domingo, 1 de setembro de 2013

Cervejas selvagens - Parte X: Comparativo de gueuzes

Nas partes anteriores desta matéria, tivemos a oportunidade de ver em detalhes os complexos métodos de produção das lambics e analisar, ponto a ponto, o perfil sensorial esperado das misteriosas e complexas gueuzes, incluindo sua marcante acidez e seus exóticos aromas animais e frutados. É hora de colocar toda essa teoria na prática, confrontando seis gueuzes para buscar a identidade e o perfil próprio a cada uma delas. A princípio, pode parecer ao degustador de lambics que toda gueuze é mais ou menos parecida, variando apenas a intensidade de alguns parâmetros principais, como a acidez e os aromas animais. Uma comparação atenta, porém, revela que cada produtor, cada blender possui sua identidade e busca preparar um produto final com sua “marca registrada” em meio a todas as possibilidades oferecidas pelo estilo.

Claro que, como em toda comparação de estilos, o ideal seria degustar todos esses rótulos simultaneamente, lado a lado, para que as particularidades de cada um transparecessem e para que nosso paladar não se enganasse. A acidez que, num dia, pode nos parecer suave, na semana seguinte, em outras condições de paladar, já pode ser percebida como mais agressiva. Contudo, a escassa disponibilidade de cervejas do estilo no Brasil fez com que eu recorresse a notas de degustação tomadas em ocasiões diversas. Portanto, algumas das discrepâncias entre as avaliações refletem as diferentes circunstâncias em que bebi as cervejas, bem como a evolução do meu paladar ao longo do tempo. Quem sabe um dia não tenhamos, no Brasil, um mercado de lambics maduro o bastante para fazer uma degustação horizontal de oude gueuzes (de preferência, sem gastar quase um salário mínimo)? Hoje em dia, 3 dos 6 rótulos listados abaixo já podem ser encontrados no mercado brasileiro, mas os preços nem sempre ajudam. Por fim, vale lembrar que lambics são cervejas altamente sensíveis a variações de safra, de modo que optei por indicar o ano de envase de cada uma das garrafas.

Mas chega de papo furado e vamos abrir as garrafas!

Fonte: 
O público brasileiro está tão acostumado a ter este rótulo “sempre à mão” que nem sempre se dá conta do quanto ele é especial. Trata-se do blend mais ousado da Boon, em que entram nada menos que 95% de lambic forte e madura, envelhecida por 3 anos em grandes tonéis de carvalho, e apenas 5% de lambic jovem. Seu aroma, maduro e elegante, mostra toques amendoados e minerais evidentes (lembrando amêndoas cruas, e não torradas) ao lado de um aroma deliciosamente vívido de cerejas, que chega a lembrar uma kriek lambic. Como tem alto teor alcoólico, ostenta um floral semelhante ao de golden strong ales e um aquecimento ligeiramente perceptível. Tudo isso mesclado a uma impressionante complexidade com estábulo, caprílico, uvas verdes, terroso, apimentado, mel aromático, cravo, defumação e castanhas. A acidez é intensa, não acética, mas o amargor tânico a equilibra num final muito longo, estruturado e mineral. Uma gueuze “de impacto”, com ótima tipicidade. Clique aqui para ver a avaliação completa.


