segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Cerveja e artes plásticas: os "homens no café" de Juan Gris


Tenho ouvido algumas pessoas me dizerem que este blog anda ficando muito técnico. Portanto, decidi embarcar em uma leve mudança de ares por enquanto, enfatizando mais o aspecto cultural deste nosso espaço. Claro, continuo falando sobre cervejas, mas agora em relação a uma das minhas (outras) paixões: as artes plásticas.

Eu tinha começado a escrever esta matéria falando sobre a época e o estilo do artista sobre o qual vamos conversar – o espanhol Juan Gris –, mas achei muito melhor deixar a imagem falar por si:

Juan Gris – Homem no café (1914)
Fonte: http://www.ibiblio.org

O título pode parecer estranho num primeiro momento, como aquelas provocações de artistas contemporâneos. “Não estou vendo café nenhum, e muito menos homem!” Então vejamos. Em primeiro lugar, o artista não estava falando na bebida café, mas nos estabelecimentos comerciais que existiam na época na França – e ainda existem – chamados “cafés”, aonde as pessoas iam para se sentar, comer algo leve e bebericar. Pois bem, nosso “homem no café” efetivamente está num café. E olhe que não é um mero botequim de copo sujo! Ao centro da imagem, o artista retratou em detalhes a textura e as linhas da madeira da mesa; mais próximo das margens da tela, vemos os painéis de madeira mais escura lembrando o revestimento de madeira de ambientes mais nobres. Uma mancha marrom escura apresenta o que talvez seja a textura macia e as ranhuras do couro das poltronas. Mais ao centro, um grande bloco amarelo apresenta uma textura nitidamente contrastante: parece liso, duro, frio, talvez azulejo ou vidro. No centro disso tudo, obviamente, o motivo pelo qual o homem foi ao café, o foco de atenção da imagem: uma sólida caneca de cerveja com seu creme opulento e o duro canelado do vidro.

OK, achei o café, mas onde está o homem, afinal de contas? Vemo-lo apenas por indícios indiretos. Percebemos claramente o que ele está fazendo: lendo um jornal. “Le Matin” – a manhã. E parece ter passado longas horas sentado, lendo, a julgar pelas duas luzes que incidem sobre o papel do jornal: a luz azulada lembrando o céu claro do dia, e a luz amarelada da iluminação elétrica. Vemos ainda sua mão segurando a página do jornal, à esquerda. Por fim, bem no alto, vemos a silhueta de sua elegante cartola, bem como a sombra que ele projeta na parede de madeira. De fato, se o lugar parece elegante, ele está trajado a caráter. Talvez com um casaco de veludo azul, a julgar pelos detalhes da pintura em azul royal. Pronto, aí está: um homem no café. Lendo seu jornal, bebendo sua cerveja, sentindo o toque macio do couro, do veludo, da madeira e a sensação dura e gelada dos azulejos e do copo de vidro. Talvez pensando na vida, introspectivo e sozinho na mesa do café durante longas horas.

A pintura é do artista espanhol Juan Gris, e pertence a um estilo artístico que passou à posteridade com o nome de “cubismo”. Quis começar mostrando a imagem porque agora fica fácil entender o que os cubistas buscavam com suas telas, que eram bastante chocantes para a época e ainda hoje parecem enigmáticas para muita gente. Foi o próprio Juan Gris quem já nos deu a chave de entendimento de sua obra ao afirmar: “a verdade está além de qualquer realismo e a aparência das coisas não deveria ser confundida com sua essência.” Claro está, esta não pretende ser uma representação fiel da aparência que deve ter um homem sentado no café, lendo um jornal e bebendo sua cerveja. A ideia aqui é apresentar, em forma visual, a essência da experiência de sentar-se ao café, ler um jornal e beber uma cerveja: vemos o jornal, notamos como a luz incide de diferentes maneiras sobre o papel, sentimos a maciez da poltrona, a textura da mesa e do copo. Até por isso temos facilidade em entender o que o nosso “homem no café” está fazendo, mas temos alguma dificuldade para vê-lo claramente: a intenção não é observá-lo de fora, mas sentirmo-nos como se fôssemos nós mesmos esse homem. O artista nos convida para entrarmos no quadro, rompermos a distância que nos separa da tela, pormo-nos nós mesmos a pensar e refletir sobre nossa vida diante de uma bela caneca de cerveja numa tarde preguiçosa.

