quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Cervejas selvagens - Parte XIX: Brasil indomável

Na última parte desta nossa viagem pelo mundo da selvageria cervejeira, falamos sobre microcervajarias da chamada “revolução artesanal” que começaram, a partir dos anos 1990, a sair da barra da saia das Saccharomyces (as tradicionais leveduras cervejeiras usadas para produzir ales e lagers) e flertar com as ariscas Brettanomyces, Lactobacillus e Pedioccocus. Foi assim com muitas cervejarias dos EUA, Dinamarca e Holanda. Mas e o Brasil, terra de natureza exuberante e colossal? Aposto como aqui a selvageria cervejeira também poderia encontrar uma expressão grandiosa, não?

Produção do cauim de milho entre os araweté do Pará.
Fonte: http://pib.socioambiental.org/
Pois é, por enquanto, não. Não que não haja antecedentes históricos. Todo o território brasileiro – aliás, toda a América do Sul –, antes da expansão desenfreada da pecuária e da agricultura pelo interior do continente, era habitado por diversos povos indígenas que produziam vários tipos de fermentados selvagens – seja na forma do caium, fermentado de mandioca, algarobo ou milho, seja na forma do hidromel, feito do mel, seja na forma de bebidas que misturavam essas matérias-primas. Em todo o litoral sul do Brasil, área de grupos tupinambás, bem no Centro-Oeste, essas ricas tradições de fermentados naturais (cada qual com inúmeras variações nas técnicas de produção) conviviam entre si. Portanto, o Brasil tem uma baita bagagem histórica para a produção de bebidas alcoólicas com fermentação natural. Se a Bélgica é o país das lambics e Flanders red/brown ales, o Brasil é um continente inteiro de selvageria.

Mas – convém lembrar o leitor – estamos falando do Brasil. É, esse Brasil eurocêntrico, tacanho, colonizado, que fica macaqueando modas estrangeiras e joga fora o que teve e tem de melhor em nome de uma imitação de segunda categoria do que é “fino” lá fora. Poderíamos ter uma rica interlocução entre produtores industriais e nossas tradições culturais autóctones, mas preferimos simplesmente enfiar frutas tropicais aleatórias como aditivos exóticos em meio a bebidas produzidas seguindo tintim por tintim as técnicas do “Primeiro Mundo”. Enfim. Apesar de se um país com uma rica tradição histórica de fermentados “selvagens” de fontes de amido, o Brasil parece estar quase completamente alheio às cervejas selvagens.

As dificuldades técnicas

Mas vamos com calma. Alguns fatores explicar essa relutância dos produtores nacionais em se aventurar no “lado negro” da selvageria cervejeira. Não estou nem falando em resgatar e adaptar industrialmente técnicas indígenas e autóctones de fermentação espontânea – o que seria o ápice de uma verdadeira contribuição nacional ao cenário cervejeiro global. Isso seria um segundo – e ambicioso – passo, que demandaria pesquisa etnográfica, etnohistórica, arqueológica e etnocientífica numa escala que o Brasil simplesmente não está acostumado a fazer, além do desenvolvimento de novas tecnologias de produção e de uma regulamentação jurídica junto aos órgãos oficiais. Sim, eu gosto de sonhar alto, por que não? 

Mas, por enquanto, vamos falar simplesmente em produzir, em solo tupiniquim, cervejas selvagens baseadas nas tradições europeias e nas sour ales da “nova geração”. A primeira dificuldade é o acesso às criaturinhas que fazem a mágica acontecer: Brettanomyces, Lactobacillus e Pediococcus são leveduras e bactérias que só recentemente passaram a ter boa disponibilidade para produtores nacionais, na forma de culturas laboratoriais especificamente adaptadas para a produção cervejeira. Para piorar, esses microorganismos (em especial as Brettanomyces) podem ser bastante agressivos e, uma vez que se instalem num determinado ambiente, são muito, mas muito difíceis de serem extirpados. Ocorre que, para quase todos os estilos de cerveja fora do mundo das sour ales, sua influência é considerada um defeito. Muitos produtores evitam convidar esses monstrinhos para suas fábricas com medo de comprometer a produção de suas cervejas mais “convencionais”.