A Cantillon tinha a reputação de fazer as lambics mais azedas da Bélgica, mas suas safras recentes têm se mostrado excepcionalmente balanceadas desde que a cervejaria começou a trocar seus barris antigos por outros novos, reduzindo a incidência de bactérias acéticas. A gueuze, preparada apenas com ingredientes orgânicos, se aproxima muito do perfil de vinho Chardonnay que muitos produtores buscam para suas lambics: acidez moderada, pouco acética, frutado muito acentuado e uma licorosidade voluptuosa e exuberante. A acidez predomina sem excessos, cedendo espaço a um amargor tânico que se prolonga no final ao lado de uma sutil doçura licorosa em segundo plano. O aroma começa rústico, bem animal, terroso e lembrando mostarda. Depois, abre-se um encantador e jovial frutado tropical, com cascas de peras brancas e laranjas, limão siciliano, tudo envolto por sólido perfume de mel. Amêndoas cruas e um traço de pão se prolongam num final longo, amargo e tânico. O corpo é leve e seco como manda o estilo, mas há uma sutil viscosidade licorosa lembrando vinho, além de bons taninos. Elegante e precisa sem extremismos. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: commons.wikimedia.org
A safra 2011 da oude geuze “convencional” da 3 Fonteinen (já que a cervejaria também vende um “Golden Blend” que leva uma inusitada lambic de 4 anos de idade) mostrou-se impactante, ao mesmo tempo encantadora e inclemente. Altíssimos graus de acidez lática e de amargor, castigando o palato, sem nenhuma doçura. É reconhecida pelos aromas cítricos e de carvalho que são sua marca registrada, remetendo vividamente a maracujá fresco e baunilha doce, sobre uma base animal e orgânica acentuada (estábulo, couro cru, caprílico, suor, queijo, mofo e madeira seca). Framboesa e peras são notadas levemente, enquanto o malte e o floral, suaves, se combinam à baunilha para dar uma sutil impressão de pão-de-ló, bolo de maracujá e chá da tarde na casa da vovó. Tem muita nobreza, tipicidade e personalidade, mas eu senti falta de um pouco mais de finesse e delicadeza nesta safra. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.birrandosiimpara.it
A Girardin faz duas gueuzes a partir do mesmo blend: a versão do rótulo preto, mais tradicional, é refermentada na garrafa com leveduras. É uma gueuze bem acética, de aroma típico e equilibrado. Ao lado dos traços animais e de mofo, há um apimentado que se combina ao acético fazendo lembrar salame. Sobre essa base rústica, dançam aromas delicados e perfumados, como amêndoas cruas, violetas, uvas verdes, peras brancas e alguma aveia, fazendo um interessante contraste. Ela tem uma acidez mordaz que ruge ao entrar na boca, mas que decresce e vai se extinguindo em direção a um final curto, tendendo ao neutro, bem mineral e amendoado. O amargor e os taninos apenas medianos, além da ausência total de doçura, reforçam a impressão de que o final fica um pouco “apagado”, desestruturado, mas isso também torna a sensação do gole um pouco mais gentil. Gueuze clássica e típica, de ótimo aroma, sem tanta pegada na boca. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.djibnet.com
Até pouco tempo atrás, a oude gueuze da cervejaria era vendida apenas no café sob o epíteto de “Gueuze sur Lie”, mas hoje ela também é comercializada no mercado com o nome de “Mort Subite Oude Gueuze Naturel”. Trata-se de uma oude gueuze inusitadamente adocicada, em que realmente se sente a doçura residual do malte indicando ou pouco tempo de refermentação na garrafa, ou uma grande quantidade de lambic jovem no blend. Sobre os aromas tipicamente animais do estilo, desenvolvem-se toques mais delicados, cítricos (laranjas maduras), florais (rosas e violetas) e medicinais. Embora a acidez predomine, a doçura é bem mais perceptível do que em outros rótulos, fazendo dela uma gueuze fácil de beber sem torná-la enjoativa como os exemplares adoçados. O corpo também se torna medianamente denso e cremoso em decorrência dos açúcares residuais, e o amargor e taninos são pouco perceptíveis. Boa porta de entrada para quem não está acostumado com o estilo. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Fonte: www.flickr.com
A Oud Beersel é um testemunho do tipo de devoção que as lambics inspiram. Quando a cervejaria fechou as portas em 2002, dois jovens amigos resolveram comprá-la para manter viva sua gueuze favorita, terceirizando a brassagem para a Boon e mantendo a marca como um blender autônomo. A Oude Geuze Vieille é produzida com lúpulos envelhecidos por apenas um a dois anos (em comparação com a média de 3-5 anos de outras cervejarias), o que lhe dá uma inusitada lupulagem, tanto no aroma quanto no amargor. O lúpulo nobre remete a gerânios, limão, pimenta-do-reino, ervas finas e queijo, destacando-se sobre um fundo frutado discreto, em camadas, que equilibra o caráter cítrico (limão, maracujá) e tropical (mamão, melão, tutti-frutti). O perfil animal (couro cru e caprílico) é discreto, e notam-se traços suaves de baunilha, biscoito, violetas e vinagre. O amargor se destaca sobre a acidez moderada e a doçura sutil, mas se trata de um amargor de lúpulo, com poucos taninos, resultando num corpo menos estruturado e num final menos perene. Uma gueuze para amantes de lúpulo. Clique aqui para ver a avaliação completa.

