quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Guias de estilos - Parte II: Armadilhas de uma história muito recente


Vimos na parte anterior desta matéria como os guias de estilos mais usados no mundo cervejeiro estão intimamente atrelados aos campeonatos e concursos de cervejas. Campeonatos cervejeiros, no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, são fenômenos bastante recentes. Aliás, toda essa imensa diversidade de estilos disponíveis globalmente é uma conquista recente da indústria cervejeira. O grande “renascimento” dos estilos cervejeiros data dos últimos 40 anos – enquanto alguns dos termos usados para categorizar estilos já estão em uso há mais de um milênio. A primeira metade do século XX foi um período de intensa consolidação no mercado cervejeiro (como em outros mercados capitalistas, também), com as maiores companhias engolindo as pequenas cervejarias tradicionais, enquanto os estilos regionais tradicionais eram gradualmente substituídos pelas lagers claras com adjuntos, que ainda hoje dominam de forma esmagadora o mercado cervejeiro. Para se ter uma ideia, em 1873, os EUA possuíam 4.131 cervejarias. Cem anos mais tarde, em 1973 (pouco antes de começar o boom das microcervejarias), havia pouco mais de 100 cervejarias. Uma senhora consolidação. A tendência se reverteu a partir dos anos 1970, com o renascimento das microcervejarias, capitaneado pelos EUA e pela Inglaterra.

Teste cego das nossas “pilsens” de massa. 
Cara de um, focinho do outro.
Fonte: cervejassambasteniscomidas.blogspot.com
Num mercado como o da primeira metade do século XX, de poucos rótulos e estilos e de grandes companhias competindo com produtos muito semelhantes entre si, campeonatos não faziam muito sentido. Já no cenário atual, com várias cervejarias artesanais produzindo uma ampla gama de cervejas com propostas totalmente diferentes, a coisa muda de figura. Campeonatos são formas de organizar o estado atual da produção cervejeira em cada região e promover os produtos de maior destaque. Cada campeonato vai ter características diferentes de acordo com seu escopo (se é um campeonato regional, nacional, continental ou mundial), com o tipo de produto inscrito (se cervejas industriais ou caseiras) e com as características da indústria da região onde é realizado.

Uma imagem contemporânea

Tudo isso nos leva a alguma conclusões importantes. Em primeiro lugar, os atuais guias de estilo refletem o estado da indústria cervejeira contemporânea, em especial nos EUA, onde são elaborados tanto o guia do BJCP quanto da Brewers’ Association. Eles nos oferecem uma visão atual dos estilos e de suas subdivisões, que nem sempre corresponde à tradição histórica associada a cada denominação. Todos os guias atuais são unânimes em apontar que as Belgian tripel são cervejas claras. Contudo, antes do século XX, essa denominação era usada para cervejas escuras que hoje seriam classificadas como Belgian dark strong ales. Qualquer nome é sempre maior e mais abrangente do que a definição atribuída por um único guia de estilos, e nós não podemos confundir guias modernos com um resumo da história dos estilos cervejeiros, sob pena de projetar no passado a nossa percepção atual dos estilos.

Rótulo da Antarctica Original, com a polêmica 
denominação “pilsen” em destaque.
Fonte: carvelho.com.br
Talvez o exemplo mais polêmico e gritante seja o das nossas “pilsens” brasileiras, produzidas pelas grandes cervejarias. Pelos guias cervejeiros, elas teriam de ser classificadas em alguma das subcategorias do estilo “American lager” (light, standard ou premium). Muitas pessoas julgam acintoso e ultrajante que as cervejarias denominem esses produtos com o nome “pilsen”, já que esse termo, de acordo com os modernos guias de estilos, está associado a lagers claras tradicionalmente produzidas na República Tcheca e na Alemanha, bem mais secas e amargas do que as nossas “pilsens” comuns. Ocorre que o estilo “American lager”, no qual esses produtos de massa se enquadram, surgiu a partir de um longo e gradual processo popularização mundial e de suavização das cervejas pilsners alemãs e tchecas. A denominação “pilsen” reflete uma percepção histórica: a de que as cervejas hoje produzidas em massa tiveram como origem o estilo pilsner tcheco, adaptado a novos padrões globais de produção e consumo no século XX. No Brasil, os consumidores se acostumaram, historicamente, a associar o nome “pilsen” a essas cervejas, e não às alemãs e tchecas mais tradicionais. Será que realmente tem cabimento todas as macrocervejarias mudarem o nome de suas cervejas só porque alguns campeonatos realizados no final do século XX decidiram, na contramão da tradição histórica brasileira, que o nome pilsner se aplica exclusivamente a cervejas produzidas de acordo com as tradicionais tchecas e alemãs?