Infestação de fungos: o pesadelo
secreto de todo produtor de cerveja.
Fonte: www.hgtvremodels.com
Há outros detalhes. Quase todas as sour ales exigem o uso de barris de madeira, técnica complexa, quase esotérica, que está longe de ser dominada pelas cervejarias nacionais. E um barril usado para fermentar e maturar sour ales não pode depois ser usado para mais nada além de outras sour ales. Lembra que eu disse que as Brettanomyces eram invasoras praticamente inexpugnáveis? Pois é, e a madeira é seu habitat preferido. Há ainda as questões legais. A legislação sul-americana de produção cervejeira ainda não está preparada para lidar com as complexas questões sanitárias que envolvem a produção de alguns tipos de sour ales. Se até na União Europeia os produtores de lambics precisam brigar para serem deixados em paz pelos órgãos sanitários, imagine então como seria a regulamentação de uma cerveja de fermentação espontânea no Brasil.

E, por último, resta a questão dos preços. Sour ales demoram para serem fabricadas, pois exigem longos períodos de maturação em madeira. Se as cervejarias brasileiras acham que podem cobrar R$ 20-30 reais numa long neck de qualquer nova cerveja um pouco mais ousada e/ou alcoólica, quanto custaria uma sour? Essa questão eu me abstenho de comentar, e deixo para a consideração dos meus leitores.

Dois experimentos brazucas

A despeito de tudo isso, existem aqui e ali alguns experimentos. A maior parte deles, hoje, é feita ou por cervejeiros caseiros, ou na condição de lotes experimentais, sem intenção comercial, de cervejarias estabelecidas. Eu mesmo tive a honra de provar uma ótima “lambic” com amoras feita em casa um velho amigo, que estava com apenas um 1 de maturação e ainda exibia uma boa dose de açúcares residuais, bem como uma extraordinária “Flanders red ale” da Wäls que resultou da maturação da Quadruppel em barris de uísque (sobre a qual falei aqui). Mas, nas prateleiras, ainda reina a escassez. Apesar disso, começam a aparecer lentamente alguns rótulos de distribuição comercial, e espero que continuem a aparecer mais no futuro próximo. Falarei sobre dois com uma forte pegada de brasilidade.

A primeira sour ale produzida no Brasil provavelmente foi a Falke Vivre Pour Vivre (“viver para viver” em francês, título de um filme de Claude Lelouch). Da mesma forma que ocorreu com a primeira cerveja americana a faturar medalha na categoria “lambic” nos campeonatos gringos, consta que essa Falke teve sua origem em um erro, uma contaminação bacteriana numa tentativa de produzir outra cerveja. Diz a lenda que a Falke teve uma contaminação lática em um dos lotes de sua Tripel Monasterium e, em vez de jogar a cerveja azedada ralo abaixo, o proprietário Marco Falcone decidiu adicionar suco de frutas e mais leveduras nas garrafas, para refermentar. O resultado agradou Falcone de uma tal forma que inspirou a Falke a produzir uma sour ale.

Fonte: biervila.wordpress.com
A fruta escolhida para adicionar à cerveja-base foi a nacionalíssima jabuticaba, cujos tons terrosos e a leve acidez casaram bem com as características selvagens da fermentação. A cerveja, com teor alcoólico de 4.5% (bem mais baixo que o da Monasterium, e mais próximo daquele das lambics belgas) passa por uma fermentação primária com Saccharomyces e uma segunda fermentação lática, com um longo período de maturação de 3 anos, segundo a cervejaria. Aparentemente, a maturação ocorre em tanques de inox, e não em madeira. Depois, as jabuticabas são adicionadas para ocasionar uma terceira fermentação. A cerveja foi lançada pela primeira vez em 2009, mas ainda sem distribuição comercial, podendo ser degustada apenas por aqueles que foram honrados com uma garrafa oferecida pelo próprio Marco Falcone (ou por aqueles que, como eu, estão longe de fazer parte da “nobreza cervejeira” brasileira, mas têm generosos amigos dentro dela!). Mais tarde, salvo engano em 2011, ela entrou em distribuição comercial pela espantosa cifra de R$ 200 pela garrafa de 750ml, desincentivando completamente os consumidores a apoiarem essa nascente, e quase natimorta, “revolução selvagem” brasileira.

A Falke Vivre Pour Vivre é frequentemente comparada às fruit lambics belgas, mas a comparação não me parece muito precisa. A começar pelo fato de que não se trata de uma cerveja de fermentação espontânea, mas de uma ale inoculada com fermento e que posteriormente recebe uma segunda inoculação com bactérias láticas. Ademais, lambics belgas se caracterizam pela ação das Brettanomyces (recebidas pelo ar durante a fermentação espontânea e potencializadas pela maturação em madeira), adquirindo uma inclemente secura e aromas animais, sendo que essas características são bastante suaves na Vivre Pour Vivre, que não recebe leveduras do ar e não matura em madeira. O pouco que há de Brettanomyces, ao que tudo indica, entra apenas na fase final, junto com as jabuticabas, imprimindo traços suaves à cerveja. Tudo isso me faz pensar nela como algo mais na linha das sour ales da nova geração.

