescante. Há uma certa nuance apimentada no aroma e sabor do lúpulo que lembra variedades nobres como o Saaz tcheco. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Joaquim ou Manuel?

A polarização do mercado cervejeiro português em torno de apenas duas marcas sugere um exercício de comparação entre elas. A sabedoria popular exulta na comparação entre as marcas de American lagers do mercado – normalmente a partir de falta de informação e de mitos como a clássica “água da Brahma de Agudos” ou a suposta “dor de cabeça da Kaiser” –, mas os entusiastas das cervejas ditas “especiais” raramente fazem esse exercício.

E têm boas razões para tanto. Em primeiro lugar, as cervejas de massa têm perfis sensoriais tão, tão parecidos que chega a ser difícil discerni-las às cegas, apenas pelo gosto. Além disso, American lagers, por serem cervejas leves e delicadas, com pouca lupulagem, sofrem muito facilmente os efeitos do mau transporte e acondicionamento. As diferenças entre duas garrafas da mesma cerveja, compradas em lugares diferentes, frequentemente são maiores do que as diferenças entre dois rótulos diferentes comprados no mesmo estabelecimento. No fim das contas, na comparação entre American lagers da mesma categoria, quase sempre a “vencedora” será a mais fresca e menos afetada pela oxidação.

Mas nem por isso não podemos comparar American lagers. Podemos, em vez de tentar identificar a “melhor” (exercício temerário e quase sempre superficial e irresponsável), simplesmente apontar as características de cada uma. Isso torna-se ainda mais viável quando – como no caso português – temos no mercado apenas duas marcas com perfis sensoriais sensivelmente distintos entre si. Então, vejamos:


Como o gráfico indica, a Sagres mostra-se uma cerveja mais pesada, de doçura e sabor mais intensos, com sabores mais marcantes de malte e frutados. Nesse sentido, pode-se dizer que é uma cerveja mais saborosa. A Super Bock, por sua vez, mostra-se mais seca, leve e ácida, com sabor menos presente, mas com sensação mais limpa e refescante na boca. Uma cerveja mais fácil de se beber e que refresca mais, poderíamos dizer. Qual a melhor? Difícil dizer, pois parecem ser propostas levemente diferentes. É interessante ver que isso pode ter a ver com o público-alvo e as estratégias de comunicação definidos por cada marca: a Sagres parece ter um público mais tradicionalista, talvez mais velho, que busca um sabor familiar, enquanto a Super Bock parece apostar num público mais jovem e descontraído, para quem refrescar é o objetivo primordial.

Mas então qual era mais fácil de encontrar fresca, sem defeitos? Infelizmente, nenhuma das duas. Bebi cervejas oxidadas (com sabores de papelão e sobretudo metálicos) com uma irritante frequência enquanto estive em Portugal. E o pior é que o defeito não se limitava a esta ou aquela marca, antes estendendo-se democraticamente a quase todas as cervejas que provei no país, em maior ou menor grau, desde a Sagres da pastelaria da esquina até a mais cara cerveja belga importada. Sempre reclamamos – com toda razão, aliás – da forma deplorável como alguns importadores, distribuidores e vendedores de cerveja tratam seus produtos aqui no Brasil, mas a coisa parece estar ainda mais feia em Portugal.

Mas é claro que nem só de American lagers vivem os portugueses. Na próxima parte desta matéria, falarei sobre algumas transformações do mercado lusitano nos últimos dez anos, como a diversificação dos estilos cervejeiros para além das lagers claras de sempre. Na contramão do que vem ocorrendo em outros países do mundo, em Portugal as grandes companhias têm assumido a dianteira nesse processo. Não perca!

5 comentários:

  1. Realmente falar de American Lagers é bem complicado, na verdade hj não vejo diferença nenhuma nas opções nacionais do estilo, a prova disso foi que numa brincadeira, eu e ums amigos fizemoa um teste cego com 7 cervejas e só acertei uma rsrs
    Hj em dia não bebo mais as American Lagers da vida pelo mesmo motivo que me fez entrar no mundo das cervejas especiais: Saúde. Tenho alergia a milho. Foi graças a essa alergia que descubri o mundo das cervejas especiais.
    Claro que vez ou outra a título de curiosidade, provo uma ou outra cerveja que contenha milho em seus ingredientes, mas como bebo apenas uma nao tenho crise alérgica. Inclusive ja provei a Super Bock, não achei tão diferente das nossas comerciais.
    Belo texto, parabéns

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  2. Realmente, as American lagers normalmente são padronizadas para terem um perfil sensorial parecido, tanto que é difícil diferenciá-las umas das outras. A ideia para esta matéria surgiu da percepção de que, em Portugal, só há duas grandes marcas e elas realmente têm algumas pequenas diferenças uma em relação à outra - mas nem de longe tão evidentes como as diferenças, digamos, entre duas IPAs diferentes.

    Se você tem alergia a milho, tome cuidado também com algumas brejas belgas que levam milho na composição, como a Leffe, se não me engano também a Gouden Carolus, entre outras. As cervejas de abadia belga usam muito adjuntos para aumentar o teor alcoólico sem ficarem muito xaroposas. O açúcar cândi é o ingrediente mais usado para isso, mas muitas também usam o milho, então sempre leia com atenção os rótulos! E vale o alerta: as importadoras quase nunca traduzem adequadamente os ingredientes, então tem de ler no rótulo original!

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  3. Pois é, as belgas sãos as minhas preferidas, e sou fã da Carolus, mas como só tomo uma para experimentar, a quantidade de milho no meu organismo não é grande e não chega a causar reação alergica.
    Sempre procuro pesquisar os ingredientes para saber se posso ficar despreocupado com alergia.

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  4. Alguns podem achar que é preconceito, mas acho sensacional esse estilo lusitano de uma cerveja cuja linha é Bock não ter/ser o estilo bock!

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    1. O Bob levantou, faz tempo já, a hipótese de que a marca um dia tenha começado com uma cerveja no estilo bock, talvez na passagem do século XIX para o XX. Quando a cervejaria abandonou o estilo bock e adotou o American lager, talvez tenha mantido o nome por motivos comerciais. É plausível, embora eu não tenha conseguido encontrar material que desse respaldo à tese.

      Hoje a marca tem enfatizado o "super" em sua publicidade, com lemas como "super verão" e por aí vai.

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