Diferentes campeonatos, diferentes guias

Podemos extrair uma segunda conclusão importante dessas reflexões. Cada campeonato tem características distintas de acordo com sua proposta e abrangência. Isso se reflete nas características dos guias elaborados para cada certame. Há alguns que, por determinados motivos, preferem criar um número maior de subcategorias, enquanto outros preferem manter cada categoria mais ampla e abrangente. Não significa que o guia com mais categorias esteja “mais à frente” do que um com menos estilos: significa apenas que são dois campeonatos com estruturas diferentes.

Nos próximos posts, veremos um pouco sobre os campeonatos que deram origem aos principais guias de estilo usados hoje no mundo todo, a fim de tentar compreender essas diferenças. Acompanhe!

10 comentários:

  1. Muito interessante esse artigo. Mandou bem !
    Sobre o uso da denominação stout no Brasil, o que você acha?

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  2. Obrigado, Pacheco! Não deixe de acompanhar as próximas partes!
    Sobre a sua pergunta, acredito que vc esteja se referindo ao uso da denominação "stout" para lagers escuras doces com corante caramelo, como a Caracu, estou certo? Não vejo muito respaldo histórico para isso, não. É verdade que, no século XIX, o nome "porter" foi usado para designar lagers, mas nunca tive notícias do mesmo ocorrendo com "stout". Ademais, no Brasil, temos um nome historicamente consolidado para denominar essas nossas cervejas: Malzbier. É uma denominação exclusivamente nacional, até onde sei. Sim, a Caracu é uma "Malzbier" mais torrada e menos doce, é verdade. Mas acho mais honesto encará-la como parte da família das Malzbiers do que inventar uma denominação de sweet stout para ela.

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  3. Marcussi, comecei a ler seu blog recentemente (acompanhava os artigos pelo blog do brejas mas não associava ao blog diretamente). Muito interessante a sua forma de escrever e a temática fora da mesmice. Parabéns por conseguir levantar tanta coisa interessante e, para mim, inédita, sempre!

    Sobre os comentários a respeito da Caracu, eu sei que ela usa lactose em sua formulação, por isso acredito que se encaixa na categoria sweet stout, apesar de estar longe disso, né? (Se bem que eu consigo sentir um caramelo bem único nas poucas vezes que bebo ela). Outra curiosidade que me deparei outro dia foi a origem do nome Caracu: "produto da fusão da gordura contida na medula de ossos longos", interessante né?

    Abraços!

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    1. Olá, Leo! Agradeço seu comentário. Como eu afirmei desde o primeiro post aqui no O Cru e o Maltado, a blogosfera já tem bons blogs de avaliações e notícias cervejeiras, então minha intenção será sempre trazer uma outra visão, mais histórica e cultural - que tem a ver com a minha formação. Espero que continue agradando!

      Quanto à coisa da Caracu, não sabia da informação sobre a lactose. O rótulo que eu tenho da Caracu na minha coleção informa, entre os ingredientes, "água, malte, cereais não malteados, carboidratos, lúpulo e malte torrado. Corante: caramelo III INS 150." A lactose talvez possa estar incluída entre os "carboidratos", mas eu não tinha ideia. Mesmo assim, trata-se de uma lager, como o rótulo deixa claro ("baixa fermentação"), o que a descaracterizaria como milk stout, para além do fato de que, sensorialmente, ela diverge do estilo. Pode ser uma distorção da minha percepção, mas eu realmente a vejo inserida na tradição das Malzbiers brasileiras, embora o público alvo seja ligeiramente diferente.