Na “Natureza-morta com cadeira de palha” de Pablo 
Picasso (1912), o princípio é o mesmo: 
o café, a laranja, o jornal, a cadeira de palha, 
tudo compõe a mesa rústica.
Fonte: smarthistory.khanacademy.org
Os cubistas não queriam reproduzir fielmente a aparência das coisas. Pelo contrário, eles decompunham essa aparência, fragmentavam a visualidade e recompunham tudo em suas telas para nos dar uma espécie de instantâneo do que era aquele objeto ou aquela experiência em sua integralidade. Não por apenas um de seus ângulos, mas por todos ao mesmo tempo. Por isso, gostavam especialmente de compor naturezas-mortas: objetos conhecidos dispostos de diferentes maneiras em cima de uma mesa. Isso lhes permitia brincar com os vários ângulos dos objetos, seus materiais, cores e texturas, mas ao mesmo tempo permitindo que o observador pudesse “reconhecer” esses objetos familiares – frutas, utensílios domésticos, bebidas – em sua cabeça montando de volta todas as partes.

Normalmente, o cubismo é dividido em duas “fases”: o cubismo analítico e o cubismo sintético. Esqueçamos um pouco a nomenclatura enigmática da História da Arte, que às vezes mais mistifica do que esclarece, e vejamos o que isso significa na prática. A partir, é claro, de um outro “homem no café”. O título dessa matéria já indica que Juan Gris possui duas telas chamadas “Homem no café”: a que já vimos, de 1914, e uma anterior, feita em 1912, que você vê abaixo:

Juan Gris – Homem no café (1912)
Fonte: http://www.ibiblio.org

Em linhas gerais, o “Homem no café” de 1912 mostra basicamente a mesma cena que a tela de 1914: um homem calmamente sentado sozinho num elegante café meditando sobre seu copo de bebida. Ao contrário do que ocorre na obra de 1914, porém, na primeira ocasião em que o pintor explorou o tema, deu destaque justamente ao homem: é ele que vemos no foco da imagem, todo cortado e fragmentado em diversos planos geométricos que acompanham, exagerando-o, o corte geométrico de seu fraque. O rosto mostra com vigor essa análise geométrica da imagem: vemos seus traços fragmentados em pequenos planos, a partir de diferentes perspectivas, de modo que, não soubéssemos que seu rosto deveria estar ali, teríamos alguma dificuldade para reconhecê-lo.

A comparação entre as duas imagens mostra claramente a diferença estética entre a fase dita “analítica”, à qual pertence este "Homem no café" de 1912, e a que veio depois, chamada “sintética”, exemplificada aqui pela imagem do início deste texto. O cubismo analítico prioriza a análise geométrica, a fragmentação da imagem em planos; enquanto o cubismo sintético consegue fazer exatamente o que Juan Gris afirmou: mostrar a essência de uma situação, juntando os cacos todos de volta para sintetizar uma experiência com notável economia de meios visuais. O “Homem no café” de 1914 reorganiza todos os cacos da imagem para nos dar uma poderosa impressão do que esse homem devia estar vivenciando, sentado no café. Já não nos importa mais a imagem, mas a sensação.

Curiosamente, apesar das inúmeras semelhanças entre as cenas, existe uma diferença fundamental (que eu nem precisaria falar para os leitores deste blog): a bebida, claro! O primeiro “Homem no café” sorve uma bebida elegante, talvez um dry martini ou um vermute branco, de sua taça triangular. O segundo, por sua vez, saboreia um portentoso caneco de cerveja. A mudança não é fortuita, evidentemente. Claro que os historiadores da arte e artistas poderiam argumentar que o pintor quis explorar a geometria exuberante e cheia de arestas da caneca na obra de 1914, enquanto preferiu um copo de design geométrico mais simples para não sobrecarregar a tela de 1912. Mas não é só isso: a substituição das bebidas é o termômetro da mudança crucial de atitude que o artista sugere a quem observa o quadro. O dry martini do primeiro homem é um coquetel elegante, para uma vernissage chique, que impressiona os observadores tanto quanto seu impecável fraque e cartola. É um símbolo de status social, signo do homem que está sentado para ser visto. A cerveja, pela contrário, sinaliza a passagem do mundo externo da sociedade para o mundo interno da introspecção: o homem não se dá a ver, é ele quem contempla o mundo (por meio da visão e do jornal) e medita sobre seus próprios sentimentos e sensações durante aquela tarde no café.