A doçura dos açúcares ainda é bem evidente e chega até a se sobrepôr à acidez lática em alguns momentos, sobretudo no final adocicado e macio, com sabor de malte, lembrando os estilos de Flandres. A parca presença de Brettanomyces explica essa alta dose de açúcares residuais, que torna a cerveja bastante palatável. Há ainda uma boa dose de salgado. O aroma é rústico, predominando os tons terrosos, lembrando mofo, tamarindo e casca de batata, sobre sabores de frutas vermelhas (penso em morangos desidratados). Há amêndoas cruas, um acento animal suave e um final docinho em que o malte mostra mel e castanhas. O corpo é médio e sedoso. É uma sour ale com frutas mais adocicada, que não assusta quem não está acostumado, mas que não chega a ser enjoativa e nem perde em complexidade. Veja aqui a avaliação completa. Boa criação nacional, mas a comparação com as fruit lambics é descabida. O preço é impraticável, e acredito que seja motivado pela maturação de 3 anos após a fermentação lática. Uma maturação de 3 anos é comum em lambics, mas eu fico me questionando se ela realmente é necessária neste caso, tendo em vista a pequena importância das Brettanomyces. A despeito de todo esse tempo, a Vivre Pour Vivre parece uma sour ale de maturação curta.

Tenho a impressão de que, assim como a Falke foi inspirada por um erro, a segunda cerveja selvagem a ser comercializada no Brasil também acabou ficando ácida quase “sem querer”. Provando que, às vezes, errar é bem mais interessante do que acertar. Injustamente pouco comentada no meio cervejeiro nacional, ela é uma das coisas mais interessantes que já saíram das cervejarias brazucas, não propriamente porque seja uma cerveja perfeitinha e sem arestas, mas porque realmente é um produto único, que partiu da tradição alemã (a principal origem de nossa tradição cervejeira no Brasil) para criar algo totalmente inédito. Refiro-me à Bamberg St. Michael, uma sazonal de luxo da cervejaria Bamberg lançada pela primeira vez no final de 2010 para comemorar os 5 anos da cervejaria. Trata-se de uma Weizenbock escura que passa por dry-hopping com variedades alemãs de lúpulo, matura durante 6 meses em barris de carvalho usados para produção de vinho tinto e refermenta na garrafa com leveduras de espumante. As leveduras e bactérias selvagens não são inoculados, mas afetam a cerveja durante o estágio em madeira, transformando-a em uma espécie de “sour Weizenbock”.

Fonte: http://cervejariabamberg.blogspot.com.br/
A acidez lática e sobretudo acética potencializam a acidez natural da cerveja de base, uma Weizen (e a Bamberg realmente puxa bastante na acidez de suas cervejas de trigo), criando um efeito interessante sem descaracterizar seu perfil de Weizenbock. Um perfume de lúpulo alemão (bem floral com um toque de limão), abre espaço para as frutas (banana-passa, ameixas secas, morango) e o caramelado do malte. O cravo se atenuou e deu origem a interessantes notas defumadas. Vinagre, terroso, amadeirado e tostado anunciam a passagem pelo barril. Na boca ela se mostra bem elegante, com um ataque ácido intenso conduzindo a um final mais suave, em que aparece uma leve doçura de malte, nada pesada, bem elegante. O corpo é mediano, seco para seu alto teor alcoólico de 8.2%, avolumado pela espantosa carbonatação, e levemente adstringente como deve ser uma sour ale. No final, ela sintoniza bem os toques frutados e de especiarias e a refrescante acidez de uma Weizenbock com a acidez e a rusticidade da fermentação espontânea, tornando-se ao mesmo tempo menos pesada e mais complexa que uma Weizenbock tradicional. Como se o malte desse um passo atrás e a complexidade das fermentações pudesse mostrar seu brilho. Veja aqui a avaliação completa.