      Sobre a palavra "caracu", sei que é a denominação de uma raça bovina que surgiu no Brasil. Interessante essa informação do produto da fusão da medula!

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  4. Eu tenho a grande curiosidade de provar uma legítima milk stout para ver como realmente é, porque de fato a caracu parece estar longe da proposta.

    Abraços!

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  5. Também não é exatamente um exemplar "tradicional" do estilo, mas a Bodebrown produz uma impressionante Imperial stout com adição de lactose. Na versão em que eu tomei, ela chegava a assustadores 14,5%. O engraçado é que se podia notar com clareza um certo aroma de lactose logo no começo, lembrando Yakult. Muito boa, vale a pena procurar.

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  6. Seguirei a dica! Todas do Bodebrown que já chegaram a BH eu tomei, essa ainda não vi por aqui.

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  7. Marcussi, excelente blog o seu. Continue nessa jornada, nos trazendo mais de história, cultura e cerveja!

    Sobre a Caracu ser considerada uma espécie de Malzbier... coitada, acho que ela não merece isso. A Caracu leva malte torrado, e este é bem perceptível na degustação, apesar do residual doce. Além disso, não é filtrada, o que contribui para sua fama de cerveja forte e nutritiva. Malzbier nada mais é que uma american lager escurecida unicamente com caramelo, não apresenta nenhuma característica de torrefação, apenas uma doçura exagerada e enjoativa...

    Abraço.

    Claudinei

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    1. Claudinei, acho que me expressei um pouco mal em relação à Caracu. Não acho que ela seja como as Malzbiers do mercado, muitas das quais, como se sabe, são American lagers que apresentaram algum desvio de perfil durante o processo produtivo e acabaram sendo mascaradas com caramelo para serem vendidas. A Caracu é uma cerveja com uma receita mais própria, isso é inegável.

      O que eu argumentei é que acho estranho chamá-la de sweet stout. O fato de ela não ser como as Malzbiers do mercado não faz dela uma stout. Ela é, afinal de contas, uma lager. Existem casos de lagers categorizadas como ales (porters e Irish red ales, por exemplo), mas é preciso haver um precedente histórico para isso, que eu não conheço no caso das stouts. Quando a aproximei das Malzbiers, o que eu quis dizer é que ela se insere muito mais na tradição brasileira da Malzbier (no sentido da percepção de mercado) do que na tradição histórica das stouts.

      Veja, a Mistura Clássica costumava produzir uma lager com maltes torrados, menos alcoólica e mais doce do que uma Schwarzbier, e a chamava de Malzbier. Nem sei se essa cerveja ainda está em produção, mas era uma interpretação válida, ao meu ver. Se tomarmos o termo "Malzbier" numa acepção mais abrangente (uma lager escura com adjuntos, com percepção suave de torrefação e doçura mais acentuada do que o normal para uma "American-style dark lager"), talvez uma cerveja como a Caracu entrasse na descrição. Isso não significa, repito, que ela seja igual às Malzbiers do mercado. É apenas uma reflexão sobre o ponto de vista a partir do qual ela pode ser encarada.

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    2. Ok, Marcussi, entendi o seu ponto de vista. Também desconheço alguma menção a "baixa fermentação" na história das stouts em suas origens (Inglaterra/Irlanda), dessa forma fica meio complicado querer categorizar a Caracu como uma representante de algum dos estilos/subestilos de stout. A argentina Quilmes produz uma "stout" nos mesmos moldes da nossa Caracu (baixa fermentação e corante caramelo), acho que isso deve ser um "mal" dos sul-americanos :)

      Quanto às nossas "pilsen", você falou muito bem. Até comentei no fórum uma vez que as nossas macros já usavam essa terminologia em suas lagers pálidas, muito antes da criação dos guias de estilos, dessa forma acho meio complicado exigir uma mudança ou supressão do "pilsen" nessas marcas.

      Abraço.

      Claudinei

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