Entre 1912 e 1914, o “homem no café” de Juan Gris realizou uma tripla transição: do cubismo analítico ao sintético, de uma situação de ostentação social para um momento de introspeção e reflexão pessoal, e – claro! – do martini para a cerveja. De fora para dentro, em suma. A partir da análise das imagens, é plausível que Gris visse a cerveja como uma bebida mais próxima de seus sentimentos interiores do que o martini. Com isso, claro, ele revelava uma faceta de como a sociedade de sua época encarava o status das duas bebidas: uma, elegante e sofisticada para se beber “em sociedade”, outra, talvez, mais próxima de alguma espécie de “eu interior”. Não há nada, objetiva e intrinsecamente, na composição dessas bebidas que determine isso; mas isso não impede que a cultura humana invista os objetos à sua volta de densos significados que, a princípio, lhes eram alheios.

Celebremos, pois, à introspecção com uma bela caneca de cerveja!

10 comentários:

  1. Gostei da análise!
    Obrigada Alexandre!!!
    Rose Mary Palis

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    1. Olá, Rose, tudo bem?

      Se gostou desta postagem, não deixe de ler a continuação, em que eu comento outra tela de Juan Gris: http://ocrueomaltado.blogspot.pt/2012/09/cerveja-e-artes-plasticas-os-varios.html. Por fim, daqui a alguns dias entra a terceira parte da série, em que analisarei como a cerveja aparece na obra de um outro artista.

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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    2. Ok, obrigada Alexandre!!!
      Estou fazendo pós na UFMG e tenho que pesquisar sobre a colagem e a pintura (interrelações e aplicações básicas) e essa análise foi de grande ajuda para entender a relação entre as mesmas. Agradeço sua informação.
      Abraços
      Rose Mary Palis

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    3. Fico feliz em ter podido ajudar. Vale lembrar um detalhe que eu não quis incluir na postagem, mas que pode ser útil para você: a "Natureza-morta com cadeira de palha" de Picasso (cuja imagem você vê no post) é, tecnicamente, uma colagem, já que a corda que emoldura a pintura de fato é uma corda que está colada à tela. Vários cubistas empregaram técnicas de colagem a partir de 1913 (jornais, cartas de baralho etc.) e, juntamente com os dadaístas, foram os primeiros a usarem esse método na arte erudita ocidental. Vale a pena você aprofundar um pouco a sua pesquisa sobre essas duas vanguardas.

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    4. Ok Alexandre, obrigada mais uma vez pela dica!
      Vou pesquisar sim! Ah! Gostei de conhecer sobre o artista Juan Gris...até então não sabia nada sobre ele...fiquei conhecendo aqui nesse post...valeu!!!

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    5. Olá Alexandre!
      O link que você postou, aparece como página inexistente no blog. O que aconteceu?
      Aguardo seu contato.

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    6. Desculpe, Rose, mas eu estou escrevendo de Portugal e aqui o endereço sai como blogspot.pt . Tente substituir o "pt" por "br" e veja se funciona. E certifique-se de que você não está colocando o ponto final depois do "html".

      De qualquer modo, se você clicar no nome do blog, no cabeçalho, ou entrar na página inicial do blog, será redirecionada para a postagem (que, por coincidência, é exatamente a última que foi publicada).

      Abraços, e boa sorte com a pesquisa!
      Alexandre A. Marcussi

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    7. Olá Alexandre!
      Só hoje pude ver sua postagem...vou tentar e retorno novamente,ok?
      Abraços!!!

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  2. Excelente análise do cubismo. E melhor quando aplicamos esse entendimento para entendermos a realidade,que assim como as pinturas têm um cenário de difícil entendimento.

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    1. Fico contente que você tenha apreciado, Fátima!

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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