A minha impressão é que o Alexandre Bazzo, proprietário da germanófila Bamberg, tentou criar uma cerveja intensa com maturação em barris (como fazem os norte-americanos com suas colossais imperial stouts e barley wines) e escolheu para isso um dos estilos de maior teor alcoólico e complexidade da escola alemã. Contudo, a baixa lupulagem e a acidez natural da cerveja de trigo fizeram com que a maturação em barris levasse a cerveja para o lado de uma sour ale. Sorte a nossa. Minha impressão sobre a safra 2011 (a única que provei) foi que a cerveja poderia talvez ter uma personalidade selvagem mais definida, com acidez mais elevada, mas mais para o lado lático e menos para o acético, que acabou sendo muito acentuado. Adoraria ver a Bamberg realmente assumir o lado “sour” dessa cerveja, sem tentar mascarar a acidez e a ação dos microorganismos selvagens. De qualquer forma, acredito que ela tenha aberto um caminho muito promissor. O Brasil tem uma longa tradição de produzir cervejas alemãs, e eu acho salutar que nossos cervejeiros aproveitem essa experiência para usar os estilos alemães como trampolins para novos experimentos.

Trata-se de dois rótulos de acidez ainda pouco ousada, o que é compreensível diante da quase inexistência de paralelos no mercado nacional e do restrito universo de comparação que tínhamos, mesmo entre as importadas, até o ano passado. E é só isso? Não exatamente. Em 2013, a cervejaria Abadessa lançou sua Gose, mas a produção foi relativamente limitada e eu não consegui ter acesso a ela. Não sei dizer qual o grau de “selvageria” dessa cerveja, ainda mais levando-se em conta que o estilo Gose tem sido recentemente reinterpretado com acidez atenuada. Só sei que ela sai de novo agora em 2014 e eu não pretendo perder desta vez!

2013 foi um ano muito interessante para os amantes de cervejas selvagens no Brasil. Quando comecei a escrever sobre o assunto, em abril, tínhamos pouquíssimos rótulos disponíveis no mercado. Passaram a ser importadas as cervejas daqueles que talvez sejam os dois mais importantes produtores de lambic da atualidade – a Cantillon e a 3 Fonteinen. Novas marcas de Flandres red ales chegaram ao país. As cervejas selvagens ganharam mais notoriedade e conquistaram paladares de cervejeiros que antes faziam careta para todo esse “azedume”. Gosto de pensar que esse blog desempenhou pelo menos um pequeno papel nesse despertar de interesses. Os preços ainda não ajudam quem é curioso, e as cervejarias nacionais parecem ainda não ter acordado muito para essa nova tendência, mas o brasileiro parece finalmente estar levando as cervejas selvagens a sério. Quem sabe o cenário não melhore ainda mais em 2014?


Nas próximas partes, finalizaremos esta longa série sobre as cervejas selvagens voltando a falar sobre lambics. Na próxima parte, quero ilustrar a evolução de uma lambic ao longo do tempo com 4 degustações, e depois pretendo finalizar falando sobre novos experimentos e o novo horizonte aberto aos produtores belgas. Acompanhe!

7 comentários:

  1. Muito bom esse post, parabéns. Creio que a jabuticaba pudesse ser mais utilizada em cervejas a la sour ales. Na minha infância aqui no interior do RJ, lembro que faziam um licor de jabuticaba colocando-as em um vasilhame as enterrando para fermentar. abraços

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    1. O Brasil tem várias frutas que têm a proporção perfeita de doçura, acidez e taninos para uma sour de matar! Sempre penso em carambola e pitanga, por exemplo. O seu comentário sobre licor de jabuticaba é perfeito - acho que são essas técnicas tradicionais de fermentação que deveriam estar sendo experimentadas pelas cervejarias, e não só as novas variedades de lúpulo americano.

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  2. Alexandre, com certeza este Blog mudou meu pensamento sobre espontâneas, hoje sou um avido degustador (tanto de cervejas, quanto de literatura deste estilo). não é meu estilo preferido ,mas é top Five.A Vivre é nuito legal,ousada, harmonica, competente, só acho que não vale o custo beneficio. Um forte abraço

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  3. Já provou a Catarina Vintage da Basement? Dá pra chamar de sour? No paladar ela tem azedo razoável, pelo menos, e se bem me lembro é bem seca.

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    1. Olá, Edson! Ainda não provei a Catarina Vintage. Pelo que vi das descrições comerciais da cerveja, quaisquer traços selvagens devem ter sido provavelmente inesperados. Mas vou tentar achar ainda uma garrafinha, valeu pela dica!

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  4. Se eu tivesse lido teu artigo antes, não teria jogado no vaso sanitário 72 garrafas de um lote que contaminou com acético... coisas de cervejeiro, coisas desse imenso universo das cervejas. Abraço!

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    1. O lance é SEMPRE guardar e ir provando, nem que sejam guardadas por anos! hehehe!

      mas se pegou muito acetico eh complicado mesmo.

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