terça-feira, 1 de julho de 2014

Yes, nós somos selvagens! - Way Beer Sour Me Not

Há algum tempo eu tinha escrito aqui uma postagem sobre o desolador cenário do mercado de cervejas brasileiras para quem, como eu, é fã de sour ales. Reclamei da virtual inexistência de cervejas selvagens produzidas pelas cervejarias nacionais, salvo raríssimas exceções de rótulos praticamente inacessíveis ao consumidor comum – seja por não serem distribuídos comercialmente, seja pelo preço abusivo. As sour ales são um grupo de estilos cervejeiros em franca ascensão no mercado mundial, mas o Brasil parecia estar dormindo no ponto – mesmo apesar da tradição de fermentados selvagens autóctones que temos em terras brasílicas.

A linha Sour Me Not, da cervejaria Way.
Fonte: www.beershow.com.br
Isso foi em janeiro deste ano. Seis meses atrás. Hoje posso me alegrar em dizer que já há sinais de que as cervejarias nacionais estão despertando para as fascinantes contribuições que micro-organismos como as Brettanomyces, os Lactobacillus ou os Pediococcus podem dar às cervejas ditas “selvagens” ou “azedas”. Neste ano, tenho visto cervejarias se movimentando para produzirem rótulos com fermentação lática, com adição de Brettanomyces e até sour ales tradicionais “completas”, com maturação em madeira, que provavelmente ainda demorarão alguns anos para atingir as prateleiras. Em março, no Festival Brasileiro de Cerveja, foi possível ver os primeiros sinais desse despertar selvagem. Os primeiros frutos a chegarem ao consumidor regular foram as cervejas da linha Sour Me Not, lançada pela microcervajaria Way, da região metropolitana de Curitiba, às quais quero dedicar o texto de hoje.

Sour Me Not

A microcervejaria Way Beer tem se destacado no mercado nacional por produzir estilos cervejeiros modernos, sintonizados com tendências globais, e também por colocar seus lançamentos no mercado com boa distribuição e preços interessantes. A linha Sour Me Not não foge da regra. Trata-se de três cervejas fermentadas com uma cultura mista de Saccharomyces (leveduras cervejeiras tradicionais), Pediococcus e Lactobacillus (bactérias produtoras da ácido lático). As três usam a mesma receita-base, que possui um baixo teor alcoólico de 3,5% e lupulagem muito discreta, e se diferenciam pela posterior adição de frutas – morango, graviola e acerola. A cervejaria chegou a testar 15 frutas diferentes e optou por essas 3 para o lançamento da linha, mas já prepara novos rótulos com outras frutas.

Para quem não está familiarizado com a enorme variedade de estilos de cervejas selvagens, vale a pena fazer alguns adendos, até para desmistificar informações equivocadas que vejo circularem por aí. Essas não são cervejas de fermentação espontânea – as bactérias são adicionadas no processo produtivo de forma controlada, lado a lado com as leveduras tradicionais de ales. Também não recebem adição de Brettanomyces e, portanto, não desenvolvem as duas características associadas a essas leveduras: superatenuação e compostos fenólicos de aromas animais. Sendo assim, as cervejas da linha Sour Me Not não têm praticamente nada a ver com fruit lambics, que fermentam espontaneamente e têm as Brettanomyces como protagonistas em seu perfil sensorial. Por favor, corrija quem quer que você escute falando essa bobagem.

Berliner Weisse, com adição de xaropes aromatizantes.
Fonte: www.lecker.de
Na verdade, se quisermos aproximar as cervejas da Way de algum estilo selvagem tradicional, o modelo mais próximo talvez sejam as Berliner Weisse, as cervejas de trigo da região de Berlim, que contam com fermentação lática. Em comum com o estilo alemão, as cervejas da Way possuem o baixo teor alcoólico, a refrescante acidez lática, a ausência de Brettanomyces (resultando em um aroma mais simples e direto) e o sabor perceptível de maltes claros. A diferença é que as Way levam adição de frutas (morango, acerola e graviola) após a fermentação. Na verdade, a cervejaria usa a polpa pasteurizada das frutas, imagino que para evitar contaminação com outros tipos de micro-organismos, incluindo eventuais Brettanomyces residentes nas cascas das frutas in natura.

As três azedas da Way

Comecemos pelas características comuns aos três rótulos da linha, que não são poucas, já que todos usam a mesma receita-base. Na verdade, é possível encarar as Way Sour Me Not não como cervejas totalmente diferentes, mas como variações de uma mesma cerveja – mais ou menos como se faz quando se adicionam diferentes aromatizantes a uma mesma Berliner Weisse.