Se quiséssemos comparar a intensidade das principais características do estilo em cada rótulo, veríamos que cada um tende mais para algumas do que para outras:


Assim, podemos reconhecer a Cantillon pela sua acidez gentil e pelo perfil bem tropical, enquanto a 3 Fonteinen mostra paladar intenso e traços cítricos e amadeirados. A Boon destaca-se pelos traços minerais oxidativos e pelos taninos estruturados; já a Girardin é bem ácida e acética, mas pouco tânica. Enquanto a Mort Subite é a mais adocicada de todas, a Oud Beersel exibe forte amargor e aroma lupulado. A princípio, pode parecer difícil para o degustador reconhecer toda essa diversidade de características das gueuzes. Para quem começou há pouco a apreciar lambics, todas podem parecer mais ou menos semelhantes num primeiro momento, enquanto não nos acostumamos a elas. Todas nos chocam com sua acidez marcante e seus aromas animais, variando apenas a intensidade do choque. Neste caso, a experiência realmente é o melhor dos mestres, mas espero que as informações que tenho oferecido nestas postagens possa ajudar a “guiar” seu aprendizado. Vale repetir o que eu já disse antes: lambics são cervejas que evoluem junto com o degustador.

Podemos agrupar as características de cada gueuze em torno de dois eixos que, juntos, compõem a sua “personalidade”: elas podem ser elegantes (frutadas, amadeiradas, florais), denotando toda a sofisticação de seus métodos produtivos, ou rústicas (animais, orgânicas, acéticas), lembrando bem suas origens rurais. Podem ser marcantes, demandando nossa atenção por meio de sua força bruta, ou podem encantar pela delicadeza e gentileza no paladar. Vejamos, pois:


Alguns leitores – em especial se não estiverem familiarizados com a forma como faço comparativos aqui neste blog – talvez estivessem aguardando que este comparativo incluísse um ranking classificando as gueuzes da “melhor” para a “pior”, talvez para saber qual delas vale mais a pena comprar para provar. Lambics são cervejas caras, de disponibilidade restrita, e nem todo mundo pode ser dar ao luxo de sair comprando a esmo para provar. Ocorre que um tal ranking seria irrelevante, já que “melhor” e “pior” são categorias que só fazem sentido diante de critérios subjetivos de gosto. Claro que, se você realmente quiser saber minhas preferências pessoais, pode conferir a pontuação que dei a cada cerveja nas fichas de avaliação, mas isso é banal e até um pouco frívolo. Mais interessante é tentarmos observar o que cada cerveja pode fazer por nós, para adequarmos nossa seleção às nossas expectativas de degustação e deixar que cada cerveja brilhe com sua luminosidade máxima, no seu momento mais adequado. Se você procura uma gueuze mais amigável, talvez valha a pena começar pela Oud Beersel ou pela Mort Subite; por outro lado, se está procurando uma experiência extrema, pode ter mais satisfação com a 3 Fonteinen. Tudo depende do que queremos a cada momento.


Também seria possível eleger um “paradigma” do estilo e hierarquizar as cervejas de acordo com o grau em que elas se aproximam desse ideal – como se faz em um campeonato cervejeiro, por exemplo. Evito fazer isso por um motivo: desde o início desta série de matérias, tenho insistido no encanto, no mistério e na diversidade das cervejas selvagens. Ao abdicar de estabelecer um “modelo” do que é uma boa gueuze, quero enfatizar essa diversidade intrínseca e incontrolável das lambics, sua variedade desinibida e sua resistência à padronização da era industrial. O produtor e o degustador de lambics não podem ser ater a modelos fixos: pelo contrário, o desafio da cerveja selvagem é justamente alcançar, em cada caso, a melhor expressão de um sabor essencialmente espontâneo e particular, cuja beleza está em sua variedade inapagável. Poucas cervejas talvez sejam mais adequadas do que uma boa gueuze para erguer um brinde à diversidade e à individualidade criativa!