Not for babies.
Fonte: my10online.com/
Aviso aos navegantes: essas não são sour ales suaves e amigáveis. Em todas elas, a acidez lática é assertiva e chega até a ser agressiva em alguns momentos, o que certamente vai incomodar quem não está acostumado com esse tipo de cerveja. Não acho que sejam boas portas de entrada para o mundo das cervejas selvagens, portanto. Contudo, a receita-base traz bastante doçura de malte com o intuito de equilibrar a acidez – as cervejas não são tão secas quanto sugere a descrição comercial do rótulo, e nem de longe tão secas quanto uma lambic. Todas trazem um ataque ácido muito intenso na língua e nas bochechas e depois fecham o gole trazendo doçura residual do malte, lembrando sabores de pão branco, biscoito doce e baunilha, em diferentes intensidades. A textura tem boa adstringência, com sensação de amarrar a boca que ajuda e equilibrar a doçura.

Quanto ao aroma, os traços das frutas são suaves, muito menos vívidos do que numa fruit lambic. Na verdade, predomina inicialmente um aroma residual de fermentação lática, que lembra muito o cheiro de probióticos láticos do tipo Yakult, e que me incomodou um pouco. Os sabores da fruta vêm em segundo plano e vão se abrindo com o tempo e o aumento da temperatura. Um ponto negativo é que esses aromas, em vez de remeterem às frutas frescas ou maduras, lembram mais o cheiro de fruta passada ou fermentada (isso é claro na versão com morango), o que traz novamente um certo incômodo. Já o corpo é mediano, não tão seco quanto a maioria das sour ales, com uma certa cremosidade que reflete a doçura residual do malte. No conjunto, são sour ales simples e diretas, sem grande complexidade, que põem em primeiro plano a interação entre acidez, fruta e malte.

A versão que menos me agradou foi a que recebe adição de morango. O caráter da fruta é apenas moderado e lembra a sensação de morangos cozidos e passados, e não da fruta fresca e madura. A doçura final é alta e vai ficando um pouco enjoativa com o tempo. A mistura de doce/abaunilhado, lático e da fruta lembra um pouco a sensação de um cheesecake. (Clique aqui para ver a avaliação completa) A versão com acerola, por sua vez, é a mais seca e firme na boca, e traz uma acidez mais elevada, que consegue cortar melhor a doçura do malte, resultando em uma cerveja mais refrescante. Os taninos da fruta dão uma forte e gostosa sensação de adstringência. O aroma da fruta é o mais discreto da linha, mas sente-se uma certa citricidade que remete a acerola e a suco de laranja. É a mais interessante na boca, embora possa ser um pouco chocante devido à intensidade da acidez. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Fonte: http://screamyell.com.br/
A versão com graviola, a meu ver, é a que tem conjunto mais equilibrado e bem-acabado, considerando tanto a sensação na boca quanto o aroma. O aroma da fruta vai se abrindo com o tempo e traz boa vivacidade e suculência, adicionando tons cítricos, tropicais e terrosos bem típicos da graviola (que eu adoro), em alguns momentos conseguindo encobrir a sensação de “passado” da fermentação lática. Na boca, sua doçura fica em um ponto intermediário entre a versão com morango e a com acerola: nem tão enjoativamente doce quanto a primeira, nem tão ácida e firme quanto a segunda. (Clique aqui para ver a avaliação completa)

Afiando a produção nacional da sour ales

As cervejas da linha Way Sour Me Not são excelentes sour ales? Sinceramente, eu adoraria dizer que sim, mas não seria verdade. Na real, elas têm diversas arestas e pontas soltas a aparar. Na minha visão subjetiva, como apreciador de cervejas selvagens, elas têm acidez um pouco agressiva demais e, para compensar, trazem doçura residual de malte em excesso. O resultado não é equilibrado, mas as torna apenas um pouco difíceis de beber e enjoativas. Eu tomei as três em três dias consecutivos e já fiquei um pouco empapuçado – imagino como seria se eu tentasse beber todas na sequência. Na minha visão, elas deveriam ser bem mais secas e, ao mesmo tempo, ter acidez mais gentil, o que resultaria em um conjunto mais delicado, refrescante e fácil de beber, como são as Berliner Weisse. Uma fermentação lática menos vigorosa poderia não só atenuar a acidez como também disfarçar melhor o aroma de probiótico, que ficou intenso demais (já que não há Brettanomyces para cobrir o aroma da fermentação lática).

Ao mesmo tempo, o aroma da fruta precisa se tornar mais afiado e fresco. Talvez o uso da fruta fresca (ou quem sabe da fruta congelada, mas inteira), em vez da polpa pasteurizada, possa ajudar nesse sentido. As cascas concentram boa parte do frescor aromático das frutas, e as sementes adicionam mais camadas de complexidade e aromas inusitados que contribuem com a complexidade geral (basta ver a diferença gritante entre as lambics comerciais, que empregam suco de frutas, e as tradicionais, que usam a fruta inteira). Um aroma mais vigoroso da fruta também ajudaria a encobrir o aroma lácteo da fermentação e potencializaria a refrescância da cerveja.

Isso significa que devemos esquecer as cervejas da linha Way Sour Me Not? Óbvio que não! É preciso considerá-las como experimentos, ou como degraus que ajudarão a construir uma tradição mais sólida de estilos selvagens no Brasil. Seu valor reflete mais a ousadia e a importância histórica do que a qualidade intrínseca das cervejas – pelo menos por enquanto, no primeiro lote. Fermentação lática é algo muito novo no Brasil e as cervejas não possuem o know-how para realizá-la, então eu tenho a expectativa de que, com o tempo e o acúmulo de experiência, as cervejas da linha sejam progressivamente aprimoradas. Os norte-americanos também erraram muito nas suas primeiras sour ales, mas hoje já estão fazendo produtos de qualidade comparável aos rótulos do Velho Mundo.

Outro mérito indiscutível da linha Way Sour Me Not é a tentativa de transformar as sour ales em produtos acessíveis ao consumidor. Cervejas selvagens são estilo difíceis de produzir, que podem alcançar preços muito altos em comparação com ales normais. Considerando o alto patamar de preços de boas cervejas no Brasil, isso poderia facilmente elevar o preço de uma sour ale a patamares que praticamente inviabilizariam seu consumo. A Way conseguiu pôr no mercado três sours mais simples a um preço bastante amigável, não muito superior à linha básica da cervejaria. Aqui em São Paulo, encontram-se as garrafinhas de 310ml da linha em torno dos R$ 15. E, acredite, você não precisa de mais que 310ml delas.


Espero que esta postagem tenha incentivado as pessoas a prestigiar essas cervejas que talvez sejam os primeiros movimentos de um despertar selvagem brasileiro a frutificar a médio prazo. Fica, ainda, a sugestão de degustar uma delas comparando-a a uma lambic com frutas de boa qualidade para entender, com humildade, o quanto ainda precisamos nos aprimorar. 

6 comentários:

  1. Belo texto! Tomei no festival brasileiro da cerveja em forma de "provinhas" e confesso que por não estar habituado ao estilo achei digamos "diferente"! A meu ver o valor dessa linha de cervejas foi quebrar a monotonia de estilos que predominou no festival! Vida longa a Way e que venham novos sabores!

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    1. Olá, Leonardo! O seu comentário vale para o festival e vale para o nosso mercado nacional em geral, que ainda está muito preso a certas fórmulas. É preciso haver mais gente disposta a quebrar o paradigma "lúpulo americano/parceria internacional/preço alto/marketing".

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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  2. Também achei a versão de graviola a mais agradável e a de morango a menos. Nem me lembro mais de todos os detalhes, mas a impressão que ficou foi essa. Algo que me incomodou bastante em todas, afinal trata-se de uma característica da cerveja base, foi o residual maltada manifestado como um intenso sabor e aroma de farinha branca. Vi essa característica de forma tão ressaltada em poucas cervejas que tomei até hoje. No caso dessas, mesmo a acidez não contrapõe isso no paladar e você fica com aquela sensação de estar comendo massa de pão crua. Achei esse um dos principais defeitos. No geral, não foram cervejas que me deram vontade de tomar novamente. De resto, achei louvável a iniciativa e concordo em todos os pontos positivos que você citou.

    Falando de "selvageria", recentemente me surpreendi muito positivamente com a Saison de Caju da Tupiniquim, que tem uma fusão deliciosa do aroma e sabor da fruta com aqueles deliciosos aromas de Brett. Já provou? Essa sim é uma que eu queria tomar todo dia.

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    1. Olá, Edson,

      Ainda não provei as Tupiniquim, mas estão na minha lista de compras! :-) Pena chegarem a São Paulo por um preço tão alto, quase R$ 20 pela garrafinha caçulinha... Há várias ales com Bretta sendo anunciadas no Brasil para esse ano, pena que nenhuma sour. Mas creio que será um ano interessante para amantes da selvageria.

      No mais, concordo com você que o residual de malte ficou um pouco incômodo nas Sour Me Not. Gostaria de que elas fossem mais secas também!

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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    2. O ano não acabou ainda em! Oud Beersel e Hanssens Artisanal já estão por aqui, inclusive com algumas straight lambics!

      Parabéns pelos textos Marcussi!

      abraços!

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    3. É uma ótima notícia, João, mas ainda quero ver os preços antes de comemorar. :-) As Hanssens eu nunca provei, mas sei que a Oud Beersel tem uma excelente gueuze, muito amigável para iniciantes, além da linha Bzart, que seria uma boa opção para brindes de fim de ano.

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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