9 comentários:

  1. Olha a Mariage aí (no cruel maltado).
    Belo post.

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    1. Que bacana te ver por aqui, Dani!
      Pois é, a Mariage Parfait é uma bela gueuze, não é? Este ano o mercado de lambics está começando a aquecer no Brasil, mas esta cerveja ainda é de longe a melhor compra do mercado. Isto é, quando ela não está custando o valor que você me disse que te cobraram nela. :-) Qualquer dia a gente precisa combinar de dividir uma garrafinha; a Amanda também adora essa cerveja.
      Abraços!
      Alexandre A. Marcussi

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  2. Pelo preço que me cobraram, acho que podemos arranjar meia dúzia para dividir.
    Tá marcado.
    Abs!

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  3. Sei que a 3 Fonteinen e a Boon estão disponíveis aqui no Brasil, mas qual seria a terceira? A primeira eu achei o preço realmente exorbitante, e não comprei, infelizmente.

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    1. Olá, Edson!

      Atualmente, além da 3 Fonteinen e da Boon Geuze Mariage Parfait, é possível encontrar, em alguns poucos pontos de venda, garrafas grandes da Cantillon Gueuze. Salvo engano, tem no Mamãe Bebidas, na faixa dos R$ 65-70, o que não é tão exorbitante se considerarmos seu preço na origem.

      Vale lembrar ainda que, além dessas, ainda temos outras gueuzes da 3 Fonteinen (Golden Blend e a linha Armand'4) e o megablend da Horal. Mas, nesses casos, os preços são ainda mais complicados... :-)

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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  4. Olá, Marcussi! Já provou a Lindemanss?

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    1. Olá, Walbher, tudo bem?

      Sim, provei as duas gueuzes da Lindemans, tanto a versão mais comercial (denominada simplesmente Gueuze) quanto a tradicional (Gueuze Cuvée René). A primeira não entrou nesse comparativo porque é adoçada artificialmente e pasteurizada, então não pode ser comparada a uma oude gueuze. A segunda acabou ficando de fora por escolha, mesmo, mas é uma gueuze interessante e, para quem não está acostumado com o estilo, costuma agradar mais do que os exemplares mais radicais e tânicos, como 3 Fonteinen, Boon ou Cantillon.

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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  5. Tomei a Hanssens esse final de semana e vim aqui no blog procurar alguma referência e vi que você não tomou (ou já?). AMEI essa cerveja, a melhor gueuze que tomei até o momento.
    Tudo indica uma quantidade razoável de cerveja jovem no blend, porque não é muito seca, tem dulçor residual perceptível e corpo médio, um dos motivos de eu ter gostado tanto. Tem também um frutado de brett bem evidente no aroma, uma delícia, junto dos traços animais, e acidez na medida (bem presente, mas harmoniosa). Achei uma combinação irresistível. Tecnicamente tão boa assim ou não, me deixou perplexo.

    Confesso que paguei uma nota na Cantillon e não me entendi com ela. Muito amargor tânico a ponto de incomodar (não me dou bem com esse amargor, amarrar a boca é até gostoso, mas o amargor dos taninos quando vem forte, tipo da Cuvée De Ranke, não me desce). Tem uma acidez no aroma muito agressiva também (parece acético, mas não sou muito bom pra diferenciar acético de lático). Definitivamente não curti.

    Já a Henssens é uma obra-prima de se tomar rezando. E o mais interessante é que eles são "só" blenders atualmente.

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    1. Olá, Edson, tudo bem?

      Muito bacana seu relato. Já estava me programando para conhecer essas novas lambics que chegaram pela Best Beers e com certeza vou começar pela gueuze da Hanssens depois do que você disse. Nunca provei nenhuma das cervejas desse blender. Eu costumo gostar de lambics secas, tânicas e frutadas, então a Cantillon bate perfeitamente com o meu gosto. Mas não me animo a pagar o que estão cobrando por ela no Brasil, está meio complicado.

      Antigamente havia muito mais blenders autônomos, hoje em dia é que esse número decaiu muito. Mas há sinais de recuperação nesse sentido, na medida em que microcervejarias têm comprado o mosto das produtoras de lambic para usar em seus rótulos (como faz a De Ranke, inclusive), e um novo blender surgiu nos últimos anos (a Tilquin, que tem uma gueuze legal, bem frutada sem muita acidez nem muito animal).

      Abraços,
      Alexandre A. Marcussi

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